Variante Pops

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Já o Inverno tinha entrado na Primavera e ainda não tinha chegado a ansiada encomenda especial. Após os últimos dias de actividades de neve na Serra da Estrela, ainda esperávamos um fim-de-semana alargado extra para fechar a época. Esse fim-de-semana surgiu dos dias 13 a 16 de Abril, quando vimos uma aberta de bom tempo nos Pirinéus. Já há algum tempo que tínhamos uma linha em vista nos Gabietos, um “3000” lá para as proximidades de Ordesa.

No dia 12, um dia depois de, finalmente, recebermos a tal encomenda secreta, fizemo-nos à estrada com o objectivo de chegar a Madrid. Aí iríamos conhecer o representante da RAB Península Ibérica e o Pedro Cinfuentes que foi o primeiro escalador a fazer a travessia das Torres del Paine na Patagónia (também patrocinado pela RAB). Também se juntaria ao grupo, Mendieta, um simpático jornalista de montanha, ex-reporter da revista espanhola Desnivel, que acabou por nos entrevistar, algo que nem sequer tínhamos combinado previamente. 
 
Após uma noite de “chat chat” agradável, rumámos em busca de ambientes mais montanhosos. No dia seguinte, com pouca paciência para a aproximação mais tradicional aos Gabietos (que consiste em carregar equipamento de pernoita e comida, para além do típico material técnico, e dormir relativamente perto da parede), decidimos pernoitar ao lado do carro e acumular a aproximação à escalada no dia seguinte. Afinal, seriam apenas mais duas horas e meia a juntar à festa para cima, e mais outro tanto para baixo.
 
Entre as 5:30 e as 6 da manhã, começámos a aproximação à face Noroeste dos Gabietos, de início por um bonito trilho que estava transformado num verdadeiro ribeiro alimentado pelo degelo das neves e depois, por extensos e incómodos neveiros que apresentavam, ora passos de neve consistente, ora passos em que nos enterrávamos. Aqui e ali víamos vestígios de avalanches recentes, provocadas pela súbita subida de temperatura dos últimos dias… aliás, este ia ser supostamente um dia algo primaveril, seguido de um dia de Verão em que começávamos a suspeitar que não iríamos conseguir escalar coisa nenhuma nas montanhas!
 
Algures pelas 9, fustigados por um vento com o qual não contávamos, abrimos as hostes e estreamos as armas secretas. O verde das ferramentas sobressaía brilhante na brancura da neve. Finalmente, os novos piolets entravam em acção!
 
A face norte apresentava-se com um aspecto convidativo, excepto pelo persistente “spin-drift” que teimava em refrescar-nos o corpo. O Paulo encarou bem a coisa: “Serve de treino!” e eu… eu passava bem sem aquela neve em pó a tentar permanentemente entrar-me pela gola e mangas do casaco.
 
Nas primeiras pendentes, após alguns passos precários mais abaixo… dúvidas… continuamos ou descemos? Breve percebemos que o aspecto da parede não correspondia ao encontrado. De facto, a zona mais rochosa por onde queríamos abrir via tinha neve, mas como não estava solidificada, não aguentaria nem com um caracol!
 
Após dois largos de teimosia, com 60 metros cada e alguns passos precários, a decisão estava tomada (de inicio, a minha cabeça não estava para aquilo mas, lá fui), pelo menos sairíamos por cima! Uma grande rampa e uma travessia para a esquerda conduziu-nos inevitavelmente ao corredor da “Remi-Quintana”. Não queríamos coincidir com outra via estabelecida mas, as péssimas condições da neve não nos deixaram alternativa. Por alguns metros avançámos com rapidez, até atingirmos o fecho do dito corredor.
 
Cerca de 2/3 da parede estavam “no papo”, quando o Paulo investigava se a melhor saída seria à esquerda ou à direita. À esquerda víamo-nos confrontados com uma zona mais exposta, à direita era o desconhecido…fomos pela direita.
 
Novamente, os novos brinquedos verdes mostraram o seu potencial para os gancheios. Avançamos num terreno misto entre neve podre e rocha… podre e, ao mesmo tempo, compacta e quase improtegivel. É nesta altura que a experiencia se mostra e encontra locais para colocar protecções onde elas supostamente não existem (boa Paulo!).
 
Uns metros para cima, uma travessia para a direita, uma secção exposta e delicada onde era proibido cair, mais uns metros na vertical e lá estávamos nós na última reunião onde fomos surpreendidos pela única peça de material que encontramos ao longo de 550m de via: um piton! “Epá, já passaram por aqui! De onde terão vindo?”
 
A ânsia de estar a abrir via fazia-nos imaginar todos os caminhos possíveis para aceder àquele ponto. Se as condições dos que plantaram o piton fossem as que encontramos, só haveria duas maneiras de chegar ali. Se fossem muito melhores, outros horizontes poderiam ter existido. De facto, se há uma coisa interessante nas vias invernais, é que por mais que se repita uma via, esta será quase sempre um desafio diferente, mais ou menos dura consoante a muita ou pouca neve, podre ou consistente, muito ou pouco gelo… as variantes são infinitas. Foi o achado daquele pequeno artefacto que nos fez pensar que, com honestidade, não poderíamos chamar à “nossa” via: Via! Provavelmente, estávamos a inaugurar uma “Variante” mais.
 
Restava-nos um largo que terminava numa canaleta de neve vertical, mesmo por baixo de uma cornija intimidante! Rezando para que o calor não a fizesse cair naqueles breves momentos, lá foi o Paulo até à aresta, ultrapassando aquele trecho impossível de proteger.
 
“Podes viiiiiiiir!”, escutei minutos depois. “Se caires não faz mal, estou no outro lado da aresta!”. Com o coração mais tranquilo subi, bordeei a cornija e saí para a aresta. Atrás de mim, mais umas quantas cornijas, uma delas constituía uma enorme pala com aspecto verdadeiramente ameaçador, principalmente com o calor que se tinha instalado e com o sol a brilhar com toda a sua força. Bom, nós não sentimos grande calor, apenas porque o vento na aresta era tal, que o corpo não percepcionava a real temperatura. No entanto, o avistar de uma avalanche, deixava-nos conscientes de que ainda não estávamos totalmente livres de perigo.
 
Teríamos de atravessar uma boa parte da aresta para escapulir pelo colo que existe entre os Gabietos e o Taillon. Uma parte da travessia ainda me fez suar o cérebro “Não é nada bom cortar a neve assim! Vá, vai com cuidado e pisa exactamente onde o Paulo pisou, não cortes mais a neve…”. Mantínhamos a corda entre nós e foram colocadas algumas protecções intermédias “Just in case!”
 
Horas depois, chegámos a terreno seguro. “UF!” Faltava apenas o laaaaaargoooooo pateio de regresso ao carro. Na descida, pudemos observar como o terreno se tinha modificado ao longo daquelas horas. Os “Debris” de avalanches multiplicaram-se! Nessa altura, tivemos a certeza que aquela tinha sido a última actividade da época, assim nos despedíamos do excelente Inverno de 2013.
 
Como invariavelmente nos ocorre nestas situações e nesta parte do mundo, o dia seguinte foi passado em Riglos! Passamos das temperaturas baixas para uns agradáveis 24º, onde as cervejinhas numa esplanada virada aos famosos Mallos, nos sabiam a néctar dos deuses!
 
Se escalámos? Sim, uns singelos 4 lances, pois os pés inchados de 15h de actividade e os dedos maçados de cerca de 3h de descida não toleraram o “(des)conforto” dos pés de gato!
 
Daniela Teixeira
 
 
 

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Sobre o autor

Daniela Teixeira e Paulo Roxo é uma dupla portuguesa que pratica escalada (rocha, gelo e mista) e alpinismo. O que mais gostam? Explorar, abrir vias! A Daniela tem cerca de 10 anos de experiência nestas andanças e o Paulo cerca de 25. A sua melhor aventura juntos foi em 2010, onde na cordilheira de Garhwal (India - Himalaias), abriram uma via nova em estilo alpino puro na face norte da montanha Ekdante (6100m) e escalaram uma montanha virgem que nomearam de Kartik (5115m), também em estilo alpino puro. Daniela foi a primeira e única portuguesa a escalar um 8000 (Cho Oyu). O Paulo é o português com mais vias abertas (mais de 600 vias abertas, entre rocha, gelo e mistas). Daniela é geóloga e Paulo faz trabalhos verticais. Eles compartilham suas experiências do velho mundo e dos Himalaias no AltaMontanha.com desde 2008. Ambos também editam o blog Rocha Podre, Pedra Dura (rppd.blogspot.com.br)

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