De volta ao PNI: 8000m a 2552m? 11,6%

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Uma ligeira brincadeira com números que a primeira vista pode parecer inocente, mas há fundamento, acredite, e não é engraçado. Meu retorno ao Parque Nacional do Itatiaia ha muito vinha sendo adiado, por conta de quimioterapia, por conta de uma frente fria invernal oportunista, por conta de agenda que não batia com meu amigo e principal companheiro de montanhas e em especial lá, enfim, diversas razões que invariavelmente impossibilitavam a concretização dos planos. Desta vez tudo deu certo, e não só para nós, para mais amigos. Por que eu deveria deixar um câncer atrapalhar nosso caminho?

Saudades do parque do meu coração batiam forte, Lilianne é a principal testemunha deste fato, me escuta falar estas palavras pelo menos uma vez a cada quinze dias. Como disse acima, não queria deixar a leucemia atrapalhar com isso. O xará número dois Paulo César reservou o abrigo Rebouças por uma noite com dez vagas e me convidou. De início cedeu algumas vagas e tratei de convidar o Tácio, a Aline, o outro xará Paulo fotógrafo (com quem fui ao Morro das Torres registrar a neve brasileira), que tratou de convidar seu amigo Marcelo.

Da parte do Paulo de Volta Redonda, todos seus amigos furaram, já que olhavam a previsão de tempo pro Parna Itatiaia no climatempo (mesmo eu explicando que não se vê a previsão do tempo pro Itatiaia neste site, já que usam cidades que ficam a 400m, 500m de altitude, e a estrada do parque que é a mais alta do Brasil está a 2.400m de altitude, são dois quilômetros verticais de diferença). Para tanto, utilizamos o site especializado Mountain Weather Forecasts, que com coordenadas de latitude e longitude, usa como base o Agulhas Negras para prever o tempo no parque. Literalmente 2.300 metros acima de onde os amigos do Paulo escalador olhavam.

Obviamente a previsão não se aplica, e baseados nesta, abortaram sua participação no uso do abrigo conosco. Assim sendo, nosso grupo ficou resumido a apenas seis vagas das dezesseis do abrigo. Nenhum outro grupo iria se juntar a nós, o que nos deu esperança de conseguir esticar a reserva por mais uma noite por lá, deixando o parque segunda-feira pela manhã confortavelmente.

Dormindo na estrada – Autor: Parofes

Tácio, Aline e eu saímos de São Paulo sexta-feira dia 8NOV2013 à tarde, sem pressa, na esperança (e olha só a minha cara de pau hehehe) de chegarmos a noite e dormir em algum lugar na estrada que sobe para o parque, já que não há mais opções, ou ficamos em hotel na cidades base do parque (Resende, Queluz, Itatiaia, Itamonte), ou dormimos em segredo sem chamar atenção já acima da linha dos 2.000 metros, entrando cedo na portaria.

Deixo bem claro e com todas as letras porque tenho ciência de nossa idoneidade e preocupação com a preservação do local. Entramos, saímos, e nunca deixamos nada além de pegadas. Este é nosso lema e praticado a fio.

Pois bem, depois de algumas horas de estrada, uma parada para janta logo após aparecida durante o pôr do sol, chegamos a Garganta do Registro, já era noite, e começamos a subir. Havia um local bem reservado, manjado já, mas muito bom e relativamente escondido, onde planejávamos acampar. Não vingou, parte da verba de R$ 350.000,00 aplicada recentemente no parque foi para guarderreios na beira da estrada impedindo a entrada de veículos neste ponto da estrada. Paciência, partimos para a opção B. Entramos na estrada que leva ao bairro de Serra Negra, descemos uns 800 metros da estrada até encontramos um trecho amplo o suficiente para dar o carro estacionado e nossas barracas, sem impedir a passagem de outrem. Foi o que fizemos, e ficamos por ali mesmo, a 2.080 metros de altitude.

Aí que notei que meu estado sanguíneo precário era mais precário do que eu imaginava. Tinha em mente algo em torno de 7.0 de hemoglobina e 22% de hematócritos, o que já seria 50% do normal de um homem saudável. Só isto já seria impedimento suficiente para a maioria sequer sair de casa. Montando minha barraca tive dois episódios de quase desmaio simplesmente me abaixando para pegar as varetas e me levantando de novo, mesmo que lentamente como prevenção. Estava muito ofegante e taquicárdico, com pelo menos 130 de FC (frequência cardíaca). Uau pensei, “está demais mesmo, vou ver como rola amanhã, mas acho que não vou aguentar andar 1km fora do abrigo…”. Planejava iluminar a barraca e fazer uma noturna, não aguentei…Assim que terminei de montar a barraca e sem fixar specks, entrei e dormi profundamente.

Acordei cedo, com as primeiras projeções de raios de sol, antes das seis da manhã. Pouco antes um carro passou por nós entretanto isso não atrapalhou meu sono. Desta vez, com a iluminação natural me levantei, saí da barraca, e já me sentia um pouco melhor. Talvez a noite a dois mil metros tenha forçado minha medula a produzir algo saindo meio que momentaneamente do estado de extrema hipoplasia em que ela se encontra, não sei, mas a sensação que tive era de que minha série vermelha havia subido um pouco, me sentia “aclimatado”.

Aliviei a bexiga, fiz três ou quatro fotos, andei uns cem metros estrada abaixo e notei que estávamos super perto de um rio, caminhei de volta. Daí três motos passaram, eram os guarda-parques do Itatiaia, por sorte, eu conhecia dois deles e mesmo sem entrar na portaria da parte alta por pelo menos dois anos e meio, penso que se lembraram de mim. Acenaram e continuaram rumo ao início de mais um dia de trabalho no paraíso.

Serra Fina desde os 2200m – Autor: Parofes

Que ironia, buscávamos um lugar recluso, escondido, e paramos justamente no local mais frequentado pelos funcionários do parque, já que a maioria mora no bairro da Serra Negra, outro paraíso da mantiqueira encrustado a mais de 1.500 metros de altitude na base do Pico da Serra Negra, também conhecido como Pedra Preta, onde chegamos caminhando em outubro de 2010. Bastava agora desmontar tudo e seguir para a portaria, aguardando uma leve pancada de palmatória no traseiro.

Xara fotografo e Marcelo – Autor: Parofes

Assim seguimos, e durante a subida passamos pelo carro do Marcelo. Eles foram menos discretos, pararam o carro na cara de pau na frente do Alsene e bivacaram lá dentro hehehe, a opção mais previsível que há pra dormir. Penso que nesse dia os guardinhas estavam zen, pois ao que parece fizeram vista grossa também ao fato. Eles ainda se arrumavam então seguimos nosso caminho até a portaria, e escutamos a velha piadinha sobre o local em que acampamos. Piadas foram feitas, todo mundo lembrou do rosto de todo mundo e ninguém se estressou, em uma conversa descontraída rapidamente o assunto mudou para o acerto de contas das entradas e pernoite no refúgio. Conseguimos a segunda noite para continuar ali, que beleza hein?

Chegando no refúgio nos preparamos para começar a caminhar em direção ao nosso objetivo, Morro do Cristal de Itatiaia de 2.552 metros de altitude (altitude medida pelo Tácio em 2010, quando repetida este ano, deu 2.543 metros), que fica ao lado esquerdo da trilha que leva a Cachoeira do Aiuruoca, com uma vista privilegiada para a Pedra do Sino de Itatiaia (2.670 metros), Pico sem nome (onde fica a rocha Asa de Hermes – 2.649 metros) e o Agulhas Negras (2.791 metros) e por fim o Serra Negra (2.572 metros).

Enquanto finalizávamos os preparativos logo após tomar café da manhã, o resto do pessoal chegou, então nosso grupo se completou e assim partimos todos juntos, em seis, na trilha que segue para o Agulhas Negras e diversas outras elevações do parque nacional mais antigo do Brasil.

Com calma, tempo incrível e temperatura amena, curtíamos cada passo dentro do paraíso número um para o montanhismo brasileiro (considero paraísos para o montanhismo brasileiro três lugares específicos: Parque Nacional do Itatiaia, Serra do Ibitiraquire e Parque Nacional do Caparaó), onde montanhismo, aventura, fotografia, e vida selvagem caminham lado a lado em harmonia. Basta o caminhante praticar o respeito necessário.

Onde esta Wally – Autor: Parofes

Pensei ser um pouco reduzido o número de sapinho flamenguinho que vimos no parque, em outras ocasiões que visitei o parque no mesmo mês vi um número infinitamente maior, mas, como este ano está atípico e as estações estão “atrasadas” cerca de três semanas, o número com certeza vai aumentar consideravelmente. Mesmo assim, vimos diversos, e o frenesi erótico nas poças de água nos tradicionais copinhos das rochas do parque estava rolando solto, então aguarde e confira, o parque ficará em clima de futebol mesmo.

Aos poucos, lentamente, progredimos pela trilha, e chegando na “trifurcação” onde a subida começa, senti mais e mais o fardo do sangue pobre. Parecia impossível dar dez passos em ficar taquicárdico. Esticando para vinte passos, meus batimentos passavam de 150 e chegava a ficar tonto. Perigoso, por isso eu precisava de paradas constantes e assim todo o grupo se atrasava por minha conta. Não posso mentir que senti vergonha por isso e pensava no Parofes que eu costumava ser e no que sobrou do Parofes hoje, mas, quão importante é? Quão preocupadas estavam as pessoas que me acompanhavam, em relação a isso? Aposto que em nada. Entretanto, psicologicamente, pra mim isso é devastador.

Mesmo assim, a vida continua, e a estrada é longa. A muito custo chegamos a altitude de 2.550 metros onde a trilha nivela e fica extremamente erodida, onde se caminha para frente sem ganhar ou perder um metro sequer. Ali consegui voltar a ser um montanhista e ganhamos terreno um pouco mais tranquilamente. A trilha agora é marcada com plaquinhas, e isso é bom para os menos experientes não se perderem. Após alguns minutos vimos a bifurcação para subida da Pedra do Altar e descida continuando a rota da travessia.

O trio na crista gramada subindo o Altar – Autor: Parofes

Pensei rápido e dei uma ideia interessante pra metade dos companheiros, xará fotógrafo, xará escalador e Marcelo, pra que pegassem a trilha subindo o Altar e depois nos encontrassem lá pra baixo mais a frente. Nenhum deles havia pisado no topo da montanha que sustenta uma altitude invejável e posição de reinado na lista das montanhas mais altas do Brasil. Rapidamente eles concordaram e subiram a Pedra, enquanto Tácio, Aline e eu continuamos descendo para nosso objetivo.

Aline e a Pedra do Altar – Autor: Parofes

Dali já estávamos relativamente perto, bastava contornar o maciço do Altar e estaríamos de cara pro gol. Continuamos calmamente, fotografando, curtindo o lugar e a festança pornográfica dos sapinhos flamenguinhos, furunfando em qualquer lugar molhado. Quando terminamos a curva víamos o morro à frente, e uma providencial sequência de rampas rochosas na sua encosta. Logo depois de nossa parada pra um meio almoço, salame regado a suco de limão natural da fruta, que levei.

Quando vi aquelas escadas não rolantes naturais, pensei em subir por ali, mas teríamos que atravessar um pequeno trecho de mato alto e eu não podia arriscar cortes, contusões e um charco então, nem pensar, já que é um dos locais mais frequentados por cobras no parque. Pensei, e abortei sozinho sem verbalizar.

Diferentemente e ao mesmo tempo que eu, Tácio pensava igual, mas verbalizou. Comentei que pensara no mesmo, mas temia que houvesse um charco ali. Tácio foi investigar e chegou a conclusão de que poderíamos passar sem grandes dificuldades. Lá fomos nós.

O que acontece, penso eu, é que já subimos tantas montanhas no Parque do Itatiaia, liberadas, proibidas, com nome, sem nome, que subir pelo caminho mais fácil sempre não tem mais graça. Então mesmo sem perceber, acabamos sugerindo um ao outro um caminho que apresente algum desafio, sei lá, creio que seja isso. Apesar de atravessar aquele mato possivelmente nos apresentasse algum obstáculo, teríamos menos desnível à vencer do outro lado. Diabos, sempre em frente.

Acabou que levamos não mais que dez minutos na travessia do trecho que se revelou ser de cem metros em linha reta, e o mato não representou nenhum desafio digno das podreiras em que já enfiamos o pé na borda leste do parque, vacinados, e eu no estado em que estava, vencemos fácil o mato. Do outro lado e já na primeira rampa de rocha, uma nova parada para descanso cardíaco.

Atrás de nós, descendo a trilha da travessia, o trio já se aproximava quando nós ainda começavamos a subir a primeira rampa de rochas. Gritamos explicando a travessia e quando nos escutaram e começaram a descer o pequeno vale viramos as costas e seguimos pro cume da montanha.

Dali estávamos a menos de 800 metros em linha reta do nosso objetivo, e seguindo as rampinhas em cerca de meia hora novamente ultrapassamos a linha dos 2.500 metros de altitude, na crista principal da montanha. Dali até o topo para o casal foi um passeio, e pra mim uma luta constante entre meu corpo que só queria se deitar e dormir, e minha mente que tinha em sua frente um objetivo irrevogável, ali bem próximo, palpável…Passo após passo, cheguei lá.

Festival de Amarilis com o Pico Serra Negra próximo – Autor: Parofes

Amarilis Hippeastrum morelianum – Autor: Parofes

Descansando e desfrutando de uma vista privilegiada e cheia de Amarilis ao nosso redor, com o Pico Serra Negra bem próximo e o rochoso Ovos de Galinha mais próximo ainda, conversávamos e fazíamos algumas fotos. Ao mesmo tempo, esperamos pelo trio que não chegava. Passaram dez minutos, vinte minutos, trinta minutos, e nada. Aline foi ver onde eles estavam e os encontrou atrás da montanha alguns metros abaixo, cansados. Haviam errado a subida e desistiram de continuar. Aline os chamou, e só o xará fotógrafo decidiu subir até nós, xará escalador e Marcelo decidiram contornar de volta pelo mesmo caminho que vieram, estavam cansados.

Assim, Paulo se juntou a nós no cume. Aline queria muito culminar a Pedra do Sino de Itatiaia, Tacio não estava muito no empreendedorismo de ir até lá porque sabia que teriam se fossem  um longo caminho à percorrer e já era duas da tarde, estava tarde pra um ataque a uma montanha de 2.670 metros que iria adicionar 4kms de trilha até seu topo incluindo descer até a marca dos 2.350 metros nas proximidades do Ovos de Galinha. Mesmo assim, topou levar a Aline, eu o despreocupei em relação a meu retorno, já que esse era um grande fator de complicação em toda nossa empreitada, eu e um possível colapso. O despreocupei porque afinal de contas não estaria sozinho, e mesmo sendo o único que sabia o caminho de volta pro refúgio, me sentia bem o suficiente para faze-lo. Abortei sem titubear minha investida ao Ovos de Galinha, e nos separamos.

Decidi fazer o mesmo caminho de volta, e assim o fizemos, lentamente, parando a cada cinco minutos e conversando bastante sobre montanhas, sobre o parque, e assuntos diversos variados sempre relacionados a montanhismo, é claro.

Levamos uma eternidade, mas chegamos ao topo da trilha e entramos novamente no planalto da parte alta, base da Pedra do Altar. Ali aceleramos um pouquinho mais já que nossa água havia acabado. Logo depois de contornar a montanha, próximos a placa de bifurcação, encontramos uma nascente e coletamos água pura de montanha. Foi ótimo e extremamente relaxante…Aliviados, seguimos nosso caminho.

Mesmo sabendo que a partir dali nosso caminho nos reservava somente descidas, estávamos todos bastante cansados, e eu, bem, muito além do meu limite. Não sei onde encontrava forças pra continuar caminhando. Como diz o Tacio, “piloto automático”. Só pode ser. Contar os passos já não ajudava mais, olhar pra frente era uma tortura pois eu via o quanto nos faltava, então eu me limitava a olhar pro chão. Mesmo assim, quase caindo me sentindo um Sansão sem cabelo, mantínhamos os papos descontraídos e eu atualizava o pessoal periodicamente de quanto tempo faltava pra chegarmos no refúgio.

Assim, lentamente e mais que lentamente, conforme minha previsão, chegamos ao Abrigo Rebouças exatamente às 18:51h. Felizmente, por causa do horário de verão, com sol brilhando ainda.

Relaxamos todos no jardim externo ao lado da represa, e imediatamente comecei a calcular o tempo necessário pra que Tacio e Aline cumprissem com o objetivo e voltassem com segurança. Já que também conheço todos aqueles caminhos, assim como Tacio, números e trilhas voavam pela minha cabeça que, mesmo privada de oxigênio e me matando de dores, calculava bem.

Caranguejeira. Foto de Parofes.

Entramos, e todos se deitaram antes mesmo de comer alguma coisa, todos os corpos precisavam de pelo menos dez minutos de cama antes de alimentação. Depois da relaxada, cada um fez sua refeição, comemos, e todo mundo partiu pro seu descanso. Marcelo rugia feito um javali selvagem que mais lembrava a série LOST (risos), xará fotógrafo dormia cansado, silenciosamente, e xará escalador organizava a mochila pela terceira vez no dia (risos). Eu, mesmo deitado, não conseguia cair no sono, não queria dormir e perder o rumo indefinidamente da soneca. Queria estar alerta. Aliás, havia dito ao xará escalador que se Tacio e Aline não chegassem até 22:30h que eu sairia em busca deles. Prontamente ele disse que iria comigo.

Parofes estancando o sangue do nariz

As horas passavam e eu recalculava tudo na cabeça, já aliviada sob o efeito de tylenol. E depois de refazer as contas três ou quatro vezes pensando em variáveis, quando o relógio marcou 21:50h comecei a me arrumar e me preparar para uma observação antes de começar a caminhar. Xará escalador se preparou também, nosso plano era subir um morrinho ao lado do abrigo que, mesmo ganhando somente vinte metros de desnível, ficaríamos acima das rochas enormes o suficiente para conseguir ver lanternas se aproximando à uma considerável distância.

Pegamos tudo, e quando segurei minhas luvas entrando na cozinha do abrigo, Tacio abriu a porta. Ufa…Calculei bem não? Alívio…

Paulo escalador havia feito macarronada de sobra já pensando no Tacio e na Aline, e isso foi providencial, já que estavam exaustos de tanta caminhada e não iriam cozinhar de jeito nenhum. Seu traçado de retorno fora completamente diferente do que eu imaginara, todas as três variantes que pensei. Acabaram desbravando um terreno muito difícil de rochas colossais, driblaram legiões inteiras de Orcs e Goblins na tentativa de chegar são e salvos ao nosso castelo. A tarefa foi muito difícil em termos de navegação, principalmente a noite e sem lua já que o céu estava parcialmente nublado, mas, combinando o conhecimento do terreno do Tacio e o apetrecho tecnológico em suas mãos, conseguiram chegar com segurança.

Ambos comeram e se recolheram imediatamente. Aliviados, todos fomos dormir.

Tacio e Aline, Couto ao fundo – Autor: Parofes

Domingo. Amanheceu um sol implacável, regado a tranquilidade que só deve se comparar a um solo de corpos ensanguentados após colossal batalha em que todos sucumbiram. Ao som de passarinhos ficamos eu, Tacio e Aline no gramado externo do abrigo só conversando sobre o dia anterior e outros assuntos diversos. Xará fotógrafo e Marcelo foram caminhar até a cachoeira das flores e atrapalhar um casal que engajava em coito, e xará escalador voltou ao Morro do Couto torcendo pra não quebrar o tornozelo novamente.

Logo a dupla voltou, preparou suas coisas e nos despedimos, eles iriam encarar o trânsito de volta para São Paulo no domingo mesmo, por volta de uma da tarde. Pegaram tudo e foram embora. Nosso grupo agora se resumia a quatro pessoas no abrigo, e o suposto grupo da ICMBIO que viria se hospedar e fazer pesquisa de campo acabou não comparecendo.

O único trabalho que fizemos durante nosso deleite ao sol foi secar nossas barracas e guarda-las adequadamente, o que não fizemos na manhã do sábado. Durante esse trabalho, tive um novo episódio de quase desmaio que me levou aos joelhos. Que chato isso!

Após almoçar, decidimos caminhar um pouquinho pela estrada rumo a base do Prateleiras para fotografar alguma coisa, e até fomos, mas como eu estava completamente derrotado e sangrando demais pelo nariz, depois de uns quatrocentos metros decidi parar. Ficamos por ali um bom tempo, conversando, enquanto Tacio trabalhava em um time lapse. Depois eles esticaram o passeio até o Prateleiras na esperança de ter uma iluminação bonita pro pôr do sol. Eu não tinha forças, só podia me contentar com o retorno. Enquanto voltava, encontrei com algumas tarântulas se preparando pra caçar na beira da estrada na noite já próxima. Escolhi uma, me sentei ao lado dela, gentilmente a peguei e deixei que caminhasse no meu braço. Depois de dois minutos ela ficou meio arisca, não receptiva à interação, então deixei que voltasse pro solo pedregoso e fiz três fotos dela.

Agulhas em Alpenglow – Autor: Parofes

Continuei meu retorno pro abrigo, que mais parecia estar a diversos quilômetros de distância. Quando finalmente cheguei, estava sozinho. Lá me refresquei, comi uma maçã, e fui ao banheiro limpar o sangue das narinas. Tradicionalmente este processo me causa náuseas, e além do sangramento nasal eu estava com sangramentos gengivais também, impedido até de escovar os dentes, me limitando a gargarejos com pasta de dente. Quando limpei o nariz, a ânsia de vômito foi incontrolável, perdi quase todo o almoço.

Me limpei e tentei relaxar um pouco, deitei e ofegante, taquicárdico, procurei me manter o mais sereno possível. Daí quando estava mais sossegado me levantei, saí do abrigo, da represa olhei o entorno e notei que Tacio teria um belo espetáculo para fotos, já que o céu começava a limpar e o horário dourado se aproximava, haveria um pôr do sol belo à ser registrado, pra minha posição, impossível de se fazer com todo o maciço do Morro do Couto na frente impedindo a vista. Tudo o que fiz foi, sem ter forças pra caminhar até o mirante do Morro da Antena, observar a natureza ao meu redor em toda sua plenitude. Só, pude refletir plenamente.

O sol se pôs, anoiteceu, e por volta das 20:30h Tacio e Aline chegaram. Jantamos, conversamos mais um pouco, e logo o céu se fechou, estragando com nosso plano de fazer algumas fotos noturnas. Paulo escalador chegou logo em seguida depois de um dia inteiro escalando no Couto, praticamente dez horas de rocha com seus amigos.

Agulhas Negras da estrada – Autor: Parofes

Nada mais à fazer, fomos dormir. Acordamos todos cedo e deixamos o parque por volta de nove e meia da manhã de segunda-feira. Sem trânsito e tranquilamente três da tarde Tacio já me deixou em casa.

Terça-feira fiquei em casa e descansei. Combinei com a Lili que quarta-feira dia 13 eu viria cedo ao hospital pra ver minha situação e provavelmente me internar, o que aconteceu. Meu sangue estava paupérrimo com somente 5.1 de hemoglobina, 1.160 de leucócitos e neutropênico grave, e apenas 12.000 de plaquetas. Que coisa…com uma série vermelha tão baixa, subir uma montanha de 2.552 metros pra mim significou um pico de mais de 8.000 metros e sem uso de oxigênio complementar, já que meu sangue carrega literalmente só 1/3 do oxigênio que o sangue de um homem saudável carrega. Surpreendente. Como fiz isso, não sei. Bem…fica explicada a minha fraqueza extrema.

Fiz novamente mielograma, imunofenotipagem e a maldita biópsia de medula óssea. No mesmo dia fiz tomografia de seios da face e de tórax. O resultado das tomos já foi algo irritante, sinusite aguda e pneumonia, quadros que já se arrastavam por provavelmente duas semanas. Quando o resultado do mielograma saiu então, a casa caiu: A medula já está contaminada por 11,6% de blastos. A decisão tomada hoje, dia 17NOV2013 é de reindução imediata, aquela químio tóxica que quase me matou no início deste ano. Lá vamos nós de novo…

Enfim, é isso aí. Um pouco decepcionado com esse desfecho, mas não é nenhuma surpresa, a medula já vinha agonizando desde o final da última consolidação, não se recuperou como fez nas três consolidações anteriores. Portanto, que venham as drogas, vou ficar careca de novo, tudo de novo…e internado por tempo indeterminável, passo meu aniversário aqui dentro.

Despedida da montanha brasileira que mais me impressiona. As Agulhas Negras. Autor: Parofes

Me desejem sorte, vou precisar.

Abrazos a todos
Parofes

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Sobre o autor

Parofes, Paulo Roberto Felipe Schmidt (In Memorian) era nascido no Rio, mas morava em São Paulo desde 2007, Historiador por formação. Praticava montanhismo há 8 anos e sua predileção é por montanhas nacionais e montanhas de altitude pouco visitadas, remotas e de difícil acesso. A maior experiência é em montanhas de 5000 metros a 6000 metros nos andes atacameños, norte do Chile, cuja ascensão é realizada por trekking de altitude. Dentre as conquistas pessoais se destaca a primeira escalada brasileira ao vulcão Aucanquilcha de 6.176 metros e a primeira escalada brasileira em solitário do vulcão ativo San Pedro de 6.145 metros, próximo a vila de Ollague. Também se destaca a escalada do vulcão Licancabur de 5.920 metros e vulcão Sairecabur de 6000 metros. Parofes nos deixou no dia 10 de maio de 2014.

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