Expedição Campo de Hielo Patagônico Sur: Uma aventura BRUTAL – Dia 3

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Dia 3: de Circo de Los Altares até algum lugar no meio do gelo

Distância percorrida: 15km

Tempo em movimento: 8h36

Acumulado de subidas: 132m

Como já imaginava não dormi bem novamente.

Fomos dormir quase 1h da manhã, mortos, Rafael capotou e logo começou a roncar, e dessa vez disputando com o vizinho da barraca ao lado.

Além disso, os vizinhos mais próximos, argentinos, que certamente foram dormir cedo, acordaram cedo. Não só acordaram cedo, como acordaram falando da gente. O papo era, viram que chegaram dois brasileiros de madrugada fazendo barulho?

Ficamos ensaiando nossa saída da barraca, e logo que saímos nos apresentamos e pedimos desculpas. Claro que ficou tudo bem.

Havia dois grupos, um argentino guiando outro argentino e um grupo de Portugueses, com 2 guias e 4 pessoas (algo assim). Foi bom ver e falar com outras pessoas (mesmo sendo apenas o 3º dia longe da civilização).

O dia estava lindo, céu azul e o lugar, Circo de Los Altares, que não pude ver a noite, maravilhoso.

O chão da barraca estava bem molhado, afinal dormimos sobre o gelo. Após nosso café da manhã (aveia com granola, sanduiche e café) tratei de tirar tudo que havia ficado úmido e espalhar nas pedras aproveitando o sol.

Conversamos um pouco com os portugueses (os argentinos logo saíram), entendendo de onde vieram, para onde iriam, ao mesmo tempo que organizávamos nossas coisas.

Já passava das 11h da manhã. Finalizamos a arrumação das mochilas, peguei água (de uma poça de gelo), tiramos algumas fotos, colocamos os crampons e saímos, uns 15min depois dos portugueses.

 

O Rafa ficou feliz de seguirmos os portugueses, acaba facilitando bastante a navegação. Não precisávamos pensar tanto onde iríamos pular as gretas. Caminhamos um pouco e logo nos encordamos, ficou claro que seguiríamos com muitas gretas.

Rafa fez uma brincadeirinha de passarmos os portugueses, e deu uma atiçada na minha competitividade (não sei se foi estratégia dele para andarmos rápido). Passamos os portugueses, eles nos passaram, passamos novamente. Achei que nosso dia seria assim, passaríamos o dia meio juntos.

Ficamos com o visual do Circo de Los Altares por um bom tempo, como já expliquei, na imensidão do gelo você anda horas e parece que não saiu do lugar (rss).

Seguimos focados em chegar numa “ilhazinha” de pedra que víamos longe dali. Apostamos quanto tempo demoraríamos para chegar, Rafa sugeriu 1h30, eu sugeri 3h.

 

Em algum momento as gretas começaram a ficar maiores e decidimos nos aproximarmos um pouco mais da “terra firme”. Vimos que os portugueses também adotaram essa estratégia.

Ganhei, gastamos mais ou menos 3h do momento da aposta até a ilha de pedras. Nessa estratégia (de chegar a ilhazinha de pedras) nos distanciamos dos portugueses.

 

 

Já passava das 16h. Sentamo-nos em uma pedra para nosso almoço (aquele sanduiche cada vez mais duro e esfarelado, mas sempre delicio). Mesmo sendo nosso momento de descanso, como de costume não tiramos nem corda nem crampons.

Enquanto comíamos nosso sanduiche vimos os portugueses passarem pelo lado interno da ilha. Rafa comentou algo assim: estranho, estão passando por dentro, acho que não é uma boa ideia.

Aos que ficaram curiosos, para fazer xixi nessa etapa do gelo não tem muito o que fazer. Aviso ao Rafa da necessidade, ele para, falo o lado para onde ele deve olhar, me afasto um pouco e é isso. Quando estamos encordados é ainda pior, tenho que soltar a cadeirinha, ou seja, certamente não estava me hidratando o necessário na tentativa de evitar fazer tanto xixi.

Falando em xixi, após comer o sanduiche, anunciei um xixi e no 1 minuto que demorei o Rafa estava roncando na pedra. Inveja dessa facilidade para dormir, ai ai.

O dia estava agradável, o prognóstico era positivo, se tudo corresse bem logo sairíamos do gelo e dormiríamos essa noite em terra firme.

Pedi uma foto antes de retomarmos a caminhada.Seguindo a estratégia do Rafael, começamos a caminhar pelo lado externo da ilha, mas afastado da “terra firma”, estratégia diferente da adotada pelos portugueses.

Progredíamos de forma lenta e com muito esforço, havia gretas enormes. Nessas situações ficávamos procurando uma forma de transpor a greta, o que não raro nos fazia caminhar bastante na horizontal e fazendo zig-zag para encontrar a opção “segura”. Mesmo caminhando bastante em busca do tal parte segura, em vários momentos tivemos que saltar ou passar por uma espécie de pontes que se formavam entre os dois lados da greta. Acontece que essas tais pontes tinham buracos profundos dos dois lados, qualquer deslize ali poderia ser algo desastroso.

Rafa me explicou onde precisávamos chegar, mas o cenário não melhorava. Me sentia cada vez mais exposta ao risco e com muito medo. Primeiro tentamos progredir em diagonal, em direção a “terra firme” (direção, pois estávamos bem afastados). Em determinado momento, rodeados de gretas gigantescas decidimos recuar e tentar nos afastar ainda mais da “terra firme” (na foto parece perto, mas estávamos bem longe), por mais que tivéssemos que percorrer um caminho mais longo parecia a opção mais segura.

Basicamente não tenho registros dessa tarde, o stress era tanto que precisava me manter focada no caminho, mas nesse momento do recuo, onde pensei que estava me salvando, tirei algumas fotos (17h30).

O cenário não melhorava. Já haviam se passado horas e seguíamos cercados de gretas imensas para transpor. Tentei expor minhas preocupações ao Rafa, que insistia na progressão. Em alguns momentos saltávamos de uma parte mais alta para uma parte mais baixa, meu medo era que avançássemos tanto que não conseguíssemos mais retornar e ficássemos literalmente presos entre gretas.

Eu estava muito tensa, com muito medo, e teve um momento emblemático em que o Rafa insistiu para que eu passasse numa das pontezinhas, nesse caso um pouco mais longa das que vinha passando, não me sentia segura. Olhei, estudei, fiz menção de ir, mas não conseguia .. sentei e chorei. Foi algo rápido, mas incontrolável, o stress emocional ao qual eu estava sendo submetida por toda aquela situação estava sendo demais para mim. Levantei e passei a tal pontezinha, mas acredito que o Rafa entendeu como tudo aquilo estava sendo difícil para mim.

Seguimos um pouco mais e paramos para conversar. Fizemos umas contas rápidas e avaliamos o risco real de ficarmos ilhados ali durante a noite. Decidimos voltar ao ponto onde almoçamos, que era o local mais “seguro” “por perto”.

A volta, como eu previa, não foi nada fácil. Muita concentração, progressão lenta, gretas e mais gretas. Mas eu estava feliz em sair dali.

É fato que as coisas sempre podem piorar, nesse momento, meu crampon quebrou. Tentamos consertar sem sucesso. Segui com um pé com crampon (que me dava a segurança no gelo) e outro apenas com a bota. Tentei não me preocupar tanto com o dia seguinte, Rafa afirmou que com calma conseguiria um conserto.

Chegamos a ilhazinha de gelo com pedras por volta das 20h30, ou seja, ficamos 4h tentando naquele processo de tentar progredir nas gretas e depois voltar. A tal ilhazinha, que nada mais é que um amontoado de pedras sobre a geleira (você vai olhar a foto, parece terra, mas garanto que é gelo), está longe de ser um local ideal para acampar, mesmo assim conseguimos um bloco de gelo relativamente plano e sem risco de deslizamento de pedras (o que percebemos que acontece com certa frequência por ali).

O sol começou a se pôr e o cenário era lindo. Estava feliz e me sentindo segura. Montamos nossa barraca e comecei a organizar minhas coisas. Tomei meu banho de gato e troquei de roupa.

Sai da barraca para dar privacidade ao Rafa e comecei a inflar meu isolante no lado de fora, foi quando algo deu errado (lembram que falei a tarde que as coisas sempre podem piorar?). Inflei e ele esvaziou, pensei que houvesse colocado a válvula errado, tentei mais duas vezes (já nervosa) até entender que o isolante havia furado. Uso esse isolante a anos, ele é 4 estações, tem garantia vitalícia, sempre me passou muita confiança, mas nesse momento me deixou na mão.

Pensei em como iria me proteger do frio aquela noite. Coloquei tudo que tinha de goretex no chão (casaco, sacos estanques, Rafa me emprestou algumas roupas) e estendi meu saco de dormir, que é muito bom, sobre.

Conversamos sobre nossos próximos dias. Dado que não progredimos o necessário naquele dia, teríamos uma noite extra e decidimos racionar nossa comida. Fizemos um strogonoff liofilizado (com arroz e purê de batatas) e guardamos um miojo.

Após a janta, escovei meus dentes e entrei para dormir. O saco estava quentinho por cima, mas o chão congelado me congelava por baixo. Comecei a tremer e ranger os dentes involuntariamente. Aguardei um pouco para ver se a situação iria melhorar, se eu iria conseguir me aquecer com o saco, mas estava claro que aquela estratégia não daria certo.

Acordei o Rafa pedindo ajuda, não iria conseguir dormir assim, tampouco passar a noite batendo queixo. A solução foi esvaziar as duas mochilas e colocar embaixo do meu corpo. Também lembrei que tinha uma manta térmica, enrolei o saco de dormir nela. Feito isso, mesmo desconfortável, consegui dormir.

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Sobre o autor

Aline Souza, mais conhecida como Aline Elétrica por ser engenheira elétrica é uma multi atleta de Florianópolis - SC. Ela pratica corridas de aventura, trekking, ciclo turismo e escalada em rocha. Siga ela no Instagram @alineeletrica

2 Comentários

  1. Esperando ansioso pelo dia 4… 5,6… Quando escreverás?
    Gostei muito de seu relato e estilo; bem pessoal. Saudades de uma trilha mais longa. Planejo ir para Agulhas Negras neste Inverno.

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