Travessia Marins – Focinho de cão

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O maciço dos Marins é um dos destinos mais tradicionais dos montanhistas paulistanos. No topo do maciço destacam-se o pico dos Marins, com 2.422 metros, o Maria (2.392m) e o Mariana (ou Cabeça de Indio) com 2.333 metros snm.

A partir do cume dos Marins existe a possibilidade de se estender um pouco a “pernada”, mas essa é uma alternativa desconhecida da maioria, que acaba voltando pelo mesmo caminho da subida. Penhascos abruptos e aparentemente intransponíveis bloqueiam maiores pretensões, mas o fato é que esses picos próximos são acessíveis por caminhadas simples e alguns poucos lances de trepa-pedras sem maiores dificuldades técnicas. O cume em frente e mais próximo, o Maria, não leva mais do que meia hora para ser galgado.

 Um pouco mais a leste fica o Mariana, onde se chega caminhando pela borda leste do rochoso evitando um trecho com desnível vertical abrupto que interrompe o que seria um caminho natural pela crista. O que temos de novo na nossa investida começa justamente a partir do Mariana e segue por uma sequencia de cristas até próximo ao povoado dos Marins, uma alternativa bem mais interessante do que o bate-e-volta tradicional, disponível agora para quem pretende algo mais emocionante em termos de visual e desafios, uma nova alternativa de travessia na região.

 O acesso ao Pico dos Marins foi pela trilha tradicional que parte do “Acampamento Base Marins”, conhecido ponto onde se deixam os carros, até o cume do Marins onde começa a travessia a que me propus, passando pelo Maria, Mariana, Focinho de Cão e finalizando nas imediações do povoado dos Marins. A partir do topo do Marins baixa-se por patamares em direção ao pico imediatamente em frente, o Maria e daí segue-se para o Mariana de onde parte uma longa crista, vertente principal do vale do Rio Marins, que desce em direção ao Vale do Paraíba, sentido Sul, passando pelo “conhecido” (entre os locais) pico Focinho de Cão até o bairro dos Marins.

Histórico:

Há muito vinha estudando a possibilidade de uma nova rota que baixasse para o vale do Paraíba por alguma crista que partisse da parte mais alta do maciço do Marins. Tudo começou com uma descompromissada subida ao Marins na virada de 2007/2008. Na falta do que fazer no cume, resolvemos (eu um amigo) tentar chegar ao pico da frente, o Maria. Um marco no cume desse rochoso indica presença humana anterior, mas uma profunda depressão entre os dois cumes impossibilitaria o acesso desencorajando qualquer um. O problema era então saber se seria possível cruzar esse desnível intimidador sem equipamento técnico de escalada. não tínhamos Informações nenhuma e, particularmente, não conheço ninguém dos clubes tradicionais de São Paulo que tenha chegado ao cume em frente, algo estranho em se tratando de “montanhistas” antigos e experientes. Por um lado é compreensível e parece ter a ver com a “lei” do mínimo esforço, mas sempre tem alguns desgarrados que gostam de andar a margem das “leis” rss..

Pés no chão: apesar da depressão intimidadora entre o Marins e Maria existem pequenos patamares discretos na parede do Marins que possibilitam uma alternativa de acesso sem ter que se recorrer a meios mais técnicos de escalada. Obviamente que ralamos muitas e muitas horas para encontrar uma passagem na ocasião e foi tudo por conta própria, sem precisamos recorrer tracks alheios como fazem alguns em suas “explorações” Gigantes, afinal “exploração” com tracks dos outros é uma incongruência, para dizer o mínimo

Confesso que não foi nada fácil esse primeiro desafio: conseguir vencer essa etapa não foi simples, custaram-nos muitas horas de labuta, mas a satisfação de ter ultrapassado esses desafios, chegar no cume do Maria e vislumbrar um visual esplendido foi inigualável e fez de uma simples subida ao Marins algo especial. Nessa primeira investida fizemos uma rota tosca, entre escalaminhadas e exposições desnecessárias, mas ao final, no retorno, consegui encontrar uma passagem bem melhor, factível e sem trepa-pedra. O cume do Maria oferece uma perspectiva muito mais interessante do que a dos Marins, já que estando quase na mesma altura deste, bloqueia a visão da maior parte das cristas que descem em direção ao Vale do Paraiba. Nesta oportunidade perguntei-me porque não tentar uma rota de baixada para o Vale por crista que parecia viável. O Pascoal, parceiro da ocasião, concordou que seria uma desafio que poderíamos encarar e nos dispusemos a começar a explorar tais possibilidades na próxima temporada de montanha, já que na ocasião estávamos em pleno verão excepcionalmente sem chuvas, uma raridade.. Mas, infelizmente, o tempo foi passando e meu amigo não dava sinais de animo para encarar a empreitada no Marins. Engavetei provisoriamente o projeto até que conseguir alguma parceria confiável.

 Somente em 2010 decidi voltar e tentar um novo ataque, desta vez outro parceiro e conseguimos avançar pouco pela crista rochosa em direção ao Mariana até nos deparamos com uma parede vertical de em torno de 20 metros, imediatamente em frente da base do colo do Mariana. Sem corda e cercados por paredes rochosas verticais não tivemos alternativa senão voltar. Meses depois voltei com um grupo experiente,entre eles a Luci, o Wagner e o Soto. A primeira decepção foi a corda: curta para o rapel. Por sinal, neste trecho tem grampo mostrando que o rapel é parte da rota normal de acesso ao Mariana. Tínhamos na ocasião 4 dias para tentar por em prática o plano de travessia e estávamos no segundo dia ainda, mas mesmo assim alguns participantes já estavam muito preocupados se haveria tempo suficiente e água no caminho.. Sem possibilidade de rapel e como não havia como prosseguir, a saída então foi recuarmos e exploramos a vertente sudoeste voltada para o vale do Paraíba, já que havia mata algumas dezenas de metro abaixo e possibilidades de contornamos as paredes pelas bordas da rocha, caso conseguíssemos chegar na mata, mas essa era a questão.

 Eu já havia explorado alguma alternativa possível a partir do Maria na ocasião anterior, mas só havia penhascos. A única possível saída poderia ser um grotão imediatamente ao lado do Maria na face sudeste da rocha, mas com uma vegetação rala de substrato. A suposição é que pudéssemos conseguir alcançar a mata que bordeia a parede do maciço para dali seguir em direção ao Mariana. Meio receoso, comecei a baixar pelo grotão até encontrar um desnível mais forte que exigiu uma escalaminhada em pedra, mas que é um trecho curto de uns cinco metros de desnível e rodeado de mato, que não exige corda necessariamente. A partir daí fui seguindo sempre rente a rocha até alcançar o colo do Mariana. Pouco tempo depois chegou o Soto e dali subimos facilmente ao topo do Mariana. Voltando para encontrar nossos amigos Wagner e Luci que nos aguardavam depois de algumas horas de desanimadora espera. O Sol escandante, a incerteza de água pelo caminho, nuvens cirrus encobrindo parte das cristas, preocupação com o tempo, consciência que seria ralação das bravas, etc, etc.. foram fatores determinantes para desistirem da jornada pretendida. A única que se animou um pouco foi a Luci, mas os demais votaram pela desistência. Acatei a decisão do grupo e mais uma vez tive que abordar a investida, apesar de ter ficado ainda mais decido do que nunca a voltar e completar a travessia o mais breve possível, na mesma temporada, de preferência. Estávamos já em setembro, final de temporada de seca.

 Confirma-se mais uma vez como não é fácil conseguir parceiros que topem essas empreitadas, sempre carregadas de incertezas, dificuldades, grande esforço físico, ralação, perigos, riscos.., elementos que ficam mais difíceis de administrar em grupos maiores de pessoas. Por tudo isso mais a vontade de terminar aquela empreitada naquele ano, resolvi que tentaria fazer de qualquer jeito, mesmo que sozinho. Estava bem preparado e bem munido de cartas e apetrechos de orientação além de estar estudando o lugar há tempos. Faltava só concretizar na prática o plano já mais do que detalhado e estudado. Assim decidido, esperei uma brecha de bom tempo e me preparei para a empreitada.

A travessia:

Estava acompanhando as previsões meteorológicas com muito cuidado e me preparei para uma possível janela de três dias de bom tempo que ocorreria por volta do dia 12 daquele outubro. Desta vez confiei na previsão e fui tão confiante para a região que ao chegar no “Acampamento Base Marins” (onde se deixa o carro), já na parte da tarde, soube que há dias e até aquela manhã o tempo estava totalmente fechado, neblina, garoa, chuva, mas que se dissiparam pouco antes de eu chegar, exatamente como a previsão meteorológica, incrível mas vezes eles acertam, rss..

 Havia chegado na hora certa. Com mochila pronta deixei meu carro na Base Marins e sai exatamente as 14,30 em direção ao pico. Com mochila leve, somente levando o básico do básico e comida fria para 3 dias, segui em passo constante e tranquilo, sem correr mas sem parar, até o cume dos Marins, onde cheguei por volta das 18 horas. Eu era a única pessoa na montanha. Foi o tempo de chegar, armar minha barraca, comer um jantar pronto (e frio) que havia trazido e descansar o melhor possível, pois teria que gastar muita energia nos próximos dias. A maior preocupação era com a água e com o tempo (climático), pois sabia que em 3 dias chegaria uma frente fria acompanhada de muita instabilidade. Pelo que havia pesquisado, muito provavelmente haveria água nas proximidades do Focinho de Cão, mas teria que varar uns 400 metros de mato fora da linha de avanço, o que poderia significar atraso no meu apertado cronograma. Só faria essa investida se tivesse realmente adiantado e sem água alguma, mas o objetivo era racionar água o quanto pudesse e avançar na travessia o máximo que desse. Por isso me abasteci com uns 4 litros de água antes de subir ao Marins, o que é pouco para a atividade super intensa que me aguardava, mas seguramente iria economizar bastante e a água teria que dar e se não desse, primeiramente recorreria às bromélias e só depois iria procurar no vale mencionado.

No segundo dia, ainda no acampamento no cume dos Marins, acordei cedo e ao sair da barraca fiquei decepcionado: o tempo esta fechado, sem visibilidade, sem céu a vista, só nuvens. Sem perspectiva voltei desanimado para a barraca e resolvi dormir e relaxar. Por volta das 9h acordo com o Sol assando tudo: ao sair vi que as nuvens se dissiparam e o tempo estava aberto, maravilha! Rapidamente desarmei a barraca, fiz um bom lanche e fui para a luta. Como já conhecia o caminho até o Mariana, que tinha trilhado há pouco, e com o mato ainda bem amassado da ultima investida, fiz esse trecho rapidamente. Para baixar para a base do Maria não se leva mais do que meia hora e dali até o colo da crista na base do Mariana mais 50 minutos, mas é dessa montanha que as coisas se complicam.

 A partir do Mariana partem pelo menos duas importantes cristas em direção ao vale do rio Marins: uma rochosa, limpa, atraente e mais curta e outra longa, “suja” e que chega bem próximo do povoado dos Marins. Acreditava que haveria alguma passagem direta a partir do cume do Mariana até uma das cristas (a mais curta). Por isso quando cheguei ao cume, bem tarde, por volta das 12 horas, fui explorar todas as possibilidades ao redor. Gastei mais de uma hora de infrutíferas buscas e só encontrei penhascos ao redor do cume e, finalmente, me convenci que teria que voltar até o colo da base do Mariana e contornar a parede sudeste da montanha, uma solução nada atraente, pois a distancia, mata arbustiva e densa e declividade eram bem piores do que as do trecho anterior do Maria. Depois de uma exaustiva investigação de possibilidades a partir do pico do Mariana, finalmente as 13,30h parti da base dessa montanha (selado) varando mato, mas sempre tentando ficar o mais perto possível da parede.

Aos trancos e barrancos (vários, rss…) fui avançando em direção sudoeste até alcançar a crista alvo, boa parte na mata e sem visibilidade. Chegando próximo a essa crista predomina mata alta, bambuzinhos e arbustos, sem chance de referencia visual, o que exige navegação instrumental (altímetro, bussola e carta, ou tudo isso embutido no gps, como no meu caso). Realmente foi uma parte bem encardida com emaranhados de bambuzinhos terríveis que me tomaram mais de 2 horas para vencer 600 metros. Ainda nesse setor, bem no meio na crista e na mata fechada, encontrei uma bela toca de felino com alguns ossos, que felizmente estava vazia, ufa! Mais algumas centenas de metros e mais 2,30 horas de ralação, finalmente saio da mata e chego no capim de altitude, um grande alívio, pois agora podia ter orientação visual e ver o objetivo dessa etapa se aproximando: chegar a base (e quem sabe ao cume) do Focinho de Cão, pico imponente que se destaca para quem sobe pela estrada a partir do povoado dos Marins.

As horas passaram rapidamente nesse segundo dia em que comecei a caminhar muito tarde e perdi um precioso tempo no Mariana. Já estava quase anoitecendo e teria que acampar rapidamente. Não havia lugar e assim fui caminhando mais uma hora, até que as 18h30m, quase noite, tive que me conformar com o lugar onde estava, repleto de touceiras de capim quase da minha altura. Improvisei um local arrancando algumas delas e usando o capim para amenizar as irregularidades do piso e armei a barraca ali mesmo. O piso estava muito irregular e eu teria uma daquelas noites inesquecíveis. Apesar dos pesares, o céu estava claro, meu celular tinha sinal (apesar da bateria estar no fim), e eu tinha clara noção do caminho a seguir, mas ainda teria, talvez, o maior desafio de todos: vencer o Focinho de Cão que ficava exatamente no meio da crista por onde eu passaria.

 Diferente do Mariana, essa montanha é muito mais imponente: paredes verticais em ambas as faces e cume afilado que implica escalada, ou seja, seria impossível cruza-la a partir do pico e só havia uma possibilidade: teria que contornar a face sudeste de maneira semelhante a que fiz no Mariana, só que aqui parecia mais complicado, mais longo, vertical… Se não conseguisse contorna-la teria realmente um grande problema, pois descer pelos vales laterais parecia algo inviável, pois os desníveis a partir dos 1900 metros eram abruptos e tomar o caminho de volta era uma possibilidade que eu nem considerava, seria terrível em todos os aspectos (físicos e psíquicos). A noite realmente foi pior do que eu supunha: já tive muitas dores dormindo em piso ruim, normalmente nos ombros, braços, mas pela primeira vez senti dor na coluna, mesmo com um bom colchonete inflável (thermarest), imaginem que a posição não era das melhores..

Terceiro Dia:

Disposto a não desperdiçar meu tempo como no dia anterior, dessa vez coloquei o despertador para as cinco e meia da madrugada, e deu certo! Acordei bem disposto, apesar de péssima noite, mas feliz porque o tempo estava aberto, sem neblina, sem nuvens. Tive tempo para arrumar tudo com calma e comecei a caminhar as 7,30 h da manhã. Estava super animado com a imponência do Focinho de Cão me desafiando para fazer cume, rss… Será que eu seria o primeiro a conquista-lo? Boas chances, já que até o momento eu não havia visto qualquer vestígio humano a partir do Mariana (onde só encontrei um marco no topo, nada mais). Seria ótimo, mas de longe tudo indicava que só escalando e eu não tinha equipo algum..

Rapidamente comecei a baixar pela crista vencendo o capinzal alto, bem ruim, mas infinitamente melhor do que cruzar emaranhados de bambuzinhos.. Apesar de perto da montanha, da declividade favorecendo e da pouca distancia, em torno de 700 metros de onde estava acampado, o progresso foi bem lento, 350 metros por hora, indo rápido rss.., e assim demorei quase duas horas para chegar ao colo de acesso ao Focinho de Cão, onde cheguei às 9,15h da manhã. No caminho, já próximo da base, encontrei locais bem decentes para montar barraca e pude ver água a minha direita, no fundo de um vale, pena que com desnível grande, apesar de haver mato que poderia viabilizar o acesso. De qualquer forma, no vale da esquerda (sudoeste) o desnível é bem menor e predomina capim de altitude até a sua parte inferior, onde provavelmente eu iria procurar água se tivesse tempo e paciência. Creio que tinha em torno de um litro de água para um dia e meio previstos até o final, mas a minha prioridade agora era fazer cume dessa montanha: de sede eu não morreria fácil, ou se morresse, morreria feliz tentando fazer o cume do Focinho, rss..

Já na base, a partir da crista onde me encontrava, percebe-se que o desnível não é grande até o topo, mas para alcança-lo só escalando mesmo, talvez uns lances de terceiro e segundo grau, curtos, mas com paredes bem expostas. Certamente não poderia perder essa rara oportunidade e resolvi arriscar: em pouco mais de 30 minutos de tentativas cheguei ao cume. Como imaginava, não havia vestígio de que alguém já tenha estado por ali, e obviamente deixei um testemunho da minha passagem: um marco com algumas poucas pedras disponíveis. O problema maior agora seria desescalar, o que me obrigou a fazer uma rota diferente, com agarra mato e outras roubadas, rss.. mas no final deu tudo certo, consegui sair inteiro dali, ufa!! Passado a “diversão”, agora de volta ao trabalho. Logo no inicio da tentativa de contornar a parede da montanha me dei mal e quase despenco em meio a uma vegetação mal fixada na rocha. Voltando ao ponto de partida, consegui achar um caminho melhor e fui seguindo em frente, agora cruzando um grande campo de bromélias gigantes, uma ao lado da outra, bem difícil para avançar, além do que estavam repletas de água e molharam bem a minha roupa. Claro que não podia desperdiçar tanta água: parei e coletei pelo menos meio litro das bromélia, devidamente filtrada em uma meia não lá muito limpa e clorada… Agua havia nas bromélias, mas coleta-la sem recipiente adequado não é fácil e demanda tempo.

Passado esses trechos nada agradáveis, assim que alcancei a crista pretendida foi só alegria: ainda faltava um trecho relativamente longo, mas parecia que o caminho não seria muito sofrido. Meu maior temor que era contornar o Focinho de Cão, havia sido vencido, ufa!! Tendo ultrapassado essa montanha, um pouco depois ainda tive dois pequenos sustos: o primeiro em uma passagem com degrau de alguns metros onde fui baixando escorregando pela leve vegetação presa na rocha, quando meu pé se enganchou em uma raiz e quase entro bem, mas por sorte e reflexo em meio a queda fui suficientemente rápido para recolher a perna enquanto baixa veloz ladeira abaixo. Não quebrei nada, mas guardei uma bela cicatriz na canela que perdurou muitos meses. O outro susto foi quando pisei em um bicho roliço e volumoso enquanto andava varando mato. Não deu para ver nada, já que nessas situações não se enxerga onde pisa, mas sai dali como um foguete e não quis nem saber que bicho era. Só deu para sentir que era um bicho grande e macio que acomodou toda a sola da minha bota. Imaginei que pudesse ser algum roedor de porte e ficou nisso, mas parece que foi outra coisa. ecentemente vi um post no facebook de um pessoal conhecido que encontrou uma jararacuçu enorme (parecia uma jiboia rss) na travessia Marins Itaguaré, que agora me faz pensar que o meu pisão poderia ter sido, muito bem, em alguma parente da bicha em questão, my God!

Vencido esses sobressaltos passageiros e emocionantes, segui pela crista que agora começa a estreitar-se, o que foi ótimo, mas em compensação a vegetação arbustiva se adensa na medida em que baixo, com muitos trechos de samambaias secas e intrincadas. As horas avançam rapidamente, o Sol estava escaldante e a água estava realmente super racionada e eu cada vez mais fraco, pois a comida era seca e exigiria mais água, fazendo com que eu não comesse também… De fato, já no final da tarde eu andava um pouco e tinha que parar. Tinha poucos goles de água boa, mais uns 500ml de água de bromélias, bem clorada mas não confiável, que só tomaria em ultimo caso. Meu objetivo era chegar em um pasto relativamente próximo da crista por onde passaria (não visível da crista de descida) e dali rapidamente chegar no fundo do vale onde encontraria água no rio dos Marins.

 Depois de um forte declive por uma crista afilada, já em torno das 15 horas, cheguei na cota dos 1517m, e encontrei traços de uma picada, o que me deu grande animo, fazendo-me crer que dali para frente seria tudo fácil, mas foi mera ilusão: a picada era vestígio de antigo caminho preservado em poucos trechos em que haviam arvores e completamente fechada por arbustos nos trechos mais abertos, obrigando-me a varar mato e a avançar lentamente. Da crista eu não enxergava o pasto, mas tinha tudo plotado de ante-mão no meu gps, inclusive o ponto que deveria sair dela e descer em torno de 400 metros até encontrar o pasto. Do ponto onde encontrei a picada até onde deveria baixar da crista para o pasto ainda tinha mais 1,4 km, que não parece muito em campo aberto, mas em mata, mesmo em crista é bastante: foram mais duas horas e meia até o ponto da decida (cota de 1354m). Como ainda havia luz, resolvi avançar um pouco mais pela crista e escolhi um outro ponto para baixar pela mata a minha direita, onde o mato da encosta parecia mais aberto, mas cometi um erro de avaliação pois acabei em um mini vale onde tive que enfrentar um vara mato horrível, muito difícil de avançar em meio a intrincados cipós que me prendiam totalmente, da cabeça aos pés. Esqueci que quando planejei a descida havia escolhido o local exatamente em função de sutis curvas de nível que eu não tinha como visualizar no terreno coberto de mata, isto é, era uma espécie de mini divisor de águas coberto pela mata e eu fui cair exatamente no fundo desse mini vale, o pior lugar para se estar.

 Foi mais uma hora e pouco de vara-mato, provavelmente o pior trecho de toda a trip, até chegar ao pasto, além do que tive que enfrentar noite na pior parte desse caminho. . Por fim, as 18h40m emergi no pasto (1.196m) e me senti em casa. Agora bastava baixar até o rio (931m) e achar um bom lugar para acampar… Apesar de tranquilo para caminhar, ainda demorei quase uma hora para vencer 1,2 km e chegar ao rio, primeiro porque estava procurando alguma fonte de agua confiável (sem dejetos animais) no caminho e segundo porque queria encontrar um lugar confortável para acampar. Ao chegar ao rio, devo ter ficado pelo menos uma hora me hidratando e comendo para só depois sair para procurar um local para acampar.. Enfim consegui encontrar um excelente local e pude finalmente ter uma noite de sono tranquila, sem preocupações e, feliz de ter concretizado essa belíssima travessia.

Espero que muitos outros montanhistas possam desfruta-la plenamente e acredito que ela possa se tornar uma forte candidata a ser uma travessia tão popular quanto a Marins-Itaguaré (senão uma sequencia de uma longa trip) assim que a trilha estiver aberta e consolidada, o que será consequência direta da frequência da sua utilização (é importante lembrar que é proibido abrir trilhas em Areas de Preservaçao Permanente, mas não se proíbe a passagem nessas regiões simplesmente varando a mato). Em termos práticos essa travessia é logisticamente bem fácil: pode se deixar o carro no “Base Marins”, onde começa a subida para a travessia, e na volta andar 5 km (aproximadamente) subindo a estradinha de volta ao carro, ou mesmo deixar o carro em algum lugar do povoado e contratar alguém para o transporte até o inicio da trilha dos Marins, assim o veículo já estará a disposição ao final do percurso. Para quem pretender ir até o povoado, ou baixa pelo ponto em que baixei (consta do tracklog) ou segue pela crista em por mais 1 km até encontrar um pasto quase em frente ao povoado. A opção que fiz é a mais curta para voltar ao Base Marins.

Por fim, na minha limitada experiência de rocha posso dizer que o Focinho de Cão é uma montanha de enorme potencial, com paredes fantásticas (“chuto” que tem bem mais de 200 metros) que promete belíssimas vias e que tem a vantagem de ser acessível (base inferior, no vale) por caminhada relativamente curta a partir do fundo do vale do rio Marins, onde tem estradinhas de terra nas proximidades bem acessíveis ou a partir de caminhada da estrada que sobe ao “Base Marins”. Os paredões virgens dessa montanha estão esperando para serem conquistados. Quem se habilita?
 

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