Vilas Fantasma

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Vilas Fantasma

Eu já havia encontrado vilas fantasma no Brasil e falei sobre elas em minhas colunas – a aldeia debruçada sobre o canal de Ararapira no Paraná e as ruínas de São João Marcos no Rio. E, então, pensei um dia sobre os povoados no Nepal que se esvaziavam no inverno e recordei minhas experiências em Minas. Resultou talvez uma coluna estranha, mas estranhos são também esses lugares.

Pheriche

É a primeira vez que tomo um banho desde Namche Bazar, a capital dos sherpas, tantos dias atrás. Talvez você não chamasse de banho o rápido exercício de me molhar naquela tarde gélida e depois de tentar me secar com uma toalha imunda, morto de frio.

Estou no vilarejo de Pheriche, a quase 4.400 metros de altitude. No dia seguinte, passarei pelos blocos fraturados de rocha que o gelo das montanhas tritura a cada degelo – e subirei então a moraina do glaciar.

A região do Khumbu, banhada pelo Imja Khola, abriga montanhas notáveis como o Ama Dablan, o Pumori, o Gokyo, o Lhotse e o Everest (no canto direito). Pheriche está bem no centro.

Pheriche era uma aldeia agrícola que foi se convertendo no tempo em uma base de hospedagem e aclimatação no caminho do Everest.

Há meio século abriga um conhecido hospital de altitude, que entretanto só funciona na primavera e no outono, as duas janelas de visitação da região. Depois dela, chegarei aos 4.900 metros do povoado de Lobuche.

Por que conto esta história? Para relatar o que então me disseram – e que hoje não sei se é ainda verdade (se é que era), com a melhoria das construções desses vilarejos, que agora constato com surpresa nas fotos recentes.

Diziam que, quando chegava o inverno, a população dessas vilas elevadas se mudava para baixo no vale, para evitar o frio horrível. Ficava pensando como seria extraordinária toda essa movimentação no inverno e como seria formidável o retorno na primavera.

Os yaks (bovinos nepaleses) passando pela região de Pheriche, que está ao fundo. O horizonte é decorado pelos 6.800 metros do Ama Dablan. (Fonte – Agnes Kwong)

Capelinha

Mas pensei em Pheriche tanto por causa daquele banho tolo como de uma experiência semelhante no Brasil: o arraial da Capelinha, no caminho de Serro, em Minas.

Ao passar um dia na estrada rumo à cidade, vi um estranho brilho branco no alto de uma serra verdejante. No seu rumo, passei pela vila de Mato Grosso, onde me informaram que poderia subir pela estradinha.

Parede da Serra da Caroula (930 metros), debruçada sobre o planalto, com a Igreja de N.S. das Dores no cume.

E foi o que fiz, para encontrar lá em cima uma inesperada espiral de casinhas de cada lado da subida, até chegar ao cume. Então, descobri a razão daquele brilho: as paredes caiadas da capela devotada a N. S. das Dores.

Antes dela, um terreiro maravilhoso, decorado por um cruzeiro, com uma vista soberba dos campos da Serra do Cipó. Acredito que a bela corcova rochosa no horizonte distante fosse o Pico do Breu, uma das montanhas mais reconhecidas daquela região.

Foram três os devotos que levantaram a capela: Osvaldo, Expedito e Nicodemos, no que acreditavam fosse a montanha dos bem-aventurados.

Com o tempo, para evitar as íngremes subidas e descidas durante as celebrações, os fiéis começaram a construir as chamadas barraquinhas. Elas ficam lotadas durante a semana dos festejos do Jubileu, que há décadas acontecem no fim de julho.

Igreja de Nossa Senhora das Dores junto com o modesto casario da Capelinha.

Pois eu cheguei exatamente na semana anterior, para encontrar pedreiros, carpinteiros e pintores arrumando aquela vila mágica.

Mas ela não é só mágica, é também fantasma, pois fica vazia e fechada depois de cada Jubileu. Aqui foi a fé como lá foi o frio que explicaram a singularidade desses lugares. Só que, num caso, foi o frio que esvaziou o povoado e, no outro, foi a fé que o encheu.

Cemitério do Peixe

E foi também a fé que motivou a construção de uma igreja e um cemitério, onde mais tarde tiveram a companhia de casas de romaria, todas caiadas de enorme brancura, de simplicidade e de mistério. Essas casinhas são dispostas espontaneamente no terreno, por oposição ao desenho organizado dos abrigos da Capelinha.

Esta é a vila de Cemitério do Peixe, nome de um escravo ou então de um padre que jazem um ou outro (ou ambos) lá enterrados – ou, quem sabe, um peixe colhido no rio próximo. Fica num local isolado de Minas, entre Serro e Diamantina.

A vila teria nascido muito tempo atrás a partir de uma doação de um fazendeiro para a capela de São Miguel Arcanjo e para o cemitério, bem como de algumas casas para abrigar padres e fiéis.

A fama de local místico, talvez derivada do cenário do rio e da serra que o envolve, trouxe muitos devotos, que há mais de um século lá realizam uma festividade anual.

Vila de Cemitério do Peixe, banhada pelo Rio Paraúna e abraçada pela Serra do Cipó.

O vilarejo recebe cinco missas por ano no mês de agosto, em dias sucessivos. A cada ano, as casas são pintadas de branco com portas e janelas azuis: é preciso agradar o santo, diz Dona Carlota, uma de suas únicas moradoras.

Durante as festividades, milhares de romeiros se reúnem entre orações, lágrimas, graças e talvez milagres. Ao término delas, as casas são fechadas e permanecem vazias o ano todo, à espera da próxima celebração.

Diz a pesquisadora Graziela Jácome: A festa dos dias de devoção é mantida materialmente pelos fiéis, que contribuem para que esses momentos de fé, que alimentam todo um ano de venturas, sejam mantidos ano após ano, geração após geração, em seu rito e sua tradição. E assim se preserva a tradição desta graciosa vila fantasma.

Biri Biri

Acredito que foi numa época um pouco mais tardia do que nas vilas acima comentadas, que o Bispo de Diamantina resolveu fomentar a construção de uma fábrica de tecidos na região. Seu objetivo era dar emprego às moças órfãs e pobres. Para tal, usou os recursos de sua rica família, que possuía uma grande área próxima à cidade.

Planta baixa da estamparia de tecidos de Biri Biri. A fábrica está à esquerda e os alojamentos no centro.

Por praticamente um século uma estamparia funcionou na localidade de Biri Biri, se bem que com donos sucessivos, até fechar definitivamente em 1975.

É curiosa a petição a Santo Antônio das funcionárias da antiga fábrica: Oh, meu glorioso Santo Antônio, nós miseráveis pecadores, necessitando de vosso auxílio e proteção, vimos a vossa presença pedir-vos que nos concedais a grande graça de vendermos durante este ano toda a produção, com bom resultado e sem ficar fazenda alguma nos depósitos de um ano para o outro; se vós nos concederes esta graça, vos daremos no fim do ano a quantia de 70$000rs para o pão dos pobres.

Com o encerramento das operações, os moradores foram deixando o local, que acabou vazio. Suas terras, que acolhem as delicadas Cachoeiras da Sentinela e dos Cristais, acabaram cedidas como compensação fiscal para a formação de um Parque Estadual, bastante visitado.

O conjunto foi restaurado, compondo o bucólico povoado de Biri Biri, inserido numa concavidade do relevo e dominado pela linda igreja do Sagrado Coração de Jesus.

Vila de Biri Biri, com a visão da igreja e das ásperas rochas à volta.

Afora algum residente envolvido nas facilidades turísticas do local, remanesce um morador – este sim permanente – no túmulo onde jaz (segundo uma das versões) João Antônio Felício dos Santos, o Bispo de Diamantina.

Desemboque

Uma das serras mais peculiares do país é a Canastra, onde existe um antigo Parque Nacional. Seu formato tabular permite que seja atravessado ao longo de sua crista de 80 km.

O ideal é que você penetre a noroeste e saia a leste, próximo de suas maiores atrações, em especial a Casca D´Anta, cachoeira formadora do São Francisco.

O acesso oeste passa próximo a Desemboque, um vilarejo do Triângulo Mineiro que é anterior aos demais deste artigo, todos eles do século XIX. Foi fundado no século XVIII, uma vez afastados os índios araxá e caiapó, como resultado da busca pelo ouro goiano.

Ele serviu também de ligação com a capitania de Goiás e participou da colonização do Centro-Oeste. Chegou a pertencer por meio século a Goiás, antes de retornar a Minas, hoje no município de Sacramento.

Igrejas de N.S. do Desterro e N.S. do Rosário, destinadas cada qual apenas aos moradores brancos ou negros. Só que não há mais pretos em Desemboque.

N S Rosário (Fonte – Joel Silva).

Com o declínio do ouro, o arraial passou a dedicar-se à pecuária e á agricultura, porém de maneira cada vez mais precária: o progresso caminhou para o oeste, deixando Desemboque deserto. Ficou a história de um passado glorioso nas duas igrejas, no cemitério e no casario colonial. Mas, uma vez por ano, seus antigos habitantes se reúnem no período da festa junina para carreada de bois e queima de fogueira.

Vila de Desemboque, com suas duas igrejas e seu casario disperso.

Mas há outra razão para visitar esta vila fantasma, encravada num vale verde circundado pelas montanhas mineiras: a galinhada de Dona Vanuza de Paula, uma das mais famosas da região. Temos uma tradição que é roubar uma galinha do vizinho e depois convidá-lo para comer também. É uma comida de festa e reunião, conta ela.

O jornalista Joel Silva, que lá acampou, diz que Desemboque tem 27 habitantes, duas igrejas, 15 cachorros e muitas histórias.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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