Presente de Aniversário

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Na Estrada da Graciosa, do recanto da Boa Vista observei uma imponente cabeça de pedra desnuda no alto da encosta leste do Morro Sete, mas depois analisando cartas planialtimétricas e imagens aéreas entendi que se tratava de uma bem pronunciada crista orientada a Sudeste e pouco afastada do maciço principal.

Procurei maiores informações com o Henrique (Vitamina) Paulo Schmidlin que de imediato identificou o Morro das Caranguejeiras pelo qual o Stamm e o Gavião subiam para o Mãe Catira e, raramente, também ao Sete. Nos diários do Gavião estão registradas cinco subidas, todas pelo Rio do Corvo que passa ao lado da Casa dos Garbers, e de fato era o itinerário padrão até 1982 quando foi aberta a trilha atual completada em 1993 pelo Anderson (Camarão) Bulgacov e o Adriano (Bugio) com a descida até o Morro Sete. O Vita mergulhou nos seus arquivos vasculhando as “gazetinhas” e os escritos do Stamm sem nada encontrar para em seguida atestar seu ineditismo. Escondida de todos e bem a vista de todo mundo.

O Natan se empolgou já na primeira vez que a viu na foto aérea e tratei de convencer o Leandro (Bolívia) Pereira da Silva com o Rodrigo (Xandão) Barbosa quando descemos a Estrada da Graciosa para o meeting 2020 dos Nas Nuvens Montanhismo (NNM). Pouco demorou para que todo o recém-formado Clube União Marumbinismo e Escalada (CUME) a elegesse para estrear na quiçaça.

Descida da Serra – Juliano Pereira dos Santos

O domingo de 24 de janeiro amanheceu com cara de chuva, mas as nove da manhã Anderson (Camarão) Bulgacov, João Augusto Silveira Ribas, Júlio Cesar Fiori, Leandro (Bolívia) Pereira da Silva, Luciana Rocha Kielt e Natan Fabrício de Loureiro Lima já se encontravam no início da crista, na Curva da Ferradura. A idéia era somente fazer um reconhecimento do terreno para a futura investida, mas com o clima e a vegetação ajudando, o Camarão só sossegou o pito quando os facões perderam o fio na cota 850.

Passei as semanas seguintes estudando a rota enquanto a temperatura batia recordes de calor, mas foi amenizando aos poucos até que noutro domingo, sete de fevereiro, amanheceu um dia de outono com céu totalmente limpo e um agradável vento Sul. No dia anterior comemorei 64 anos e passei a considerar aquela crista como meu presente de aniversário, mas teria que ralar muito para o merecer.

Braços fortes é o que não faltava, além dos já citados, o Alisson Cotrim Wozniak, Iury Rech Franceschi, Josiani Regina Simonelli, Juliano Pereira dos Santos, Rafaela Ferreira Lara, Renato Martins Flores Filho, Tayná Fernanda Vieira, Thiago Benatto e Wilson (Guga) Baptista Honório Alvez chegaram ao Posto Túlio as 5h30 e sem mais demora seguimos para a serra. Alguns automóveis ficaram estacionados junto a Casa dos Garbers e outros no recanto da Curva da Ferradura. As 7h00 já estávamos todos caminhando no mato.

Curva da Ferradura – Natan Fabrício de Loureiro Lima

O percurso segue a mangueira de captação d’água que se inicia atrás do banheiro mais afastado e termina numa agradável cachoeirinha. A trilha aberta duas semanas antes estava bem visível e facilitou bastante a marcha até a cota 850 que rapidamente foi atingida. Agora não estávamos distantes dos imponentes paredões e a vegetação dificultava o avanço, mas as belíssimas panorâmicas a esquerda para as paredes do Morro Sete e a direita para a Estrada da Graciosa e do Litoral se sucediam de maneira encantadora. Imagine a Pau do Maneco ao avesso.

A temporada de acasalamento 2020 para as jararacas foi das melhores e encontramos alguns filhotões abrigados dentro de bromélias ou simplesmente cruzando despreocupadamente a crista.

O pelotão de frente era constantemente renovado enquanto outros se encarregavam de limpar e fitar o caminho até que a fila bateu de frente com o primeiro grande obstáculo depois de três horas de labuta. Surgiu um degrau vertical, incontornável e sujo prontamente enfrentado. O Camarão e o Guga chamaram para si a responsabilidade e mandaram ver derrubando os escassos apoios vegetais que encontraram para em seguida ancorarem precariamente um pedaço de corda. Carregávamos um pedaço de corda com aproximadamente quinze metros e outros dois bens menores, todas já desgastadas por muitas escaladas que pretendíamos abandonar pelo caminho, mas que voltaram para casa em vista da sequência interminável de piramba que apareceu acima da cota 1000.

Após o primeiro surgiu um segundo obstáculo passado em diagonal com o piso escorregando morro abaixo e outros onde a corda serviu apenas como apoio psicológico, mas era bonito de ver a determinação do povo, ninguém chiava, nada de mi-mi-mi. Até que batemos de frente com o cabeção pelado. Para cima só escalando e esta não era a intenção, além da falta de equipamento. A esquerda o abismo sem fim e a direita o tombo também não era desprezível. Recuamos alguns metros e seguimos pela direita nos agarrando em galhos com o Recanto Boa Vista bem visível a centenas de metros abaixo até encalharmos de vez.

Cachoeiras na parede oposta – Leandro (Bolívia) Pereira da Silva

Apesar da enrascada, dúvidas a parte, o bom humor continuava imperando e aproveitamos o momento de indecisão para hidratar, descansar e pensar. Não tarda e a primeira dupla, Alisson e Xandão, partem para a missão exploratória. Outras os seguem pouco para cima ou para baixo e não demoram a voltar, mas uma não retorna. O silencio torna o clima tenso, mas enfim vem o tão esperado chamado. Agora é o momento em que a porca torce o rabo, o lugar em que o filho chora e mamãe não acode. Um de cada vez caminha em direção ao cadafalso agarrado num fiapo de capim, numa única taquara, com tudo desmoronando ladeira abaixo em cotovelos fechados que encobrem os desafios seguintes. Longas pausas em equilíbrio precário, mas confiantes nos ponteiros. A frente seguiam alguns dos mais destemidos e melhores escaladores do Paraná.

Espera satisfeito pelos gritos de liberação para escalar. Pela primeira vez na vida não estava na ponta, com o fiofó trancado até para sinal de wi-fi. Podem ter me poupado em obediência ao Estatuto do Idoso, em deferência ao aniversariante ou por serem fominhas mesmo, mas o que importa é que gostei da moleza.

As fáceis – Leandro (Bolívia) Pereira da Silva

Vencido o cabeção dava para respirar aliviado observando calmamente os impressionantes precipícios que nos separavam do Morro Sete. Estávamos já muito acima das cachoeiras que despencavam do outro lado da grota, formando banheiras insuspeitas na beirada do vazio. Adiante uma quiçaça dos infernos, densa, dura e alta como uma pessoa, povoada por algumas aranhas caranguejeiras que passeavam calmamente. Não muito distante se erguia um alto cocuruto e por detrás o imponente Morro das Caranguejeiras que encobria a visão para o Morro Mãe Catira. No cume do Morro Sete se destacavam duas delgadas silhuetas movendo-se sobre as pedras.

Sabíamos que o Paulo Mengue começara a subir pela trilha tradicional no meio da tarde para nos recepcionar no Morro Sete. Esta visão deu mais gás e motivação para avançar, deixando um rastro inconfundível na quiçaça. Por fim alcançamos a cota 1230 de altitude no alto da crista, e como previ, a seguir poderíamos com segurança virar 90 graus a esquerda para depois dobrar o cotovelo e adentrar na encosta Sul do Morro das Caranguejeiras.

Começa a complicar – Iury Rech Franceschi

Descemos a encosta adentrando o vale escuro e úmido com árvores tortas e espaçadas, cipós e muito barro até cruzar um pequeno córrego, depois outro que aproveitamos para aliviar as mochilas reabastecendo a pança. Foi um bem-vindo descanso a sombra onde rolava as mais variadas observações e gozações inevitáveis. O cansaço já mostrava seus sinais e a Luciana tomou a frente da coluna, de facão em punho, aparando os esporões das imensas bromélias. Cruzamos por outro rio, um pouco maior e as bromélias preenchiam todos os espaços por dentro do bosque denso e escuro. Suavemente em curva avançávamos para o riacho que separa o Mãe Catira do Sete, depois por suas margens subimos recebendo beliscões dos esporões das bromélias até encontrar a trilha que desce os morros.

Uma estranha pressa tomou conta de todos que rapidamente me deixaram para trás, comendo barro. Acompanhado apenas do meu fiel guarda costas, Bolívia, fui lentamente me arrastando até os pedregulhos onde 15 macacos nos esperavam em festa, as 17h20m. respeitando o isolamento social fui recebido aos berros, beijos e longos abraços apertados. Só faltou o bolo com velinhas. Rico é quem tem os amigos certos.

O cabeção – Iury Rech Franceschi

O cume estava fechado por nuvens úmidas e ventos frios que obrigaram os anorakes a pular das mochilas e ninguém aparentava muita pressa em fugir dali, mas a escuridão se aproximava e a casa em ruínas dos Garbers estava ainda muito distante. No primeiro quarto da empinada subida para o Mãe Catira, o grupo mais forte começou a se adiantar para resgatar os automóveis que ficaram no recanto da Curva da Ferradura, aos pés da serra. No cume do Mãe Catira ligamos as lanternas iniciando a lenta e tortuosa descida por imensas poças de lama envoltas pela serração pesada. O Joãozinho e seu grupo nos esperavam na bifurcação do Polegar e pouco abaixo entramos na proteção das árvores onde nos livramos da neblina gelada.

Dentro do mato todo cuidado é pouco na descida por degraus de raízes iluminados apenas pelos fachos de luz das lanternas. Torcer um tornozelo por aqui não é brincadeira e quem sabe dar valor aos joelhos se cuida. Horas intermináveis só quebradas pelo encontro com outro filhote de jararaca além de uma dolorida picada na mão do Renato. Como continuava respirando, talvez até vivo, uma hora depois concluímos tratar-se apenas de uma esporada de bromélia. Paramos para descansar na cachoeira com a sensação de estar quase chegando, mas este quase novamente nos enganou e só respiramos aliviados as 22h00m quando as lanternas iluminaram terreno plano coberto por grama recém cortada. Pouco a frente víamos as luzes dos automóveis e das lanternas nos esperando. A travessia finalmente estava concluída pelo esforço conjunto do Nas Nuvens Montanhismo e do Clube União Marumbinismo e Escalada para renovar o montanhismo tradicional já em ritmo de pós-pandemia.

Por cima Da crista – Leandro (Bolívia) Pereira da Silva

Morro Sete – Leandro (Bolívia) Pereira da Silva

O diferencial desta travessia é sua visibilidade da Estrada da Graciosa. Pode-se levar a mãe, a sogra ou a avó para degustar um barreado em Morretes e parar meio quilometro a frente do recanto Mãe Catira mostrando parte do itinerário.

– Mãe, subi por aquela crista ali até o alto do morro.

-Tá louco menino? Você não tem mais idade para fazer estas coisas!

Itinerário pela crista

 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

8 Comentários

  1. Arlindo Renato Toso ar em

    Que barra pesada vcs enfrentaram, das 7:00h às 22:00h na mata!!! Oh loco… Não temos mais idade para isso. Parabéns pelo sucesso da empreitada e pelos 64 anos de Vida! Abraços.

  2. When I get older losing my hair
    Many years from now
    Will you still be sending me a Valentine
    Birthday greetings bottle of wine
    If I’d been out till quarter to three
    Would you lock the door
    Will you still need me, will you still feed me
    When I’m sixty-four
    You’ll be older too
    And if you say the word
    I could stay with you
    I could be handy, mending a fuse
    When your lights have gone
    You can knit a sweater by the fireside
    Sunday mornings go for a ride
    Doing the garden, digging the weeds
    Who could ask for more
    Will you still need me, will you still feed me
    When I’m sixty-four
    Every summer we can rent a cottage
    In the Isle of Wight, if it’s not too dear
    We shall scrimp and save…

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