Saint-Hilaire, Spix, Martius

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Gravura de Saint-Hilaire no Rio Doce, MG

Estou atravessando um platô áspero e vazio logo acima de Diamantina, onde fica o PN das Sempre Vivas. Acompanho Fê Rocha, um geógrafo que o conhece bem. Ele me diz que, ao conversar com gente da região, ouviu um termo que lhe acendeu a memória.

Ninguém menos do que Saint-Hilaire havia se referido a ele. Resolvi um velho enigma, soube então por onde ele passou, ele comenta. Pois Fê segue há anos os passos da expedição de Saint-Hilaire pela região.

É uma tarde quente e luminosa quando passamos por Curimataí, já além do Parque. Nesse vilarejo, Fê encontra um senhor perto de um bar. Sabe que ele adora Saint-Hilaire, conhece toda sua obra, afirma. Esse ávido leitor é uma pessoa comum, seu aspecto simples sugere as limitações do lugar onde mora.

O Naturalista Auguste Saint-Hilaire (1779-1853)

O Naturalista Auguste Saint-Hilaire (1779-1853).

Talvez você nem saiba quem foi essa figura tão admirada no interior mineiro. Quando a Coroa portuguesa abriu no século XIX o Brasil às nações amigas, houve uma invasão de naturalistas europeus, fascinados por afinal conhecer nossa natureza. O botânico Auguste Saint-Hilaire foi o mais eloquente destes viajantes. Curioso, incansável e talentoso, ninguém melhor descreveu no seu tempo nossos costumes e nossas paisagens.

Financiado pela França, Saint-Hilaire percorreu o sul, sudeste e centro-oeste brasileiros, ao longo de seis anos e oito mil km. O que lhe rendeu 30 mil amostras de nossa flora e fauna, bem como uma dezena de livros de viagem – desde Santa Catarina e São Paulo até Minas e Goiás – além duas dezenas de obras em francês, principalmente sobre plantas. Sua obra ainda é lida, sua botânica estudada e seus relatos pesquisados.

Gravura de Saint-Hilaire no Rio Doce, MG

Gravura de Saint-Hilaire no Rio Doce, MG.

Ao assistir às queimadas, escreveu que tudo isso o sertanejo faz para colher alguns alqueires de milho, arriscando-se pela falta de precaução a perder uma floresta, como se sem floresta fosse possível haver cultura (…) a gente simples destrói a floresta como desperdiçavam o ouro das minas. Para ele, nossas florestas eram retiros tão antigos como o mundo (…) vegetais imensos que pertencem a famílias distantes, misturam seus galhos e confundem sua folhagem.

Talvez Saint-Hilaire funcione ainda hoje como um historiador do Brasil de então – foi sob a ótica dele que muitos brasileiros vieram a conhecer o seu país.

Livro sobre Saint-Hilaire.

Acredito que eu sofra de uma inevitável relação com as montanhas. E, claro, tenho minhas prediletas. Habito a região da Mantiqueira e nenhum maciço me parece tão magnífico como o do Marins. Já no distante Espinhaço, sempre olhei com assombro a estupenda Serra do Itambé. Pois um dia, encontrei-o representado numa gravura da viagem de Spix e Martius ao Brasil.

Assim como Saint-Hilaire aportou aqui junto com um grupo de cientistas e em paralelo à missão artística de Taunay e Debret, Spix e Martius acompanharam a comitiva da duquesa Leopoldina, futura esposa de Dom Pedro I. Foram contemporâneos: o primeiro permaneceu aqui no período 1816-22; os segundos, de 1817 a 1820.

Os Naturalistas von Martius (1794-1868) e Spix (1781-1826)

Os Naturalistas von Martius (1794-1868) e Spix (1781-1826).

Martius era botânico e Spix, zoólogo. Sua expedição, embora mais breve, percorreu dez mil km, desde São Paulo e Minas até Bahia e Amazonas. Assim como Saint-Hilaire, não resistiram aos rigores dos trópicos e anteciparam seu retorno para se restabelecerem na Europa. Eles documentaram a nossa flora, num gigantesco trabalho só concluído postumamente: 22 mil espécies, descritas em 40 volumes, cuja edição tomou 2/3 de século.

A obra de Spix e Martius foi mais abrangente e sistemática do que a de Saint-Hilaire. No livro de sua viagem chamado de Reise in Brasilien, nosso país foi dividido em cinco regiões fitogeográficas – a flora amazônica ou Náiades, a nordestina ou Hamadríades, a do centro-oeste ou Oreades, a da costa atlântica ou Dríades e a flora subtropical ou Napeias. Foi a primeira classificação desta natureza, e com nomes tão sonoros.

Gravura de von Martius de Ubatuba, SP

Gravura de von Martius de Ubatuba, SP.

O Brasil de então era considerado um tesouro zoo-botânico, extraordinariamente selvagem, belo e diverso. Não surpreende que Martius comente que o naturalista não sabe o que mais admirar, se as formas, os coloridos ou as vozes dos animais. Mas, seguindo o exemplo de Humboldt, os pesquisadores adotavam uma atitude objetiva, praticando um minucioso relato científico e não mais uma romântica descrição impressionista.

Eram naturalistas excepcionalmente bem treinados: versados em zoologia, botânica e geologia, excelentes desenhistas, técnicos experientes, analistas cuidadosos da geografia e da economia, do folclore e da música, das línguas e das etnias, da história e da cultura.  Suas crônicas, escritas com uma atitude de observação e admiração, como diz Tiago Bonato transformaram a natureza em ciência. E, daqui para a frente, cada vez mais em conhecimento universal.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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