Conquista duma via de trekking

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Já tenho a minha tenda favorita na Estrada do Mar quando vou a Praia Grande. É a tenda do Veio. Mal se desce do carro, um atendente avança em minha direção e oferece petiscos variados: pedaços de abacaxi, salames, queijos de variadas qualidades, arrematando o banquete com biscoitos. Meu lanche da tarde é de graça, hehehe.

Chego à tardinha na pousada Colina da Serra, e uma lua quase cheia aponta no céu limpinho de nuvens. Mariazinha espera dois hóspedes, motivo pelo qual a janta é servida no refeitório. Quando só estou eu aqui de hóspede, prefiro fazer as refeições na cozinha, super quentinha, graças ao fogão a lenha sempre aceso.

Um aconchego só! A comidinha caseira que a gringa oferece está super apetitosa: bifes acebolados, arroz soltinho, feijão, batatinhas na manteiga, salada e de sobremesa, figo com pudim de leite! Deito cedo, estou podre de cansada, também pudera, acordei seis da manhã em Porto!

Sábado, passo na casa de Kaloca e seu pai, seu Aniceto, nos leva em sua caminhonete, até o ponto de onde iniciaremos nossa caminhada. Vamos desbravar uma trilha rumo ao primeiro platô da parede norte do cânion Malacara.

É meio-dia e lá vamos nós carregando nossas mochilas por uma senda que conduz até a crista da montanha. Carrego comigo os bastões que depois se revelaram não só desnecessários como incomodativos nesse tipo de trekking.

Embora estejamos subindo, a trilha, no início, não é difícil apesar das taquaras que vez por outra se emaranham no capuz da jaqueta presa no lado de fora da mochila com um pequeno mosquetão. Mas a moleza acaba porque logo adiante o mato se torna mais denso. É um tal de cipó enredando-se no meu corpo e raízes no chão dando calços nas minhas canelas que por pouco não me estabaco no chão.

A trilha, feita por caçadores, é pouco utilizada nos dias de hoje em que a caça é controlada e punida. É um matagal sem fim, bem ruim de se caminhar. Raros raios de sol penetram através da densa vegetação. Saímos, enfim, daquele cipoal e respiro, contente, de me ver livre de matagal tão enfezado. Mas qual o quê! A coisa engrossa quando deparo com um paredão de 245 m cuja escalada é inevitável. Obra duma avalanche provocada por sucessivas enxurradas, à encosta agora se apresenta desnuda de terra e vegetação, dificultando ainda mais a ascensão. Muitas das pedras nas quais me firmo deslocam-se, causando-me calafrios de pavor. Tremo nas bases. A vontade é de dar meia volta, volver. Kaloca, entretanto, dá uma força, ora me empurrando ora me içando. Eu só fico no aiaiaiai, gemendo, louca de medo de rolar ribanceira abaixo. E mal ouso lançar um olhar em direção ao despenhadeiro que se delineia aos meus pés. Pergunto aos meus botões o motivo pelo qual me meto nessas empreitadas. Concentradíssima em avançar e me ver livre de tal martírio, continuo a escalada, sentindo-me meio humilhada, porque estou sendo guindada, literalmente, pelo meu eficiente guia.

Finalmente, chegamos ao fim da carrasqueira. Uma pequena façanha porque escalamos rochas super quebradiças sem segurança alguma (Kaloca esquecera de trazer corda). Segundo ele, fizemos uma escalada de 3º grau. Suspiro aliviadíssima quando tudo termina. Triste engano.

Espera-nos uma mata de bambuzal virgem, ultra cerrada, que Kaloca corta a golpes de facão. Ele, cujo cabelão comprido enrosca-se, amiúde, nos galhos dos arbustos, resmunga, entredentes, que vai cortá-lo a facão. Falo pra usar touca. Pois o, até então, paciente guia quase tem um chilique com tal sugestão. Explica que a tal touca – de l㠖 vai fazer com que sue. E segue dando faconaços nos bambus a torto e a direito! Antes eles do que eu, hehehe!! O terreno, forrado por folhas de bambu, é muito fofo, dificultando mais ainda a caminhada. E lá vamos nós subindo os 130 m que faltam pra atingir o topo da parede norte do cânion Malacara.

Demoramos, pra vencer esses 375 m, 2 horas e 30 minutos! Quando atingimos o platô, situado a uma altitude de 1.000 m acima do nível do mar, sou contemplada com a visão duma parte da parede norte do cânion Churriado.

Lá embaixo, no vale, Praia Grande parece uma cidade de brinquedo, tão diminuta está a essa distância. E a lua cheia já se mostra, perfeitamente, visível no céu, embora sejam apenas 17:30! Coisa linda tal cenário! Eu, bem feliz, supondo que agora a trilha seria sobre um terreno plano, rapidinho, percebo que estou andando nos campos sujos de cima da serra. Forrados de urtigão, capim alto e pequenos arbustos, a caminhada se faz árdua. Levo vários trompaços nas canelas quando esbarro nos caules duros dos urtigões e gemo de dor. Não paro de exclamar “merda” e “droga” a cada um minuto palmilhado. E o tal trekking nunca acaba. Pra piorar, o alto capinzal esconde Kaloca de meus olhos. E eu perdidona naquela imensidão sem fim.

Kaloca!!! grito eu, amedrontada (como sou cagona…santo cristo!). Obtenho como resposta apenas o silêncio, pois Kaloca, meio surdo, nem deve estar escutando meu aflito apelo.

Fazer o quê, né? Sigo em frente. Lá pelas tantas – graças ao bom deus! – avisto a jaqueta dele e recobro ânimo, segura agora da direção a seguir. Quando o alcanço, ele já está armando a barraca. A clara luz do luar dispensa o uso de lanterna, tão iluminada está a paisagem ao redor.

O silêncio que paira nestes ermos soa como a mais linda música nos meus estressados ouvidos urbanos. De comida, há queijo, salame e pão. Kaloca prepara uma sopa, a calhar com a baixa temperatura que já se faz sentir.

Nem quero saber de curtir a fogueira, tampouco a lua no céu. Estou com muito frio! Entro dentro da barraca, me enfio no saco de dormir e demoro quase uma hora pra aquecer meus pés, duas barras de gelo. Nem bem nove da noite, a temperatura já atinge 0º C, e no teto da barraca há lasquinhas de gelo! Acordo apenas duas vezes durante a noite pra virar de lado! Às 7 da manhã, bem desperta, fico remanchando até as 8, quando não agüentando mais a vontade fazer xixi, sou obrigada a sair de dentro da barraca.

Quando retorno, acordo Kaloca. Ele me conta que ficou à beira da fogueira até 1 da madruga. Guri valente esse segura todas as ondas, inclusive a de frio de renguear cusco!! E ficamos na boa ali em cima, curtindo o Malacara, o Índios Coroados e o Orbal que se avistam um ao lado do outro.

Daqui de onde estou, consigo avistar, também, a tal garganta, ainda, inexplorada da parede sul do Malaca. Enquanto Kaloca desmonta o acampamento, vou buscar água num córrego, tropeçando nos urtigões. Desajeitada demais eu! E ficamos durante a fria manhã, cuja temperatura beira os 9º C, nos aquecendo em frente à fogueira. Conversamos, damos muita risada das bobageiras ditas e cozinhamos uma massa miojo a qual misturamos sardinha com molho de tomate. Um baita almoço domingueiro o nosso!

Ao meio-dia, mochilas nas costas, partimos. Eu tremo só de imaginar que vou ter de descer aquela parede e ter de encarar o precipício de frente. E não deu outra!

Foi uma tormentosa descida, auxiliada pela mão firme de meu guia. E o matagal inicial, que me parecera tão moleza na vinda, é trilhado aos trancos e barrancos em sua parte final.

Cansada de tanta aventura, a irritação toma conta de mim e excomungo Kaloca durante aquela parte do trajeto (intimamente, é claro). Entretanto, o mal querer se dissipa quando avisto, por entre os galhos das árvores, a lua enorme, amarelona, a despontar na penumbra da tarde que se despede.

Matéria: http://cucadeprata.blogspot.com/

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