A SERRA DO QUIRIRI EM DOIS TEMPOS – 2ª parte

0

O Elcio se mostrava divido entre retornar comigo ou prosseguir sozinho na caminhada, mas por fim decidiu-se por me acompanhar.


Descemos o Quiriri e repisamos todos os nossos passos até a Pedra da Tartaruga quando a escuridão total nos envolveu definitivamente. Ainda tinha muito campo a percorrer até a entrada na mata e o ritmo diminuiu um pouco, mas depois de algum tempo, vários desencontros e outros comprimidos de Doril finalmente reencontramos a trilha que desce a montanha quando percebi que a dor havia passado. Nem sombra do inferno em que estava há apenas meia hora atrás, se bem que durante a caminhada a dor já tinha se tornado suportável. Descer a noite o que apenas os muito otimistas poderiam chamar de trilha seria uma experiência no mínimo singular e depois de muito confabular me decidi por arriscar o pernoite no alto da serra.

Retornamos ao campo e nos instalamos numa elevação próxima ao riacho. A noite estava maravilhosa e sobre nós se espalhava um manto de estrelas brilhantes, alguns aviões piscavam no horizonte e não tardou para que a primeira estrela cadente riscasse a escuridão e se consumisse bem a nossa frente. O capim estava seco e simplesmente esticamos os isolantes sobre o gramado. Tínhamos água e comida a vontade, então o Elcio começou a luta com seu novíssimo fogareiro a álcool que apesar da surra inicial acabou por funcionar a contento e preparou dois miojos, depois uma feijoada pra mim que comi temeroso do retorno da dor. Ainda bem que o medo não me tirou o apetite e pude dormir de barriga cheia. A noite estava muito convidativa e estendemos o papo até bem tarde antes de cada um mergulhar no seu saco de dormir.

Dormimos ao relento, sem barraca, protegidos apenas pelo isolante e o saco de dormir e durante a madrugada a temperatura despencou até bem próximo dos 8ºC. Acordei umas quatro vezes com muito frio, mudei o lado e voltei a dormir encolhido. Estamos enfrentando um clima maluco, muito parecido com o deserto seco nos Andes. De dia um calor infernal que supera os 38ºC e atmosfera extremamente seca a ponto de ferir a mucosa nasal e a noite a temperatura despenca mais de 30ºC em poucas horas.

Acordamos com o sol despontando no horizonte, o vale coberto por uma espessa camada de nuvens e os campos varridos por uma brisa agradável. O dente voltou a incomodar ao beber o primeiro gole de café quente e isto me confirmou a necessidade de descer, mas o Elcio ainda estava motivado para prosseguir na travessia, então nos dividimos. Passei a ele o que me restava de comida e fiquei com todo o peso inútil de sua mochila. Mais leve, ele partiu novamente para o Quiriri e eu reiniciei a descida da encosta.

Na primeira parte tive poucos contratempos e cheguei rápido ao cume secundário com o sol já forte e muito calor. Fiz uma longa pausa para apreciar a paisagem e aproveitei para tirar muitas fotos quando notei uma nuvem solitária e muito estranha na direção do Araçatuba. Com a teleobjetiva comprovei tratar-se de fumaça se levantando dos campos, mas naquela distância não vi nenhuma chama, nem qualquer indício que denunciasse presença humana nas imediações. Continuei minha descida solitária pela face da montanha e depois a trilha se torna muito confusa.

Numa ocasião passei por um galho marcado com uma tira de plástico amarrada e alguns minutos depois passei por ele novamente. Tinha andado em círculo e precisei redobrar a atenção para que isto não voltasse a acontecer. Nos locais mais confusos bastava olhar para o chão e não tardava a encontrar papel de bala. Algum sujeito teve o cuidado de marcar o caminho espalhando embalagens de bala de banana, depois um pé de bota, sacos plásticos, filtros e carteira de cigarros. Não tinha erro, a civilização me orientava de volta a ela.

Parei no cruzamento com o Rio Trovoadinha e tomei um bom e refrescante banho com direito a troca de roupa e muita preguiça. Depois do banho cruzei pelo pasto até a estrada e num piscar de olhos estava tomando um delicioso suco de milho defronte a BR376. Subi voando a Curitiba para ser medicado, mas perrengue que é bom não tem fim.

PEDRA DA TARTARUGA AO PICO GARUVA – Baseado no relato do Elcio Douglas
A noite tivemos um belo e tranqüilo bivac sob luz das estrelas. Na manhã do dia seguinte o Julio parecia bem, mas mesmo com o dia espetacular que havia recém nascido, se recusou a continuar a travessia. Às 8:30h com tudo na mochila, iniciamos a descida. O Julio tava a fim de conversa, mas eu descia em silêncio, tentando encontrar uma única razão para voltar sem realizar a sonhada travessia. O dia estava perfeito, sem uma única nuvem no céu, estava totalmente descansado e com energia transbordando pelos poros.

Após 45 minutos de descida, parei subitamente e declarei minha intenção de seguir em frente, perguntando ao Julio se sentia segurança em retornar sozinho pela trilha. Sempre seguro e muito objetivo, disse que sim, então lhe transferi algumas coisas para aliviar meu peso, pois em virtude do atraso, teria que voar por caminho desconhecido pra tentar chegar a algum lugar antes que o dia termine.

Agora vejo que arrisquei demais, e fora a adrenalina que me fez voar baixo, levei muita sorte. Ele me deu seu excedente de comida, bolachas e barras de cereais enquanto lhe repassei a barraca mesmo sabendo que poderia me arrepender amargamente desta decisão. Na despedida trocamos recomendações de cuidado. Comecei a subir desesperado, feito louco, então lembrei dum detalhe importante e comecei a armar o perrengue da noite. A chave de casa havia ficado no carro e como chegaria muito tarde, ou muito cedo no dia seguinte, tendo que acordá-lo, decidi combinar antecipadamente o que fazer. Aos berros para não perder ainda mais tempo, estabelecemos um contato.

Pedi para deixar minhas chaves na casa do Moisés, que fica perto da rodoferroviaria. Por que não lembrei de pedir o mapa topográfico que o Marcelo Brotto nos deu em vez de falar das chaves? Estava feita a besteira, mal sabia eu o quanto iria me arrepender de não ter ficado calado. Segui em ritmo alucinado e em 15 minutos subi o que havia levado 45 para descer, chegando novamente ao local de acampamento, e logo depois no rio, onde bebi muita água e enchi a garrafa. Então, pra variar, veio outra idéia louca na cabeça. Seria um desperdício de tempo voltar à Tartaruga e contornar o vale pra chegar ao colo que levava ao morro da antena. Decidi cortar caminho, mesmo sem saber o que encontraria pela frente.

De cara peguei uma subida empinada, e cheguei suando rios ao topo dumas grandes pedras. Minha camisa estava encharcada. Tomei um fôlego e segui em frente, pois não podia me dar ao luxo de descansar, e nem beber água. Estava feliz, pois a caminhada rendia espantosamente bem. As 10:30h da manhã estava novamente no morro da antena. Mal acreditava que há uma hora e quinze atrás, deixara o Julio próximo a pedra do mocó. Mas dali não tinha jeito, sabia o que tinha pela frente, ou melhor, imaginava. Sendo assim fiz um suco e comi umas bolachas, enquanto triste e preocupadamente observava um grande incêndio muito ao longe, pro lado do Araçatuba.

As 10:40h coloquei a mochila nas costas e prossegui. Recusei-me a descer pela estrada erodida, e segui pelos campos até me deparar com um imenso vale. Levaria o dia todo para cruzá-lo, e sendo assim, decidi contorná-lo. Passei por um vara-mato, depois outro e cheguei numa cascata duns 10m, mais abaixo estava o rio principal onde ela desembocava. Fui até ele, cruzei e comecei subir forte do outro lado. Resumidamente, estava contornando o imenso vale logo no inicio da sua vertente. Enquanto subia, o calor só aumentava, e o sol a pino. Muitas vezes pensei se realmente tinha feito a coisa certa em prosseguir em solitário com esse plano maluco. O visual magnífico e o tempo bom, sem uma única nuvem no céu, me animavam a prosseguir.

Mais a frente, encontrei uma cerca de arame farpado subindo a 45 graus. Decidi não cruzá-la, seguindo-a em paralelo até o topo da crista onde interceptei um carreiro de gado bem batido e uma porteira. Fui em frente seguindo o rastro depois de cruzar a rústica porteira de arame enferrujado e retorcido. O visual ficava cada vez mais deslumbrante, e a única tristeza que sentia, era a falta de amigos para repartir aquele cenário espetacular. Segui por horas e horas esse caminho de vaca, e mesmo desconhecendo onde estava, sabia perfeitamente para onde queria ir, e a única coisa que me restava era apostar naquele caminho, que as vezes ameaçava desaparecer, mas que no pânico fazia aguçar todos os meus sentidos de modo a farejá-la, sem nem pensar em perder aquele rastro.

Lá se foram mais algumas horas, e a sede retornara forte, a água havia-se ido havia muito tempo. Quando o calor tornara-se realmente infernal voltei a escutar barulho de água, mas não podia me dar ao luxo de ir até ela, e sendo assim, só podia esperar que a tênue trilha fosse cruzá-la. Antes de saber se isso aconteceria, observei uma montanha diferente das demais que já tinha visto por ali. Era imponente, e conclui que só poderia ser o Monte Crista, e que se não fosse, provavelmente estava fora da rota, e pior ainda, numa tremenda roubada. Passava das 15:00h e segui rezando pra ser o Crista.

Logo adiante, como presente divino, notei que a trilha estava na eminência de encontrar o rio, então acelerei os passos que já eram largos. Bebi o rio todo, e só fui embora depois de empanturrado. Segui algum tempo com o rio a minha esquerda, percebendo então que ele faz uma curva longa à direita, contornando a grande montanha que havia observado. Tamanha foi minha surpresa ao ver duas barracas na encosta. Era um forte sinal de civilização e finalmente conclui que chegará a algum lugar, e só poderia ser o Monte Crista.

A trilha novamente segue para o rio, desta vez para atravessá-lo, então notei vozes logo abaixo. Ávido por informação, desci pelo rio ao encontro destas vozes. Eram três caras e duas gurias almoçando num belo recanto sombreado, fumaça de cigarro contaminando o puríssimo ar daquele lugar, mas fiquei muito feliz de ver pessoas novamente. Para espanto geral perguntei onde estávamos. Pouco abaixo do Pico Garuva foi a resposta. E o Monte Crista? O melhor informado só disse-me que ficava muito longe dali, e que não sabia de nenhuma trilha para lá. Continuei o interrogatório perguntando quanto tempo até o topo, onde a trilha termina, mais +…

Animei-me muito com as informações, pois agora sabia que caminhando a noite chegaria em casa naquele mesmo dia. Disparei rumo ao topo não mais por caminhos de vaca, mas por trilhas de montanhismo, fazendo em 20 minutos o que elas haviam dito que levaria 45. Então conclui que conseguiria descer em 2 horas, cortando pela metade o tempo informado ou ainda menos. Tranqüilo, tomei outro suco no topo do Garuva, e às 16h iniciei a descida em ritmo mais alucinante do que nunca. Minha meta agora era chegar de dia em Garuva, de preferência num horário bonito e redondo, 18h.

Pouco abaixo do cume, cheguei num selado, a esquerda desce a montanha e reto sobe uma bela formação rochosa, que mais tarde descobriria chamar-se Pico da Jurema (1239m). Trezentos metros abaixo vi um acampamento com varias barracas onde imaginei conseguir mais informações sobre a topografia deste lugar, mas foi triste não encontrar nenhum montanhista por ali,  somente aquela raça abominável debaixo de lona preta, armados de machado em meio a arvores cortadas para a fogueira e muita baderna. Que bom que os alienados não chegam ao topo por medo de serem abduzidos pelos alienígenas. Usei de todo meu talento de ator para portar-me com educação com aquela gente, e escapar ileso. Passei batido na certeza de que nada do que diriam poderia me interessar e já eram 16:30, enquanto via Garuva muito abaixo ainda.

Descendo muito rápido iniciei uma brincadeira pra me distrair. O altímetro do relógio atualiza a altitude a cada 2 minutos e queria ver o máximo que podia baixar neste espaço de tempo. Isso me motivava a ser mais rápido e consegui descer na média de 30 ou 40 metros a cada 2 minutos. Depois de certo tempo notei que chegado aos 250 m.s.n.m. a pernada se esticava horizontalmente, acabando com a brincadeira e mesmo correndo muito, não conseguia mais do que 5 ou 10 metros a cada intervalo. Fiquei bastante irritado e por volta de 17:40h finalmente encontrei linhas de alta tensão, e logo à frente, a estrada. Garuva estava perto, e que talvez fosse possível cumprir a meta do horário bonito (18h), então apertei mais ainda o passo. Bingo! Exatamente às 18h, cheguei na BR.

Continua com a parte final

Compartilhar

Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

Comments are closed.