Nas duas ocasiões em q rodamos pela Estrada do Despraiado (Juréia), o Pico Boa Vista despertara nossa atenção montanhisticamente falando, e o simples fato de ser coroado por uma decrépita antena de retransmissão já sugeria a existência dalguma espécie de acesso razoável, independente das condições do mesmo. Entretanto, informações desencontradas com os locais naquelas duas empreitadas, por sua vez, deixavam patente q a subida a montanha (cujo desnível se assemelha ao Corcovado de Ubatuba!) não seria nada facil e qq aventura nesse sentido fatalmente demandaria árduo vara-mato, nem q fosse ao menos pra interceptar a velha estrada de manutenção q outrora subia ao alto, atraves dalgum espigão derivante do maciço principal da Serra do Itatins. O pico então ficou na vontade e o tempo passou. Ate agora, qdo o Nando retomou seus estudos da região e, sobrepondo a carta topográfica mais precisa da região (obtida da Nasa) com imagens aéreas, semana passada me ligou avisando: “Jorge, prepara a
mochila q agora a gente sobe o Boa Vista! Descobri onde nasce a antiga estrada q subia o pico!”.
Apesar da previsão meteorológica favorável, o dia amanhecera envolto numa nebulosidade opaca desde q havíamos deixado a capital paulistana. Agora, naquela altura rodando pela Rod. Regis Bittencourt (BR-116), eu Nando e Ronaldo torcíamos pro panorama melhorar assim q começássemos a pernada propriamente dita. Saimos cedo da capital com a ciência de q se td corresse bem a empreitada demandaria apenas o árduo bate-volta de um dia. Mas, claro, fomos devidamente calçados prum pernoite caso a pernada fosse mais pauleira q o previsto, mesmo nossa aventura sendo norteada por uma antiga via asfaltada q nos servia como referencia.
A nebulosidade nos acompanhou desde inicio da jornada ate Pedro de Toledo, onde até insinuou melhorar com algumas frestas de céu azul no alto. Após a simpatica Três Barras o asfalto deu lugar a uma sinuosa e poeirenta estrada de terra batida, q após cortar o Rio do Peixe serpenteou pra sudoeste pro fundo do Vale do Despraiado atraves da precária estrada do mesmo nome. A cumieira daquela morraria tomada por bananeiras tava devidamente ocultada por brumas alvas e espessas, e desta vez qq tentativa de vislumbrar o Morro Boa Vista se mostrava sem sucesso desde o inicio.
Chegamos finalmente na “Xiboquinha do Cumpadi” as 10:30hrs, nome local q é dado ao simplório boteco q bordeja a estrada logo antes da mesma cruzar pro outro lado do Despraiado. Lá, a exatos 100m de altitude, reencontramos o Reginaldo e seus pais, com os quais tomamos um delicioso desjejum regado a café fresco. Contamos nossas intenções a ele q simplesmente exclamou: “Ah, deve ser aquela estrada véia tomada pelo mato perto das ruinas da escola onde estudei!”. Felizmente nossas informações coincidiam com as q o velho senhor resgatava de sua precária memória, e la fomos nós. Arrumamos então nossas coisas, enqto nos estapeávamos a td momento. Apesar de estar nublado, o vale estava abafado o bastante pra ter as habituais nuvens de borrachudos.
Deixamos o carro na sombra do frondoso abacateiro q orna a frente do “Bar do Cumpadi”, colocamos a
mochila nas costas e retrocedemos pela estrada calmamente, dando inicio a jornada pouco antes das 11hrs. Não deu nem pouco mais de 1km comendo poeira q o pto plotado pelo Nando conferiu com a info proferida pelo Reginaldo. Como referencia de q pto abandonar a estrada tenha as manilhas de concreto á margem da mesma, a direita. Por ali, buscamos um modo de descer o íngreme barranco onde, uma vez no leito de pedras, vislumbramos resquícios duma antiga pinguela. Bastou tocar por ela q mergulhamos numa picada (com algum mato alto) q desembocou nas margens do Rio Despraiado, q por sua vez é cruzado atraves duma decrépita ponte pênsil. Cuidado com esta ponte, pois o chão ta bem podre e o Nando quase foi pro rio ao pisar num toco podre q estourou na primeira pisada. Claro q era aqui q comecava o trecho adrenalina da trip, e a travessia do raivoso rio foi feita nos segurando firmemente nos cabos q sustentam o pontilhão.
Na outra margem do rio, batemos de cara com o q outrora já foi uma escola bem ativa, hj engolida em gde parte pelo mato. Apesar disso, o interior ainda exibia resquícios de material escolar e algumas carteiras deterioradas. Acredito q se o poder público quisesse poderia mto bem restaurar este lugar e dar-lhe alguma finalidade. Pois bem, contornando a escola pela direita subimos o barranco sgte (em meio a alguma mata espinhenta) e em questão de poucos minutos caímos, finalmente, no inicio daquela q foi a estrada de manutenção da torre da Cotesp. Realmente, a via estava de fato td tomada pelo mato e o q ainda lhe conferia aspecto de estrada era o onipresente corte vertical na encosta, além dalguns vestígios da antiga pavimentação no chão. Apesar do mato presente, relativamente alto, era perfeitamente visível um rastro (e não trilha) percorrendo a via por td sua extensão. E foi esse rastro q acompanhamos sem perder de vista até o topo.
O Ronaldo se prontificou a ir na dianteira, abrindo caminho com facão (imprescindível!) enqto eu e o Nando apenas baixávamos o restante de mato, deixando o caminho aberto e “abaixado” pra volta. E assim começou nossa ascenção propriamente dita, onde a estrada subia suavemente a encosta aos ziguezagues sentido sul, enqto nossos ouvidos se enchiam tanto dos ruídos da mata qto dalgum rio percorrendo algum fundo vale, a nossa esquerda. Apesar da subida suave, o calor logo se encarregou de encher nossos rostos de suor, q escorria farto pela pta do nariz, aumentando consideravelmente nosso consumo de água. Em tempo: cada um levou 2L de agua no lombo; havia infos de presença de agua no cume, mas fomos calçados pro caso deste pequeno detalhe não ter mais procedência.
A subida então prosseguiu inipterrrupta e no mesmo compasso, sempre acompanhando o rastro e algumas velhas marcas de facão q a mata apresentava, datadas provavelmente de uma semana. As vezes desviávamos de alguns gdes obstáculos, geralmente gigantes da floresta tombados no caminho ou enormes deslizamentos de encosta; outras vezes simplesmente encarávamos de frente, no geral, touceiras e emaranhados de finos bambuzinhos ou criciúmas (aquele “capim-velcro”) formando túneis de farta vegetação q não raramente nos obrigavam a engatinhar no chão e de onde emergiamos ralados. E assim sucessivamente. Mas de uma forma geral a pernada mantinha-se com ritmo e sem maiores percalços de dificuldade.
Sem muita pressa, por volta do meio-dia fizemos um breve pit-stop na cota dos 450m, num trecho onde o terreno aparentou nivelar. E após descansar e beliscar alguma coisa demos continuidade a subida, q voltou no mesmo compasso, ou seja, suave e inipterrupta. O caminho, por sua vez, exibia seus encantos a td momento, fosse nas orelhas-de-pau q ornavam o arvoredo em volta, conchinhas espalhadas pelo chão, belos exemplares de palmito faconados (revelando o atual freqüentador da vereda) e pequenos detalhes remanescentes do antigo uso daquela via, como fiação elétrica, postes tombados, tubulações, etc.
Na cota dos 500m é possivel ouvir agua farta correndo lagum lugar das dobras serranas, próxima, e acredito ser possivel coleta-la em caso de emergência nesse sentido. Mas após desviar de uma arvore tombada q trouxe meia floresta abaixo, pela esquerda na cota dos 700m, nos deparamos com montes de fezes de anta bem no meio do caminho. É, seria ingenuidade imaginar q a bicharada tb não se vale das trilhas deixadas pelo homem. Sendo assim, não tardou pra sentirmos pelo corpo a coceiinha tradicional e típica de carrapatos. Paciência..
Por volta das 13:45hrs, desta vez na cota dos 800m, fizemos nossa segunda e ultima parada de descanso, agora tendo como trilha sonora a algazarra promovida pela macacada nalgum contraforte abrupto da serra. A proximidade com o cume fez com q esta parada fosse breve e então demos continuidade a pernada, agora mais apressados q o normal. E tome subida, desvia de mata, engatinha ali e agacha aqui. Compasso q não mudou ate o final, tanto q nos finalmentes há uma presença maior de vegetação ao largo da vereda. Vestigios da antiga pavimentação ficam mais evidentes na cota dos 930m ate sumirem de vez. E após desviar de novo gde deslizamentode encosta, surge uma fresta na vegetação q exibe a proximidade do cume, infelizmente envolto em opaca nebulosidade.
Nos idos dos 1100m, as 15hrs, percebemos q o terreno nivelou de vez e não há mais o q subir. Estavamos no cume finalmente, na verdade, o falso cume q serve de base pra antiga torre de telefonia da Cotesp (Cia Telefônica de SP, atual Telesp), desativada com o advento da comunicação via satélite em 1977. O lugar é plano, amplo e dominado por pequenos bambuzinhos, denunciando q aquilo td já foi descampado e um belo mirante. Alem da enorme torre de metal de quase 30m de altura, o falso cume divide o espaço restante com postes tombados, um “iglu metálico” q deve ter sido a casa dos geradores, e ruínas dos casebres de madeira com algumas pixações dos freqüentadores ocasionais (tds da regiao de Miracatu, Iguape e adjascencias). Lixo? Quase nenhum.
Pois bem, mal chegamos fomos conferir nossa maior preocupação: água. Perscrutando os arredores dos bambuzinhos, descemos um pouco pela encosta e encontramos realmentee uma caixa dágua q captava o precioso liquido duma nascente, conforme nos havia sido informado. Contudo, o longo período de estiagem q assolara a regiao deixou a caixa com pouca agua, sem sinais de nada correndo na ocasião. Ufa! Menos mal q havíamos levado água nas mochilas, pois a q havia ali estava parada e servia (pelo menos) pra ser fervida e utilizada pra preparação da janta.
Enqto o Nando e Ronaldo descasavam, resolvi ir pro cume propriamente dito. Chamei eles pra vir junto mas nem quiseram de saber ir pro topo derradeiro do Boa Vista. Avançando pelos bambuzinhos em meio a um visível rastro ladeando os casebres, atravessei um túnel de vegetação engatinhando e escalaminhei a mata tombada da encosta sgte. Um nível acima avistei a continuidade do rastro, subindo suavemente, ate dar na base dum enorme rochedo verticalizado onde reencontrei vestígios de ser outro sanitário de antas. “Caraca! Estes bichos são antas ou cabritos montanheses?”, pensei comigo mesmo, tendo em vista da alta declividade do terreno. Da base do rochedo é preciso escalaminhar um trecho bem íngreme, onde foi improvisado um fio plástico como “corda”, mas q eu não senti mta firmeza e venci na raça mesmo, me firmando nas rochas e vegetação em volta. No alto, bastou contornar o rochedo sgte em meio a vegetação baixa ate q finalmente não havia mais onde subir. Estava finalmente nos 1140m do cume do Pico Boa Vista, mas infelizmente a paisagem a minha frente se resumia a brumas alvas e espessas, q permitiam unicamente vislumbre parcial da torre e dos casebres, logo abaixo. Paciência.
Satisfeito, retornei ate onde estavam meus companheiros e armamos nosso acampamento. Nando pousou sua rede dentro do “iglu metálico”, Ronaldo montou sua barraca ao lado dele e eu armei minha tenda na base concretada da torre, afastado deles, onde não havia muito o q roçar pra abrir espaço. Com a proximidade do final da tarde e bem cansados, após a janta nos recolhemos a nossos respectivos cafofos, onde não demorou pra cairmos no sono. De noite esfriou e ventou bastante, dispersando td a nebulosidade q pairou durante o dia. Foi aí q a luminosidade duma lua quase cheia inundou o topo do Boa Vista, dispensando qq necessidade de headlamp naquele ermo e remoto lugar. Durante a noite tb q ouvi passos dalguma coisa andando ao redor da barraca e qq vontade de regar a moita diluiu-se imediatamente. Torci pra q fosse algum roedor ou mamífero de médio porte, mas meu “cagaço” em espiar pela porta da barraca me fez ficar na duvida eterna do q seria. Os rapazes não ouviram nada (a não ser uma coruja) mas o Reginaldo depois comentou duma suçuarana avistada pela mata. Só sei q após os passos na mata cessarem por completo, pude voltar a dormir com mais tranqüilidade, abraçado pelas zilhoes de estrelas q o firmamento pousou sobre a Serra do Itatins.
A manha sgte irrompeu maravilhosamente aberta e sem vestígio algum de brumado. Não pelo menos a nossa volta pois o nosso acampamento literalmente flutuava sobre um tapete alvo de nuvens, q foi se dispersando conforme o Sol surgia atraves do recorte silhuetado das serras, a leste. Imediatamente eu e o Ronaldo subimos a escadinha metálica (bem conservada) da torre e fomos ate quase seu topo afim de apreciar melhor o panorama. No alto tivemos uma vista deslumbrante q, da direita pra esquerda, descortina os abruptos contrafortes da Serra do Itatins, a Estrada do Despraiado serpenteando o sopé da verdejante Serra do Bananal e Serra de Miracatu, logo atrás! Com esforço é possivel avistar tb a Ilha Comprida, Ilha do Cardoso, Barra do Ribeira, Serra da Juréia e até Iguape. E claro, o azul profundo do mar delimitando o horizonte!
Qdo a sombra piramidal do Boa Vista começou a se espichar pela verdejante serra abaixo da gente, tomamos rapidamente nosso desjejum e desarmamos acampamento, pois queríamos ainda aproveitar o resto do dia. Zarpamos então do topo do Boa Vista por volta das 8:30hrs e , pra variar, a descida foi mto mais rápida q a subida. As 9:40hrs palmilhávamos a cota dos 400m e uma hora exata depois nos refrescávamos nas águas do Rio Despraiado, ao lado da ponte pênsil e sob um sol escaldante de rachar. Não bastasse, na sequencia ainda mandamos ver um tchibum na Cachu Despraiado, e depois estacionamos na “Xiboca do Cumpadi”, onde alem de bebemorar a empreitada, comemos alguma coisa (pra surpresa do “Cumpadi”, q se encantou com nosso fogareiro!) e trocamos impressões com outros locais do Despraiado. Foi ai q conhecemos o Josué, um palmiteiro q tava bem manguaçado e do qual extrai o q pode ser considerado um retrato do homem sofrido da região: recém saido da prisão após cumprir 6 anos (por atropelar e matar um casal, embriagado ao volante) e ter perdido td, havia virado palmiteiro no Despraiado como única opção de sobrevivência, e forma viável p/ manter seu vicio em drogas. “É, ainda tenho q pagar minha divida do crack q peguei anteontem senão os caras vão me matar..”, dizia ele com a naturalidade de quem tem apenas mais um “probleminha”. Fora isso, Josué dizia conhecer aquelas matas como ninguém e saber de outros acessos ao Boa Vista. Na sequencia e com bucho cheio, pegamos o carro e zarpamos dali por volta das 14hrs, cientes e satisfeitos do dever cumprido.
Finalizando, é possivel subir ao alto do Boa Vista num único dia, em esquema de bate-volta, mas é preciso começar a andar bem cedo, claro. Tomamos tb conhecimento de outros picos intocados na região, q serão oportunamente visitados noutras ocasiões em promissoras aventuras futuras. E assim, em tempos da mesmice de roteiros montanheiros tradicionalmente batidos, a Serra do Itatins resulta numa boa pedida de perrengue alternativo e selvagem a ser redescoberto. Não é a toa q qdo alguma trip desdenha rotas conhecidas em prol de pernadas incomuns q a aventura em questão ganha o peso de legitima exploração. E neste ecossistema atípico e privilegiado do Despraiado da Juréia, onde seus poucos habitantes vivem praticamente isolados de td, é ainda possivel resgatar velhas montanhas esquecidas. E tb de desbravar as q sequer foram pisadas pelo homem.
Jorge Soto
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