Há 28 anos, Messner fazia cume no Lhotse e finalizava a escalada de todos os 14 8 mil

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Foi no dia 16/10/1986 que o alpinista italiano Reinhold Messner chegou ao cume de seu ultimo oito mil metros, o Lhotse. Com esta escalada, o famoso sul tirolês abriu as portas para o chamado “grand slam” do montanhismo, que é subir as 14 montanhas mais altas do planeta. Confira abaixo o relato de Messner sobre como foi esta épica escalada:

Eu já havia estado em duas expedições ao Lhotse antes desta última e vencedora tentativa. Na primavera de 1975 eu tentei a face Sul como membro de uma expedição italiana. Esta foi a única expedição ‘nacional’ em que eu participei. Patrocinada pelo CAI, o Clube Alpino Italiano, e sob a liderança de Riccardo Cassin, um dos mais ativos escaladores da década de 30, tínhamos fartura de equipamento. Mesmo assim, falhamos.
 
Tivemos alguns momentos desagradáveis. Quando uma avalanche de gelo varreu nosso acampamento base, eu pensei que todos fossemos morrer. Depois, no alto da parede, enquanto escalávamos um corredor de avalanches, a superfície da rampa de gelo poderia ter se descolado, conosco sobre ela, mas ela suportou. Escalamos até a crista do topo, sob enorme ameaça e sabendo que seria inviável. (Não teríamos alcançado muito mais na face oposta, a face Norte, sem enfrentar um grande desvio).
 
Igualmente, eu havia falhado uma vez na via normal do Lhotse. Isto foi em 1980 quando tentei ir ao cume sozinho após meu único sherpa, Dati, ter se recusado a subir comigo. Ele tinha motivos religiosos e permaneceu no acampamento base. Eu compreendi e não o pressionei nesse sentido. 
 
Desta vez, minha terceira tentativa, eu ansiava por mais sucesso. Hans, Friedl e eu passamos a noite no acampamento 2 dos suíços, mas na manhã seguinte, Friedl, que estava com dor de dente, retornou ao acampamento base. Alguma bolha de ar sob uma obturação estava lhe causando uma dor intensa em meio ao ar rarefeito da montanha, e estava piorando a cada hora. Ele foi forçado a desistir desse oito mil, que de outra forma ele certamente teria sido capaz de escalar.
 
Hans e eu permanecemos no acampamento 2 até bem tarde na manhã. O vento aumentava bastante à medida em que subíamos e estava quase escurecendo quando chegamos ao acampamento 3, no meio da parede do Lhotse, a 7500m. Nos esticamos na barraca parcialmente destruída dos suíços, mas não conseguimos fechar os olhos naquela noite. No dia seguinte ainda queríamos prosseguir, mas estávamos preocupados de a escalada não ser possível em meio àquela tempestade. 
 
Ainda assim, saímos da barraca na manhã do dia 16 de outubro. Vestimos as roupas mais quentes que tínhamos e, equipados com crampons, começamos a escalar no meio da tormenta. As cordas fixadas pelos suíços na "Faixa Amarela" e acima dela, haviam se soltado ou então carregadas pelo vento, então escalamos sem elas usando apenas nossos piolets e o nosso equilíbrio.
 
As condições da neve estavam tão boas que inicialmente fizemos um bom progresso, apesar de tudo. O único mau momento surgiu um pouco abaixo do estreitamento da canaleta do Lhotse que segue do canto esquerdo até o lado direito do cume. Com a neve na altura dos joelhos, em muitos pontos tivemos muita dificuldade de progredir e em conseqüência perdemos imediatamente a velocidade. Em um ponto, na parte superior do canaleta, no espaço entre duas paredes empinadas, fomos praticamente soprados para cima. Com uma forca impressionante, o vento nos empurrava para cima.
 
Quantas vezes em expedições eu desejei que uma brisa pudesse me transportar até o último centímetro. A forca deste vento era tamanha, que em lugares que tomavam 20 ou 30 passos, tivemos apenas que mover nossos pés um à frente do outro. Naturalmente, tínhamos que tirar um breve descanso em intervalos, pois mesmo manter o equilíbrio já nos custava energia, mas às vezes éramos arrancados do chão e levados para cima. Nunca antes os últimos 200 metros de uma escalada se passaram tão rápidos quanto naquele dia no Lhotse.
 
Eu pensava que deveria parar por alguns momentos antes do cume daquele que seria meu último oito mil, como um gesto de respeito. Mas, arrastado e sacudido pela tempestade, o gesto não foi possível. Minha simples subserviência já era tributo suficiente. Sem qualquer desejo de ser um herói, ou mesmo um anti-herói, eu segui Hans.
 
No final do colo, em um pequeno degrau, nós paramos, seguramos firme nossos piolets, que havíamos afundado na neve e buscamos recuperar o fôlego. Não nos atrevíamos a cometer o menor erro nesta que seria a última pedra a escalar, a segunda à esquerda das pirâmides de pedra do cume. Escalá-la com segurança nos exigiria a mais alta concentração e teríamos que esperar o intervalo entre as rajadas caso não quiséssemos aprender a voar.
 
Ser arrancado do chão na subida da canaleta não era tão sério, apesar de que, além da sua proteção, enfrentamos também o contrário: cristas e encostas expostas. Tivemos que nos agarrar aos piolets para viver e não sermos carregados embora. Nenhum de nós dois tinha uma mão livre para fotografar. De qualquer forma, ambas as câmeras congelaram – havíamos percebido meia hora antes. Quando conseguimos alcançar o cume, um após o outro, nos viramos imediatamente e partimos dali para baixo novamente.
 
O cume é atingido quando não há mais nada a escalar e não quando se está cansado ou amedrontado ou desistindo de subir. E você fica de pé ali desejando nada mais que uma descida segura até o chão, onde é quente, possível descansar e seus amigos te esperam. Neste vazio sem ar ninguém permanece por muito tempo. Não apenas por que não há oxigênio suficiente, mas porque há pouco calor humano, pouco sentido e pouco amor.
 
Estático como um inválido, eu permaneci no cume. A neve sob meus pés era firme e muito distante de mim, apenas meus crampons me ligavam a ela. Eu fechei meus olhos à medida que a tempestade apertava. Apenas minha boca permanecia bem aberta. Quando a bruma sumiu, pude ver um pedaço de céu como se fosse vidro congelado. Atrás estava a escuridão da eternidade e rajadas verticais de vento cruzavam o ar. O ar não apenas tinha substância, mas também força. Com um instinto animal eu reconheci este lugar sem nome. Eu estava lá. Tudo à minha volta era um inferno intenso: tempestade, frio e o vazio.
 
Você fica rapidamente despido lá em cima, diferente de qualquer coisa em níveis mais baixos. Os poucos minutos passados lá no alto foram suportáveis apenas porque agora eu sabia que o tipo de sorte que eu procurava ali, por semanas e semanas e finalmente após 16 longos anos, existe apenas nas altitudes mais baixas.
 
No Lhotse aventuramos nossa escalada em meio a uma tempestade, do tipo que eu apenas encontrei anteriormente durante a descida de uma montanha. Em nenhuma de minhas expedições anteriores aos oito mil eu considerei partir para uma escalada em condições como aquelas.
 
Eu não sei porque dessa vez arriscamos mais que das vezes anteriores. Eu só posso dizer que Hans e eu nos sentimos seguros fazendo a escalada. Apenas quando estivemos entre os pilares do cume do Lhotse foi que hesitamos por um momento. Podíamos perceber o perigo, mas a proximidade do cume aumentou nossa confiança. Continuar em frente significou que toda a empreitada poderia ser concluída.
 
No cume desta vez não houve tempo para comemorações, apenas a ansiedade para descer de volta. Também a descida exigiu nossa total concentração. Apenas no dia seguinte, quando cruzamos com segurança a cascata de gelo e nos aproximávamos do acampamento base, é que um tipo de alegria me invadiu. Não do tipo “Iuhuu! Conseguimos!” Mas o tipo de alegria por estar vivo enfim, e somado ao sentimento de que eu estava agora livre para fazer outras coisas.
 
Não houve sentimento de heroísmo ou conquista após o décimo-quarto cume, mas apenas a satisfação de ter realizado uma idéia complexa, um objetivo a que eu me propus: a obrigação de escalar todas as montanhas de 8,000 metros sem garrafas de oxigênio e em um estilo "justo", tanto quanto possível, foi algo que assumi voluntariamente. Ninguém me ditou regras ou condições, com exceção da própria Natureza e, em função de ter cumprido esta obrigação, eu me sentia satisfeito comigo mesmo a esse respeito.
 
Neste momento não tenho preocupações sobre meu futuro. Tenho uma diversidade de novas idéias e novos planos. A escalada dos oito mil está profundamente presente na mente do público, mas não me interessa muito mais. Não apenas alpinistas, mas milhões de pessoas comuns estão começando a considerar seriamente as montanhas de oito mil, em uma época em que elas não deveriam mais ser levadas tão a sério. Agora que eu sobrevivi à escalada das 14 montanhas, a realização se sobrepôs à sua importância – pelo menos para mim. Este tipo de aventura se tornou fora de moda. Tornou-se uma instituição e por assumir um aspecto mundano, consequentemente, tornou-se também antiquado.
 
Eu teria de recomeçar bem do início se eu quisesse avançar a partir daqui. Eu tenho que reaprender tudo novamente. Em todos os campos eu tenho que dominar o que já foi feito anteriormente para conseguir dar um passo a frente, da mesma maneira que todos os que vieram antes de mim. Minha vida toma uma nova direção. Mesmo sendo criticado, tanto pelos mais antigos quanto pelos escaladores mais jovens, eu me asseguro e tenho certeza que estou na direção certa.
 
Hoje tornou-se fácil para mim financiar minhas expedições. Tenho orgulho disto tanto quanto das outras conquistas. Eu não encontrei ainda um patrocinador verdadeiro, no sentido de alguém que me dê dinheiro para minhas empreitadas sem o desejo de um retorno, mas eu fiz tantos contatos, e adquiri tantos royalties pelos meus livros, que eu posso "indulgir" meus planos mais selvagens.
 
O lado prático de minha vida foi moldado até um certo ponto pelos meus predecessores, por ter levantado e desenvolvido muitas idéias de montanhismo oriundas da história. A única maneira de fazer algo “novo” seria conhecer o que cada um havia feito antes. 
 
Me espelhei em pessoas como Walter Bonnati, Hermann Buhl, e Paul Preuss – mesmo quando foi necessário desenvolver técnicas de negociação para cachês por palestras ou fechando contratos de propaganda. Todos os três alcançaram um “trabalho” exemplar com suas escaladas, tornaram-se exemplos de como organizar uma vida como um aventureiro independente e, além dos poucos amigos que tenho, foi deles que obtive o auxílio mais prático. Eu não teria feito isso sozinho.
 
Os outros que me auxiliaram, os leitores dos meus livros, as pessoas que assistem minhas palestras, os fãs, foram como o vento no Lhotse. Sem seu reconhecimento eu teria falido emocionalmente, teria abandonado em algum lugar do caminho. Sem a confiança dos meus parceiros de negócios eu nunca teria tido a chance de ir tão longe e certamente não “ao cume”.
 
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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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