O impressionante depoimento de Ferran Latorre sobre o GII

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O alpinista catalão conseguiu uma ascensão épica do cume do GII de 8.035 metros de altitude, e ao descer do cume caiu em uma greta de 15 metros de profundidade na geleira entre C2 e C1. Leia sobre a aventrura…

A escalada do Gasherbrum II nesta temporada não tem sido fácil para Ferran Latorre, para os membros da Expedição Andaluzia 2×8000 e o iraniano Mehdi. Eles fizeram cume depois que outras expedições já haviam deixado a montanha, e viveram uma aventura completa que continua até hoje, com uma caminhada de volta a partir do acampamento base e sob condições climáticas extremas.

Ferran Latorre fez um balanço destes dias que se passaram entre o ataque ao cume e desescalar a montanha. Em seu blog fala exaustivamente da escalada que se tornou quase épica e estava prestes a tirar sua vida, quando caiu em uma fenda de 15 metros de profundidade. A possível fratura de algumas costelas e a dor no ombro direito são as conseqüências, e dos males o menor de uma experiência que o marcou.

Sua narração da história começa assim: "Esta tem sido uma temporada ruim no Karakorum. E o Gasherbrum II sempre tornou as coisas muito difíceis. Mesmo no dia do cume, que prometia ser de tempo calmo, acabou sendo ruim mais uma vez, a última chance do Gasherbrum II de testar a nossa força, nossa paciência e apreciar a verdadeira motivação para escalar. Mas também eu nunca tinha imaginado, é que uma vez conquistado o cume, esta montanha apresentou-me um enigma que não consigo nem decifrar. No momento mais inesperado. Nos lugares mais inesperados."

O ataque ao cume

Em sua narrativa dos eventos que ocorreram durante a escalada, Latorre explica como eles rolou tudo "face a face" com a montanha, com um GII que pareceu exercer o livre arbítrio de não permitir que ninguém o escalasse. "Nós finalmente decidimos atacar o cume do Acampamento 3 (7.000 m) pra cortar um dia de escalada e porque parecia que em 1 de agosto não seria tão bom", disse o catalão.

No entanto, essa decisão estava prestes a ser infeliz por causa da quantidade de neve que encontraram durante os 1.000 metros verticais que os separava do cume. Um obstáculo que irá desacelerar seu avanço, mas não fazem com que dessitissem. "Cerca de uma hora da manhã, José e eu chegamos ao que parecia ser o acampamento 4, onde descobrimos uma barraca abandonada por uma expedição coreana que já havia deixado o acampamento base. A barraca estava meio destruída, danificada pelo vento, mas iria nos salvaguardar um bom tempo, enquanto esperavamos a chegada do resto do grupo."

Quando eles estavam todos reunidos ali um tempo depois a noite caiu e continuaram assim mesmo para o cume, mas mais uma vez o tempo pregou uma peça: "O dia claramente piorou. Logo percebi que a única maneira de obter uma pequena pausa e um pouco de esperança, já encrencados no meio do vento insano, foi buscar refúgio atrás da borda sudeste", onde chegaram com dificuldade às 7 da manhã. Lá, a 7.750 m, prometeram entre si esperar até que o vento lhes desse uma trégua e não descer sem o cume. Foram longas 7 horas de espera.

"Finalmente, e como num nocaute, a uma e meia da tarde e, embora o clima era o mesmo, decidimos sair da trincheira. Mehdi começou a abrir caminho desesperado como um guerreiro, com espada em punho, e o grito de guerra ensurdecendo os adversários. A última sessão de neve era bastante firme, mas a neve finalmente pareceu facilitar nosso trabalho. E foi aí que o milagre aconteceu. O céu abriu e o horizonte foi descoberto em torno de nós com um belo mar de nuvens".

Ferran tomou a dianteira e abriu caminho ele mesmo nos últimos 100 metros e foi o primeiro a chegar ao cume, onde passou alguns minutos sozinho enquanto esperava por seus colegas: "O show foi profundamente encantador, com a luz dourada do sol sobre os picos do Karakorum, que pareciam ilhas acima do mar de nuvens".

A queda na greta

"No caminho, à noite, eles tiveram que reabrir a trilha, enquanto caminhávamos a longa jornada até o acampamento 4. A presença de ventos fortes durante todo o dia havia apagado nossas pegadas. Uma vez que Mehdi e eu chegamos ao acampamento 4 descansamos um pouco para descer até o acampamento 3. O restante do grupo passou a noite como podiam enfiados na barraca coreana meio destruída ali mesmo no acampamento 4"

No dia seguinte, quando o grupo se reuniu no acampamento 3, Ferran Latorre desceu ao Acampamento 2, onde encontrou se companheiro paquistanês Basheer, e foram juntos até o acampamento 1, onde pretendiam passar a noite. Um trecho que se tornou muito difícil, uma vez mais pelas condições climáticas: "O calor era intenso e, em seguida, a neve começou a perder a força de uma forma preocupante. Nunca havia sofrido tanto em uma descida tão simples. Às vezes era difícil de avançar, mesmo rappelando, e as pernas  freqüentemente mergulhavam em um buraco sem fundo de neve que havia perdido todas as características de coesão. Às vezes nos arrastavamos pra baixo de bunda para não ter que colocar as pernas e ficar submerso até a cintura, como se fosse em areias movediças. Não era uma situação perigosa, apenas desagradável e cansativa, bem como lenta e frustrante"

"No sopé da montanha, o "calvário" terminou e só nos faltava meia hora de glaciar plano até chegar ao acampamento 1. Nesta seção, a maioria das pessoas não vai encordada pois a geleira não está aberta, há apenas duas ou três gretas e geralmente são bem visíveis. Na verdade os únicos nesta temporada que passaram encordados foram meus companheiros de Andaluzia. E antes de começar o caminho mais fácil até o acampamento 1, hesitei por alguns segundos sobre se pegaria ou não uma das cordas pra nos encordarmos, Basheer e eu"

Poucos minutos depois, cruzando uma ponte de gelo, uma rachadura se abriu sob seus pés e caiu em uma greta de cerca de 15 metros de profundidade. "A primeira reação foi verificar que tudo estava bem, que o corpo ainda estava trabalhando, uma revisão abrangente e fulminante de todas as partes do corpo que iria durar alguns segundos. E logo depois, eu tentei controlar qualquer reação de histeria. Logo ouvi os gritos distantes de Basheer. Olhei para cima, e pela primeira vez eu percebi a magnitude da queda. Acima de mim, uma enorme cúpula de gelo, azul ou verde, isolado-me do mundo exterior, exceto por um pequeno buraco, que foi por onde caí, e por ali saía uma cabeça pequena olhando pra mim aterrorizado: eram os olhos de Basheer"

O alpinista paquistanês refez seus passos de volta para onde estava a corda sem uso e foi resgatar  Ferran Latorre, que estimava ter passado até então uma hora estava lá embaixo. "Eu estava sob a terra, mais próximo do inferno, como nas portas da morte, em um mundo de gelo que tem estado à espera por milhões de anos. E eu estava lá, plantado, um hóspede indesejado interrompendo o silêncio sepulcro, que se atreveu a entrar sem a permissão de ninguém. Reconheço alguns que por segundos fiquei surpreso pela sua situação milagrosa, de estar vivo, de ser capaz de lidar com a minha vida e minha energia neste mundo inerte onde letargia e falta de tempo tendem a cessar qualquer indício de vida"

Aproveitou o tempo para preparar o material necessário pra jumarear e deixou a mochila pronta no chão com todo essencial. "Às vezes olhava pra cima, até a janela da vida, o buraco onde havia caído, esperando uma resposta como um náufrago olhando ao horizonte, esperando por outro navio. A solidão era enorme, como um astronauta perdido no universo. O lugar poderia ter sido o meu ponto final, mas no último minuto, alguém decidiu que não era, como se alguém tivesse finalmente dado um passo para trás com sua decisão errada. Esse pensamento criou uma certa cumplicidade entre eu, insignificante ser, e este canto perdido do mundo, que agora se tornou tão especial para mim"

Quando Basheer chegou com a corda, já fixada a uma união em “T” que montou seguindo as instruções dadas por Ferran um mês antes, o alpinista catalão saiu de lá sem passar por grandes complicações. "Poucos minutos depois, finalmente, espiei pelo buraco. O mundo seguia em frente. O céu ainda estava azul. Foi ainda em luz do dia. Basheer me olhava atento e feliz a poucos metros. Eu rastejei até ele que me abraçou com força. Estava desesperado e não conseguia chorar, dizia que era meu irmão"

Na conclusão de seu relato, Ferran Latorre afirma que "no Gasherbrum II, vivi duas horas, a hora no cume, e a hora que passou sozinho dentro da greta, guardei comigo uma conexão exclusiva. Mas de tudo que eu vivi vou levar o abraço com Basheer. Estou certo de que muitas vezes na história houve tão pouca distância entre dois seres humanos. Mas aquele foi um momento, ao pé do Gasherbrum II, em que a emoção faz você acreditar de novo na humanidade, no amor fraterno, em tudo aquilo que nos define como seres humanos. Foi uma vitória de amor, de compaixão. Uma vitória de tudo o que já deveria ter ganho".


 

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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