1 mês de escalada técnica na Cordilheira Branca – Parte II

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Na Casa de Guias em Huaraz é possível obter informações e fotos recentes de outros escaladores sobre as condições das montanhas. Marquei com o Beto de nos encontrarmos por lá no final da tarde pra decidir onde iríamos na próxima semana. O Alpamayo estava com um bloco de neve solta prestes a cair, bem em cima da Direta Francesa (rota que íamos escalar), muito visível numa foto de algumas semanas antes (parecia aqueles montinhos de chantilly em bolo), além de estar com muita neve na parede.

 
 
ARTESONRAJU, 6025m
Aresta Norte, D
 
Condições obviamente ruins. Lembrando dos dois guias que morreram no começo da temporada na Direta Francesa justamente por conta de queda de um bloco, cortamos de nosso itinerário. O Arteson aparentemente também estava com bastante neve na geleira, mas como a rota e a parede ficavam em outra face, estaria em melhores condições e valia a tentativa. A face sudeste estava fora de cogitação por conta da grande quantidade de neve, assim como praticamente todas as grandes paredes de gelo da Cordilheira.
 
O Artesonraju fica no mesmo vale do Alpamayo, o de Santa Cruz, porém do outro lado. Também é menos conhecido, porém ligeiramente mais difícil. Para aproveitarmos melhor a aproximação, decidimos fazer o trekking de Santa Cruz (o Arteson fica no meio do caminho) de Vaqueria a Cashapampa, ao invés de sair e chegar em Cashapampa. O plano original seria fazer tudo em 7 dias – o trekking em 4 e Arteson em 3, com 1 acampamento na moraina e outro mais alto na geleira.
 
De Huaráz tomamos um "colectivo" que vai pelo mesmo caminho que fizemos para o Yanapaccha, porém vai mais além, cruza Portachuelo (uma passagem alta entre os vales de Llanganuco e Morococha), e desce em direção ao pequeno povoado de Vaqueria. De lá organizamos os burros e partimos em direção a Huaripampa, onde iríamos acampar a primeira noite. Esse primeiro dia é tranquilo, são 3 horas caminhando através de pequenos povoados e depois pastos selvagens, até finalmente chegarmos a uma área mais erma, logo atrás do vale de Parón. Nesse percurso conseguimos ver a assustadora face leste do Chacraraju Este, além da face leste da Piramide de Garcilazo, e das arestas do Paria – todas montanhas extremamente técnicas e belíssimas, super carregadas de neve.
 
O segundo dia nos leva desse acampamento de Huaripampa até o acampamento base do Arteson, ou Taullipampa. Começamos a subir suavemente pela parte direita do vale, até atravessarmos para a esquerda e aí sim começar uma subida mais íngreme pela encosta. Conforme ganhamos altitude vamos subindo por rocha até avistarmos, cada vez mais perto o Taulliraju – o 5000m mais difícil da Branca – e Punta Unión, uma falha na rocha entre os dois vales, que na verdade é um corredor perfeito de rocha que liga um vale ao outro. A passagem por Punta Unión é inesquecível: você sai do vale de Huaripampa com sua única grande montanha visível e pastos a perder de vsita para, em mais ou menos uns 8 metros, dar de cara com o vale de Santa Cruz e todos seus picos impressionantes. Logo à direita vemos a face oeste do Taulli, sua geleira pendurada em encostas super íngremes sobre uma laguna verde água; logo depois Rinrijirca e mais ao fundo as faces menos conhecidas do Quitaraju e Alpamayo; bem à esquerda vemos as arestas do Pária; e bem proeminente, à direita do Pária, vemos imponente o Arteson, e sua recortada geleira norte. Foi emocionante atravessar aquele corredor e logo de cara já identificar, em tempo perfeito, o principal objetivo da viagem, esperando ali por nós, com tempo perfeito.
 
A subida que tinha sido puxada ficou pra trás e fomos descendo, pelo menos eu, embasbacada com o vale à frente (e tropeçando de vez em quando). Rapidamente alcançamos o acampamento base, onde mais uma vez nos entupimos de comida e fomos dormir cedo. No dia seguinte teríamos um dia parecido com a subida ao campo alto do Toclla. O dia estava ensolarado e o tempo firme, então decidimos subir até o acampamento moraina e de lá fazer um ataque direto ao cume ao invés de fazer mais um acampamento na geleira.
 
Vale dizer que durante a tarde presenciei a maior avalanche que eu já tinha visto: um pedaço gigantesco daquela geleira pendurada do Taulli se desprendeu e caiu pela parede íngreme da montanha em direção à laguna. Tendo passado ali do lado horas antes, eu tinha plena noção do tamanho do estrago que ocorria bem ali na minha frente. Foi mais uma lembrança sobre o lugar onde estávamos, e o que estávamos fazendo. Só não filmei porque após ouvir o estrondo saí correndo da barraca sem nada, e fiquei ali boquiaberta observando as toneladas de gelo caindo como uma cascata. Se eu estivesse mais perto, certamente poderia dizer que foi assustador.
 
Cedinho levantamos e desta vez eu tinha uma novidade: cansada de carregar peso inútil em excesso, consegui me livrar da mochila de 85L e enfiar todo o equipamento (o sleeping ficou pra fora) na mochila de 42L. Além de não colocar coisas que eu não usei nas outras montanhas, essa mochila menor é 2 quilos mais leve que a outra, apesar de menos confortável. Enfim, aos poucos vou aprendendo a ir mais em "estilo alpino"… A subida ao acampamento moraina do Arteson é dura. Seguimos pelo lado esquerdo do vale por uma parte do pasto, atravessamos a área de debris da uma avalanche antiga (areia e rocha), até chegarmos à aresta mais baixa do Arteson. Cruzamos a área de bosque e subimos uma trilha íngreme até passarmos pra direita no começo da área rochosa, e finalmente, alcançarmos o acampamento. Foram exatas 4 horas sob sol forte e subida difícil, e mesmo com menos peso que no Toclla, cheguei mais cansada. Mas pelo menos o tempo estava firme, e tendo chegado mais perto da geleira, depois de observar percebemos que não tinha tanta neve assim, e que a ponte de gelo mais importante pra nós parecia em bom estado. Nas minhas observações silenciosas ainda notei que a geleira tinha alguns degraus íngremes porém várias partes planas, ou seja, era atravessar a geleira com cuidado pra ganhar a parede de 240m feita em 4 enfiadas, e mandar ver. 
 
Antes de começar a escurecer já nos entocamos na barraca, pois a escalada seria longa e dura. No final da tarde começou a ventar, e o vento foi ficando mais forte durante a noite, ainda assim, estava num nível tolerável para fazermos a rota. De qualquer maneira, sabendo que a crista é muita exposta, se o vento aumentasse poderíamos só fazer a parede e descer, e eu já ficaria feliz com isso. Escutamos duas avalanches nesse tempo, uma no Paria, e outra no Arteson. Acordamos antes da meia noite, e o céu estava preto pois era lua nova, e mesmo o facho mais forte da headlamp não parecia tão forte assim. Depois de uma meia hora chegamos na geleira, já com vento um pouco mais forte. Aí começou mais uma sessão intensa de aprendizado e já quebrei a cara. O começo da geleira do Arteson tem muitos traga hombres – pequenas gretas de gelo que são facilmente cruzadas porém frágeis e bastante enrrugadas. Logo de cara a inclinação já era de 60 graus. Depois de cruzar essa parte já entramos numa área de penitentes, com inclinação ainda maior, e subimos em diagonal para a esquerda, para alcançar o primeiro degrau. Antes de entrar o Beto comentou comigo pra seguirmos subindo, mas que seria complicado entrar na parede com vento forte dessa maneira. Silenciei na esperança de que o vento voltasse ao normal e seguimos subindo. Daí temos uma pequena parede de 20 metros com neve e gelo a 80 graus. Escalamos essa parte, e dá-lhe mais espanco, pois daí cruzamos pra direita em diagonal numa encosta a 70 graus de neve, que não acabava nunca. Nessa hora o vento já estava levantando neve solta e vez ou outra eu levava uma chicoteada de neve na cara e até nos olhos. Quando terminamos essa parte, já estávamos próximos à parte mais alta da geleira, e aí sim, o vento pegou de vez. Mesmo com as duas piquetas enterradas na neve, as rajadas de vento nos empurravam contra a parede e quando elas vinham era impossível se mexer, tínhamos que parar, encolher, e esperar passar para seguirmos. Chegamos então à ponte de gelo que nos levaria ao próximo degrau e à última parte da geleira antes da parede. Beto tentou avaliar a ponte por cima, e quando subiu, ela começou a ceder. Tentamos então entrar na greta pra ver se era possível algum tipo de contorno, e fato é que se passássemos os dois ela certamente iria ceder, e depois ficaria complicado achar passagem para voltar, ainda mais em se levando em conta que não daria pra entrar na parede com esse vento, pois certamente seríamos arrancados.
 
Com o vento insuportavelmente forte, resolvemos sentar embaixo de uma caverninha de gelo um pouco mais protegida das rajadas, a mais ou menos 5500m. Por uns 10 minutos, com temperatura a -9 e sensação térmica de -16, ficamos os dois quietos, com o olhar perdido, meio que conversando telepaticamente, pois nenhum dos dois queria atestar o óbvio. Frio, fome e sede, e mesmo com água (a minha congelou), comida, mitts e casaco de pluma na mochila, permanecemos os dois imóveis. Em um momento perguntei "e aí, o que fazemos?", e o Beto respondeu brincando "esperamos por um helicóptero", deixando latente a sensação de ambos: não queríamos sair dali. Queríamos muito a parede. Ainda não queríamos acreditar que a ponte não estava boa, que o vento estava forte. Estávamos no limite de tomar uma decisão sensata ou de seguir e fazer besteira, e talvez seja essa a sensação da tal "febre do cume" (nesse caso "febre de parede").
 
Mas esse momento de transe só durou até ouvirmos em alto e bom som um "ploc" na parede oposta da greta. Na hora, e ao mesmo tempo que ele disse "vamos", eu disse "let's go". Levantamos em meio segundo, pulamos pra fora da greta, e começamos nossa descida pelo mesmo caminho. Foi sair da caverninha pra perceber que, adivinha, o vento estava ficando cada vez mais forte. No começo da desescalada o vento me derrubou duas vezes, mesmo com as "4 pontas" na parede. Depois de descer aquele degrau de 20 metros, cruzamos literalmente correndo, uma zona recente de avalanche, e descemos num ritmo aceleradíssimo, saltando gretas até chegarmos na área de traga hombres, onde, um pouco desorientada, e sem conseguir achar as marcas de crampon no gelo, acabei errando o caminho algumas vezes. Agravava o fato de que a cada 3 passos que dávamos, escutávamos mais um "ploc" embaixo de nossos pés. Uma energia extra apareceu nos dois e saímos quase voando da geleira. Uma vez em "terra firme", tivemos mais um longo momento de silêncio, rompido por alguns palavrões do Beto, bravo pelas condições, já que tínhamos subido num ritmo super bom e estávamos os dois num tesão enorme de escalar aquela parede.
 
Na hora não me bateu a frustração, mas sim o bom senso e alívio de estarmos fora da geleira. Parecia que uma situação ruim estava se construindo em cima da outra enquanto estávamos lá, e meu alívio de poder sentar numa rocha fora daquele monstro foi gigantesco. Voltamos ao acampamento próximo das 4 da manhã para algumas horas de sono antes da descida. Ou tentativa de dormir, já que o vento continuava ficando mais forte, ao ponto de levantar a base da barraca embaixo de mim. O mesmo vento continuou até iniciarmos a descida, e mesmo quando chegamos no acampamento base, ainda ventou muito, mas com menos força que lá em cima. Ao mesmo tempo que minha frustração de não ter escalado a parede começou a aparecer, o bom senso do Beto ressurgiu, e ele também entendeu que tivemos sorte na mudança de estratégia, e foi mais sensato sair correndo dali do que seguir em frente. Bastou acordar no dia seguinte e ver a enorme nuvem de neve que saía do cume do Arteson por causa do vento forte pra entender que por 1 dia, não entramos numa roubada maior ainda. Foi com certeza meu maior perrengue em alta montanha, mas foi também emocionante. 
 
Emocionante pois, apesar do Toclla ter sido uma montanha de graduação D, lá a graduação não é constante, e a parte em que passamos com certeza era apenas PD. No Arteson não, as dificuldades foram constantes desde a entrada na geleira, em todos os sentidos – a inclinação, a demanda física, as decisões que tivemos que tomar, o clima ruim, a proporção de tudo. Na tarde que passamos no acampamento base tive oportunidade de refletir sobre o dia anterior, e tive noção de que o Arteson foi, quase com certeza, minha primeira montanha realmente séria – ou como dizem os peruanos uma "montañassa", que exige uma responsabilidade e um preparo que vão além dos conhecimentos básicos, ou de uma preparação física sazonal, ou de uma pequena aventura de férias. Senti que, mesmo com todos os elogios acerca do meu condicionamento físico que realmente estava muito bom, eu precisaria ir um pouco além para chegar na parede e fazer todos os procedimentos de segurança com certo conforto. Levei um tapa na cara em termos de orientação na moraina e na entrada da geleira, pois todos aqueles traga-hombres e penitentes enormes eram novidade pra mim, e com a tensão da decida, me desorientei em uma parte bastante perigosa. Atravessar correndo (sim, correndo!) uma área de avalanche e ter o bom senso de tomar decisões no auge do tesão de escalar uma parede de gelo… digo isso pois se não fosse o "ploc" da parede da greta, ou se fosse uma decisão unilateral, certamente teríamos seguido em frente, no que não teria sido uma decisão inteligente.
 
Cansados e frustrados, resolvemos pular o pernoite em Llamacorral e ir direto pra Cashapampa pra poder regressar pra Huaraz. Sequer pudemos ver as faces famosas do Quitaraju e Alpamayo, além da face sudeste do Arteson, desde um mirante no meio do caminho, pois estavam todas cobertas de nuvens. Depois de 5 horas de caminhada, chegamos ao ponto final onde tomamos uma gelada, e conseguimos um taxi pra levar a tralha até Yungay. De lá tomamos um colectivo pra Huaraz.
 
No dia seguinte encontrei com o Beto para discutirmos a próxima montanha. Talvez a parede do Pisco? Huascaran em 4 dias ou pelo Escudo? Ou então uma paredinha pequena porém super técnica no Urus Este? Visto que estavámos todos muito fortes e doidos pra escalar, porém as montanhas estavam quase todas fora de condição (era óbvio, a temporada de escalada técnica havia acabado), o Beto sugeriu uma desconhecida e pouco visitada, bem próxima de Huaraz, e que poderíamos fazer em 2 dias.
 
HUAMASHRAJU, 5434m
 
Variante da (não lembro o nome da via), D 140m, V+/M3/70º
 
O Beto amanheceu com piriri forte, então chamou o Miguel pra ir comigo a Humashraju, a primeira montanha a leste, no maciço do Huantsán. Dizem que em quechua Huamashraju significa a "montanha do medo", mas não entendi muito de onde vem isso. Talvez porque a formação dos pingentes de gelo da parede lembrem enormes bocas monstruosas (eu li isso num relato, e realmente parecem). Sem muito tempo pra pesquisar, aceitei pois o Beto falou que era bem técnica e ainda tinha uma enfiada de escalada mista (dry-tooling) o que seria uma boa experiência pra mim. Na saída de Huaraz ainda conheci o Mono, que nos emprestou os TCUs, e é um guia também com muitos FAs bem técnicos na região, e batemos um papo rápido antes de sair.
 
Depois de 1 hora de carro chegamos ao ponto de partida para o acampamento moraina (já estava com ódio de morainas e penitentes nesse ponto, mas ia ficar pior). A trilha não é muito marcada, e, tendo tomando algumas cervejas a mais do que deveria no dia anterior, senti um cansaço maior que nas outras montanhas. Mesmo assim chegamos no acampamento em menos tempo que o previsto. Fizemos as devidas observações da rota, que parecia mais divertida que complicada, comemos um montão (macarrão, mas eu estava sonhando com hamburguer), tirei umas fotos do por-do-sol e capotamos até o despertador tocar. 
 
Que despertador? Acordamos meia hora atrasados na maior preguiça, mas lá fomos nós enfrentar quase 2h30 de moraina. Sim, Huamashraju é uma montanha que tem uma moraina grande e pouca geleira por conta de derretimento, que lá é mais extremo que em muitas outras montanhas. Muitas escalaminhadas de bota plástica depois, finalmente chegamos no começo da geleira. De novo, quebrei a cara. Tivemos que atravessar 2 áreas com penitentes enormes e íngremes logo de cara. Felizmente eles foram se reduzindo a um tamanho relativamente administrável, e quando o sol começou a nascer alcançamos a única parte sem penitentes do percurso, uns 150 metros de neve bem dura com pouca inclinação. Descansamos um pouco e observamos os tons da alvorada sobre as luzes de Huaraz lá embaixo, enquanto eu comi uns chocolates imaginando que eram hamburguers. Logo depois disso, já subimos uns penitentes menores para começar a escalada propriamente dita, logo abaixo da rimaia. 
 
O Miguel saiu guiando a primeira enfiada em diagonal, e a parede era praticamente só gelo com uma fina cobertura de neve em alguns lugares. Mesmo a inclinação não sendo muito extrema, uns 70 graus, pelo fato de o gelo estar bem duro na maior parte, foi um pouco cansativo pela dificuldade em fixar bem as piquetas. Como uma das minhas era híbrida, assim como no Arteson, terminei a enfiada com um formigamento extremamente doloroso na mão esquerda. Não sentia muito os dedos, e apesar de movimentá-los, parecia que a dor só aumentava. Fiquei preocupada de ser um resfriamento mais grave e de ter aparecido tão abruptamente, mas descer ali não tinha sentido e não ia ajudar em nada. Passei alguns minutos sofrendo enquanto o Miguel se preparava pra iniciar a segunda enfiada. Mas tão rápido quanto veio a dor, felizmente também passou bem rápido. Definitivamente, pra próxima temporada, tenho que investir sério numa luva que preste, e em outa Viper pra fazer companhia pra minha. O dia já estava clareando bem e isso ajudaria a não sentir isso na próxima enfiada.
 
Nossa parada estava embaixo dos tais seracs com os pingentes de gelo, e enquanto dava seg pro Miguel fiquei admirando aquele cenário novo que em montanhas menos complexas costumamos admirar apenas de longe. Iniciei uma escalada com leve diagonal pra esquerda, depois a travessia, e finalmente cheguei à parte rochosa: blocos de granito liso vermelho com algumas fendas perfeitinhas, onde depois de algumas tentativas finalmente consegui encaixar as piquetas pra poder progredir. E foi assim por uns 12 metros até chegar na segunda parada. Mais uma experiência nova no bolso! A partir daí guardamos as piquetas. Fizemos uma travessia bem exposta e depois uma escaladinha de 3º grau até o cume, onde o tempo estava abertíssimo e quase sem nuvens. 
 
De lá de cima, à nossa direita, conseguimos ver quase todas as montanhas do vale de Ishinca, além do Churup e, finalmente, a oeste, o grandioso Huantsán, o 6000m mais difícil da Blanca, e talvez um dos mais difíceis de toda a Cordilheira dos Andes, por isso sua fama de "K2" dos Andes, além da forma semelhante. Assim como no Taulliraju, nesta temporada não existe registro de ascensão ao Huantsán, e ver ao vivo uma montanha dessa é realmente impressionante.
 
Mas como tudo que é bom dura pouco, tomei mais uma dose de tapa na cara ao começarmos a descida. Sim, porque uma das características de graduação mais alta de rotas de alta montanha é que as descidas costumam ser mais complicadas, e isso eu aprendi de novo, nesse dia, de maneira ainda mais cansativa, pra não dizer infernal. Desescalamos toda a parte de rocha e iniciamos a descida pela via "normal" pra economizar um rapel. Encontramos uma estaca enterrada 1/3 no gelo, e colocamos mais uma pra garantir. Só fomos perceber na hora que eu comecei a rapelar, que estávamos bem na borda de uma cornija, e que nossa estaca atravessou a parede, mas mesmo assim estávamos em dois pontos e deu pra descer. Só que cheguei no final da corda e por conta do gelo, e apesar de ter batido feito uma maluca, não consegui enterra a estaca, então acabei fazendo uma plataforma pro pé direito e me ancorando na piqueta. Está longe de ser uma ancoragem ideal, mas imaginei que o Miguel fosse descer rápido, então tudo bem. Mas tá, o Miguel desceu e fomos puxar a corda, e ela tinha congelado na borda da cornija. Tiramos par ou ímpar (mentira), e o Miguel escalou tudo de novo pra liberar a corda, à base de muito palavrão.
 
Mas essa foi a parte fácil da descida. Passamos pela parte "limpa" e logo em seguida começou o tormento de desescalar gelo e os penitentes malditos de mais de 1 metro de altura, tropeçando vez ou outra. Só sei que não via a hora de tirar os crampos e aquela bota, xingando os penitentes em todas as línguas que eu conheço. Quando finalmente saímos da geleira, pensei no hamburguer que comeria na volta à Huaraz, tirei toda a tralha e comi meus Oreos de chocolate pois ainda tínhamos a moraina maldita até o acampamento. Descemos bem rápido, descansamos uma meia hora, tomamos uma sopa e iniciamos a descida até onde íamos esperar o carro. No finalzinho, chuva de granizo. Problemas mecânicos superados, em Huaraz finalmente comi um hamburguer gigante e mais algumas coisas que deixaram o Beto um pouco horrorizado com minha capacidade estomacal.
 
HATUN MACHAY
 
Eu ainda tinha 3 dias pra brincar na região, e o Beto tinha sugerido descansarmos um dia  e fazermos a rota normal do Pisco ou do Vallunaraju nos outros 2 dias, que por serem de graduação baixa e sem partes técnicas, ainda eram viáveis mesmo com bastante neve. Mas o fato é que, além de só pensar em escalar, de estar já realmente cansada no Humash, e pensando no clima que ficava cada vez pior (precipitação nas montanhas a cada 2, 3 dias), além de estar bastante satisfeita com os objetivos cumpridos, decidi que seria mais divertido "descansar", e então decidimos ir pra Hatun Machay por uns 2 dias.
 
Excelente ideia! Hatun Machay é um paraíso da escalada esportiva e boulder, a 2h de Huaraz, e um dos crags mais altos do mundo, a 4200m. É um vale com milhares de pequenas torres (até 40m) de rocha vulcânica, além de infinitos blocos de todos os tamanhos e formatos. Existe já uma dúzia de setores abertos, mas apenas na borda da primeira parte do vale. O potencial é difícil de ser quantificado, pois o lugar é gigantesco. Dá pra dizer que talvez seja uma 100 vezes maior que o Cipó. Pra completar, no caminho pra lá dá pra ver a Cordilheira Huayhuash de longe, com seus majestosos Yerupajá, Jirishanca e Siula despontando ao alto. Uma visão impressionante, senão intimidadora, mesmo de longe.
 
Por lá encontramos o Cesar, um amigo do Beto, que eu já tinha conhecido em Huaraz. Ele é guia aspirante de montanha, mas escala muito em rocha, e estava acompanhando dois escaladores patrocinados pela Adidas além de uma equipe de filmagem. Eram nada menos que Edu Marin e Dani Moreno, e a equipe de filmagem não menos importante, tinha dois feras dos filmes de aventura de uma das mais importantes produtoras desse nicho a nível mundial. Todo mundo gente boníssima: escalam forte e são super simples, extremamente amigáveis, e sem preconceito e estrelismo nenhum, fora o nível e a quantidade de besteira que os dois falam… Se misturaram a outros escaladores que estavam lá como se fossem gente comum (e são não?), e só não interagiram mais pois afinal de contas, estavam lá "a trabalho" e tinham muita coisa pra filmar.
 
No total entrei numas 6 ou 7 vias e, apesar da rocha ser bem abrasiva, depois de algumas vias a gente se acostuma, desde que a via esteja no sol. Fiquei um pouco confusa com a graduação francesa e às vezes entrava numa via fácil demais ou difícil demais, mas estava lá pra brincar e me divertir, e foi isso que fiz até o dia seguinte, acompanhada dos novos amigos e finalmente relaxando. Chegamos em Huaraz no começo da tarde, almoçamos e já começamos a comemoração e minha festa de despedida. Intervalo apenas para banho e jantar, fizemos um circuitão pelos bares de Huaraz, com direito a filme de escalada, campeonato de pebolim e muita risada até quase o sol nascer.
 
No dia seguinte fui tomar meu último café da manhã (apesar de que às 13h é almoço né) no Cafe Andino. Acompanhada do omelete gigante, do bolo de chocolate seco, 1 litro de suco pra curar a ressaca e do tradicional capuccino, aproveitei as últimas olhadas na Cordilheira, já com dor no coração de ter que partir, de saber que as montanhas estavam "se fechando", e que cabe a nós montanhistas exercitar a paciência até que elas estejam abertas de novo pra nós, na próxima temporada. Fui folheando o guia do Brad Johnson e já estudando os projetos pro próximo ano, ainda digerindo tudo que tinha passado naquele lugar mágico nos últimos 30 dias. De tarde terminei de fechar as malas, me despedi de mais algumas pessoas, e ainda tive tempo pra uma última cerveja antes de voltar pra Lima. De novo tive aquela sensação de, em vez de estar indo pra casa, estar indo embora de casa.
 
Não é a toa que existe um grupo, senão um nicho, de escaladores de todas as partes do planeta que voltam à Cordilheira Branca todos os anos, sedentos por conquistar suas paredes de gelo e desbravar faces virgens ou já bastante escaladas, na maior parte das vezes, sem chegar ao cume. Em nenhum outro lugar cabe tão bem a frase de Peter Croft, de que "é uma espécie de ideia ignorada, a ideia de fracasso magnífico, em vez de um sucesso medíocre". Inexplicável a sensação que tive, olhando uma foto do Cayesh, quando perguntei ao Beto, "pra que escalar uma montanha de 8 mil quando se pode escalar isso?" A Cordilheira Branca hipnotiza, te absorve, te pesca, te desafia a conquistar e a se superar. Fui fisgada desta vez, e vamos ver o que sai na próxima temporada. O destino já está escolhido. 
 
AGRADECIMENTOS
 
Antes de tudo, gostaria de agradecer à minha família pela paciência eterna com a minha pessoa. Um grande obrigado também aos amigos Márcio e Pri, parceirassos de escalada no Brasil e que tiveram que aguentar meus relatórios semanais de treino, mas deram a maior força desde sempre. Devo um obrigado à minha equipe no trabalho, sempre preocupada com minhas andanças, mas que segurou uma bucha forte nesse mês que fiquei fora. Vocês são 10! No Peru, um obrigado gigantesco ao Beto e Abraham pelos conhecimentos, força, ensinamentos e papos de montanha. Georgina, irmã do Beto, e Zarela, que foram como mães. Ao Miguel pela parceria no Huamash. Cesar pelos betas em Hatun e pela amizade que criamos, Edu, Dani, Max, Franz e toda a equipe de filmagem pela ótima festinha de despedida e companhia nos meus últimos dias por lá. Um obrigado a um sem número de guias e escaladores que conheci, pelas informações sobre as condições de montanhas, companhia e papos, a maioria gente que infelizmente nem deu tempo de pegar contato por desencontro, às vezes eles na montanha, às vezes eu, mas que tornaram os dias em Huaraz mais coloridos e alegres.
 
Finalmente, um obrigado enorme à (utópica) comunidade de montanha e escalada de Huaraz. Gente fortíssima mas com uma simplicidade e humildade incríveis, e que me acolheram desde o momento em que desci do ônibus em Huaraz.
 
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Sobre o autor

Nômade por acaso, Cissa Carvalho nasceu em São Paulo, já morou no Alabama e na Amazônia, e atualmente reside na capital Paulista até que os ventos novamente a levem pra algum destino inusitado do planeta. Trilha desde pequena e conheceu as montanhas com vinte e poucos anos, mochilou a América do Sul, andou pelas montanhas brasileiras e nos últimos anos tem se dedicado ao montanhismo de altitude, e mais recentemente à escalada em rocha. É bacharel em design gráfico e pós-graduada em design editorial.

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