A Travessia da Reflora

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Vinculada à Cia Melhoramentos e popularmente conhecida como “Reflora”, a Reserva Florestal Alfredo Weiszflog é uma vasta área repleta de morros, reflorestamento, mata ciliar, riachos e muita vida animal. Agregando uma extensão da Serra do Tico-Tico e do Morro da Pedreira, esta reserva leva o nome de um dos grandes diretores da empresa e sua função é suprir a mesma de matéria prima, embora uma boa parte esteja sob proteção ambiental. Por conta de suas dimensões superlativas e altos visus, o lugar é paraíso dos adeptos duma magrela, o que não impede que também possa ser desfrutada em duas pernas. Eis aqui uma puxada pernada de quase 25kms que começou em Perus e findou aos pés do Morro do Rosário, já nos limites de Jordanésia.

Após rodar o primeiro terço da Linha Rubi da CPTM naquela manhã fria com promessa de bom tempo,  eu e a Natachi saltamos ás 9:30hrs na Estação de Perus. Dali basta sempre tocar pra noroeste, e isso se consegue tomando uma estreita passagem que dá acesso ao viaduto sobre a estação. Provavelmente tropece aqui com alguns “noinhas” ou mendigos cochilando nos degraus, mas nada que ofereça grandes riscos. Claro que não recomendo passar aqui no escuro, daí é necessário dar a volta e tomar uma rua logo acima o mesmo acesso.
No topo do viaduto o sentido é intuitivo pois basta cruzar a entrada (sempre aberta) duma propriedade que bordeja o pé dum morrote bem baixo. A rua é precariamente asfaltada e naquele horário bem adiantado trombamos com tiozinhos em sua caminhada matinal. Logo adiante passamos pelo lado dum antigo casarão abandonado e, mais a frente, com a entrada duma decrépita fabrica abandonada de cimento, a “Portland-Perus”. Abandonada em termos, ainda há seguranças tomando conta e o latido estridente de cachorros denuncia nossa presença. Contornando a entrada damos novamente na precária via que bordeja os limites da supracitada fabrica abandonada e toca indefinidamente pra oeste, conforme desejado.
A estradinha deixa a fabrica pra trás, passa pelos vestígios da antiga vila operária (que mais parece um presépio tomado de mato) e finaliza no que parece ser uma residência, na verdade, uma igreja. Mas não tem problema, ao lado dela percebo uma trilha em meio ao pasto dando continuidade á precária estrada. Reparo que a estrada nada mais é o caminho pelo qual passava a antiga linha férrea da Perus-Pirapora, na qual ainda há vestígios de trilhos. Em tempo, durante todo tempo tenho a companhia do Rio Juquery, marulhando suas espumosas águas a minha direita.
Sempre pela supracitada vereda em meio ao pasto, cruzamos por baixo da Rod. dos Bandeirantes (SP-348). Após o viaduto o horizonte se expande e tenho o primeiro vislumbre do Morro da Pedreira, elevando sua elegante corcova forrada de verde a noroeste. O passo é rápido e a navegação, totalmente desimpedida e sem maior dificuldade. Lembrando que a manhã começara ligeiramente encoberta e agora reluzia um firmamento totalmente limpo, com promessa de calor e sol pelo resto do dia.
A pernada prossegue tranquila pela tranquila vereda, cruza algumas casinhas de alvenaria – onde moram algumas famílias humildes – a margem da antiga linha férrea e tem continuidade sentido oeste, sempre em nível. Aqui a Natachi encantou-se com uns porquinhos, atraindo a atenção da criançada residente nos casebres. Disseram que os leitãozinhos  (que mais pareciam porquinhos-da-india ) chamavam-se Rodrigo e Lacinho, e fizeram questão até de mostrar o pai deles. Simpáticas e doidas por um dedo de prosa com quem passa por ali, as crianças e os suininhos animaram aquele inicio de pernada.
Nos despedimos da molecada e seguimos em frente, qdo o aroma agridoce e intenso de ameixas inunda as narinas e logo percebo voçorocas do pé ornando a bucólica vereda. Mas logo adiante desembocamos numa estrada de chão maior, onde abandonamos os trilhos e seguimos por aquela via principal, ao norte, pois será por ela que teremos acesso as veredas que adentram a reserva em questão. Após andarilhar um pouco pela poeirenta estrada, cruzar a ponte concretada sobre o Rio Juquery e andar outro tanto, abandono a via principal em favor duma discreta vereda que acompanha a linha de torres de alta tensão. Na verdade esta é uma via de manutenção e nela nos mantemos durante um bom tempo, no aberto, agora tocando pra oeste.
Subindo então suavemente pela tal vereda num chão tão avermelhado, escorregadio e repleto de buracos provavelmente devido a erosão constante, não tarda pra abandonar a vereda por outras nascendo ela lateral. Esta se embrenha num belo bosque de eucaliptos pra depois palmilhar a encosta do serrote, agora permitindo vislumbres da Serra do Tico-Tico, que começa lá pelas bandas de Caieiras e se esgueira até estas bandas, sendo subitamente interrompida pelo asfalto da SP-348. Recordo de anos atrás começar a andar por aquelas bandas, mas fui brecado pelos seguranças da Cia Melhoramentos, e ano passado voltei aquela serrinha onde alcancei seu ponto culminante, um tal Morro da Pedreira.
Da encosta bastou descer um suave vale ao sopé da serra supracitada, onde me deparei com uma encruzilhada conhecida. Nossa rota era pra oeste, mas toquei rumo nordeste apenas pra mostrar pra minha parceira de vez a enorme cratera da pedreira, um espetáculo impressionante que valia a pena conhecer. No caminho reparei que a vereda foi alargada consideravelmente desde minha última visita, sinal que caminhões circulam com mais frequência por ali.  A larga vereda, antes de terra ou avermelhada, dá lugar a um precário chão cascalhado. Conforme ganho altitude as vistas a sudeste vão se alargando, permitindo apreciar todo caminho feito até então. Vale salientar também que a encosta esquerda do morro é composta de pura rocha, mas a vegetação se empenha forte em se levantar pra ver a luz do sol agarrando-se fortemente ás pedras.
E assim, pouco antes do meio-dia chegamos no selado antes avistado. “Área de risco. Detonação. Não ultrapasse. Abrigue-se ao toque da sirene”, alerta uma placa que corrobora estarmos nos limites da Mineradora Pedrix. Mas um pouco adiante a vista se abre, ou melhor, afunda e percebo que estamos bem na beira da pedreira, numa espécie de mirante, onde se tem um “belo” visual de toda aquela mega cratera, intervenção humana no morro apenas pra fornecer material pra construção civil. Pausa pra fotos, descanso, goles de água e alguma prosa. Ali tropeçamos com um biker local, com quem troco informação. Contou dos novos acessos (antes proibidos) por Caieiras, dos bichos que costuma cruzar no caminho, como veadinhos e cobras. Mas ficou bastante surpreso da gente estar rasgando aquele vasto lugar a pé, engasgando até quando comentamos que nossa intenção era chegar perto da Pedreira da Anhanguera. Pois é, biker fica surpreso com a disposição de trekkers que fazem praticamente o mesmo que eles, so demandando mas tempo pra isso.
Pouco depois nos despedimos do biker, que seguiu rumo norte, enqto a gente deu continuidade a nossa jornada. Antes de retornar a encruzilhada anterior, descemos coisa de 2km na direção nordeste apenas pra bater uma foto da placa da reserva que, talhada em alto relevo numa madeira nobre, tinha lá seu charme rústico. No entanto, o que mais nos encantou foi a mata em volta da gente, que mudou de reflorestamento pra um belíssimo bosque de pinheiros e araucárias. O cenário era mesmo bem bonito, e enquanto eu esperava aparecer um Bambi no meio da vegetação a Natachi colhia pinhões aos montes, na esperança de cozinhá-los em casa.
Voltando finalmente á encruzilhada, prosseguimos sempre sinuosamente na direção oeste, margeando sempre o sopé da enorme serra, que por sua vez elevava suas encostas verdejantes e íngremes ao nosso lado. Vale dizer que pro trajeto me vali unicamente dum xerox da carta local e bússola,  e os caminhos fui a minha frente fui tomando conforme fossem na direção desejada. Noutras, navegação artesanal pura.
E lá fomos percorrendo aquele fundo florestado de vale, onde eventuais frestas permitiam algum visu do muralhão verde ao norte e até onde pudemos colher água fresca dum correguim que cruzava a própria vereda, oriunda das altas encostas da serra. Mas após um tempo nesse compasso começou a subida que, agora virando em direção a montanha passou a palmilhar sinuosamente rumo o selado mais baixo da mesma. Não tardou pra emergir em vastos terrenos descampados (onde o desmatamento era visível) que ampliaram os horizontes pra onde o olhar fosse dirigido: desde a íngreme encosta da Serra do Tico-Tico, os vastos reflorestamentos da reserva e até as elevações emergentes que dali eram visíveis, como o Ovo da Pata (no Parque Juquery) e o Pico do Jaraguá, ambos a sudeste.
Uma vez no alto da abaulada serrinha, nos prostramos a sombra do arvoredo a margem da via, próximos da onipresente torre de alta tensão, cujas linhas zuniam a eletrostática de milhões de Kwatts sendo transportados sabe-se lá de onde pra onde. Pausa pra descansar e pra lanche, uma vez que pelos meus cálculos estávamos na metade do trajeto. Dali em diante em tese não haveria mais subidas e sim apenas descida pro outro lado da serra e o restante sem desnível algum. Em tese. Devia ser pouco depois das 13hr e enqto eu mastigava uma fruta minha parceira engolia mais um sanduba de alface e mortadela.
A descida do serrote foi relativamente tranquila, embora a vereda se mostrasse muito mais estreita, erodida e acidentada que do outro lado. Todo cuidado é pouco pois pra escorregar no chão repleto de cascalho solto ou liso de musgo não custa muito. Na verdade este trecho, sempre na direção norte,  mostrou-se bem mais rústico e interessante que o anterior.  E assim, sinuosamente caímos num fundo de vale alagadiço repleto de aguapés, onde foi preciso saltitar pedras e chão seco pra não chafurdar na lama.
Após o fundo de vale a vereda se pirulitou levemente pela borda dum morro florestado rumo nordeste, mas logo retomou o sentido certo, ou seja, norte. E após algumas bifurcações caímos numa linda via cercada de mata ciliar, que ornou nosso caminho por cerca de meia hora compassada na direção noroeste. Rumorejos do precioso liquido eram audíveis a todo momento (principalmente a nossa esquerda), mas felizmente nossos cantis estavam cheios. O incrível de todo trajeto foi que não cruzamos com sequer vivalma, uma vez que os bikers preferencialmente rodam estas bandas apenas no período da manhã.
Um tempão depois caímos numa estrada de chão maior, que decerto era a espinha dorsal daquele setor da reserva. Correndo de leste a oeste ao sopé do serrote que limitava a mesma ao norte, aquele estradão certamente era uma via de extração, deduzi. E assim nos mantivemos por ela por mais um tempão, tocando na direção oeste sem alteração no percurso. O trajeto foi bem tranquilo, alternando muita mata ciliar, reflorestamento e um vasto trecho recentemente desmatado (embora pelas imagens aéreas ainda tivesse mata) onde pude comparar a paisagem com a carta topográfica. Um belo e significativo cocoruto elevava-se elegantemente a noroeste, atrás de morraria mais baixa. “Aquele lá é o Morro do Rosario! “, pensei. Mas o que realmente impressionou eram os enormes pneus dos caminhões  de extração de madeira, singelamente aqui chamados de “veículos de coleta mecânica”.
Na sequência continuamos por mais um tempo na direção oeste, sempre no estradão, mas agora novamente no frescor dum bosque de mata ciliar bem florestado. Mais uma breve parada não apenas pra descansar mas pra colher limões direto do pé, abastecendo as mochilas das compras na “feira”. Mais um pouco, alguns ribeirões cruzados e pronto, cruzávamos os portões enferrujados (e sem sinal sequer de vida) na decrepita guarita logo ao lado. Creio que ate ali devia ser pouco antes das 16hrs.
Mas acredite se quiser, após sair da reserva que o perrengue realmente começou. Perrengue pois dali em diante percebi não ter levado croqui ou carta, imaginando que dali em diante seria fácil. Ledo engano, dos portões nasciam quase que três ramificações que gereram duvida no sentido a tomar. Sem vivalma pra apontar a direção correta, o jeito foi este que vos escreve tomar a decisão certa. No entanto, o cansaco afetando até o bom senso deste aqui, optei melhor por deixar minha colega descansando enqto eu testava nossas opções. E após coisa de 4kms de subidas e descidas percebi que a opção correta era a via do meio, ou seja, a que se mantinha na direcao oeste. Na verdade creio que as outras ate serviriam, mas nos deixariam longe do ponto de ônibus.
Seguindo sempre em diante pela via supracitada, não tardou pra saltar um portao de madeira e começar a ouvir o borburinho do asfalto não muito longe. Macumbas e um veiculo queimado a margem da estrada apenas confirmava nossa proximidade com a civilidade e, num piscar de olhos, pisávamos no asfalto da Rod. Anhanguera. O Morro do Rosário elevava-se a nossa direita, mas o bom senso indicava que deveríamos tomar a esquerda e, andando mais 2km, cruzamos pro outro lado pela passarela onde caímos num oportuno ponto de ônibus, onde não demorou pra embarcar no intermunicipal que vinha de Jordanésia e nos deixaria na Lapa, coisa de 40min depois.
Antes de nos despedir pra cada um tomar sua respectiva condução, entre goles de cerveja eu e a Natachi confabulamos sobre outros possíveis roles pela “Reflora”. A guria já pensa em retornar lá mas de bike, pois considerou puxada a pernada pelas distancias envolvidas. Sem dúvida, mas ai que ta a graça da coisa. Eu já penso num circuito dando a volta pela crista norte começando na pedreira, passando pelas ruinas dos fornos de cal do nordeste e saindo pelo Cruzeiro de Caieiras. Mas a presença de água potável  nos fundos de vales já garante pernadas maiores, se assim preferir. Pois é, aquele biker que encontramos na Pedreira realmente ficaria surpreso com nossa disposição em andar.
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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