Lavras: da Bocaina a Carrancas

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Lavras não é conhecida, mas fica no início de uma região serrana que se estende por 100 km no rumo sul, onde você poderá praticar longas travessias de crista e encontrar belos cenários e montanhas interessantes. Já Carrancas, no meio desta região, é conhecida por suas muitas cachoeiras e seu intrincado sistema de serras.

O território de que falo aqui termina no modesto município de Minduri. Porém a rigor prossegue por outros 100 km de campos e serras de belo visual, sempre no rumo sul. Ele finalmente alcança os terrenos entre Baependi e Aiuruoca – chegando à sua mais notável formação na Serra do Papagaio.

Lavras: da Bocaina a Carrancas

Embora esteja longe de ser um destino turístico, por muito tempo quis conhecer a região de Lavras no sul de Minas. Tinha duas motivações.

Uma era o perfil arrojado da serra que avistava à minha direita, enquanto percorria a Rodovia Fernão Dias no rumo norte. E outra, a transição que ocorre nesta região entre a Mantiqueira e o Espinhaço, duas cadeias rochosas que tantas vezes visitei.

Então, aproveitei uma viagem que fazia a Tiradentes e pude enfim permanecer em Lavras para saciar minha curiosidade. Meses depois, passei por Carrancas ao sul, que é o mais importante destino turístico desta região.

Você bem pode imaginar que o nome de Lavras remete à busca do ouro durante o Ciclo da Mineração e à abertura de caminhos para o interior de Minas. Mas disto não resultou uma cidade colonial, pois na realidade Lavras só progrediu muito mais tarde, no fim do século XIX. Carrancas teve a mesma origem, mas não passou por nenhum surto de progresso. Aliás, toda essa região tem uma história um tanto modesta.

Mapa da região ao sul de Lavras, MG.

Lavras foi um município grande, incluindo muitos distritos que são agora municípios independentes. É uma cidade relativamente ativa e próspera, com 100 mil moradores. Lavras é curiosa, com ruas que sobem e descem intermináveis colinas, tornando quase impossível que você se oriente.

As vilas ao redor permaneceram bem pequenas, não passando de cinco mil pessoas – algumas são pitorescas, pela sua natureza e seu casario, como Luminárias e Carrancas. Junto com as demais, são típicas vilas interioranas, de situação estável e vida pacata.

Lavras está assentada sobre terrenos muito antigos, com dois distintos pacotes rochosos. Predominam as formações em gnaisses e granitos, especialmente ao sul. Mas são também encontradas rochas de quartzo e xisto, mais frequentes a oeste. E o arenito às vezes aparece, provavelmente no centro.

Pois a cadeia granítica da Mantiqueira está exatamente a sudeste e a cordilheira quartzítica do Espinhaço a noroeste. Assim, esta é uma passagem entre estes dois grandes sistemas serranos. Para quem curte montanhas, esse é um ambiente muito interessante.

Não é difícil você distingui-los: o granito apresenta desenhos mais uniformes, contínuos e ondulados, por oposição aos perfis irregulares, angulosos e fraturados do quartzito. O arenito se manifesta em chapadas longas e planas.

A vegetação de campo na Chapada das Perdizes entre Carrancas e MInduri, MG (Fonte – Divulgação).

Só mesmo nos locais de solos pobres você poderá ainda encontrar traços da vegetação nativa. Pois a ação do homem a substituiu nos terrenos mais baixos e férteis pelas pastagens para gado de corte e pelas lavouras de café e de grãos. Há uma alternância entre a mata atlântica e o cerrado – sendo este a cobertura predominante, principalmente nos campos rupestres.

A fauna tornou-se escassa, em especial a de maior porte. Como é comum no Sudeste, as águas estão minguando, apesar do aproveitamento hidrelétrico que é feito da bacia do Rio Grande, através de uma importante represa.

O principal curso local é o Capivari, um rio relativamente pequeno, que nasce nas serras de Minduri e tem sua foz no planalto de Lavras, quando converge para o Rio Grande. É nesse rio onde também o Aiuruoca, cuja nascente fica nos altos do Planalto de Itatiaia, encontra a sua foz.

Voltando ao início do meu relato, descobri que na realidade a serra que me intrigava era dupla. A mais interessante delas ficava a oeste: era a Serra do Faria, com suas escarpas agitadas em quartzito. Já a Serra da Bocaina era frontal à cidade, com seu corpo granítico e sinuoso repleto de feias antenas.

O acidentado perfil em quartzito da Serra do Faria, Lavras, MG (Fonte – Divulgação).

Têm tamanhos e altitudes semelhantes, com 8 km cada e cerca de 1.200 metros. Suas ascensões, que fiz pelas faces norte voltadas para Lavras, foram relativamente simples. Subi cerca de 250 metros por trilhas bem-marcadas. A do Faria é bem mais rústica e pedregosa, sendo a encosta da Bocaina mais florestada.

Porém as visões dos altos foram surpreendentes. A região de Lavras é atravessada por uma extensão serrana que se distribui no sentido leste-oeste. Correndo a leste, a Bocaina prossegue principalmente através das extensas Serras do Campestre e da Estância, com cerca de 12 e 10 km respectivamente.

Serra da Bocaina, formação em granito frontal a Lavras, MG (Fonte – Divulgação).

Mas este conjunto é atravessado no rumo sul pela Serra do Galinheiro, que o conecta com a maciça formação da Serra de Carrancas. Uma vez mais, esta corre para leste por 25 km. Assim, todas estas cristas formam um enorme Z, que começa na Bocaina, é cortado pelo Galinheiro e termina em Carrancas. São altitudes relativamente modestas, os cumes em geral variando entre 1.150 e 1.350 metros.

A Serra do Galinheiro, como muitas atrações entre Lavras e Carrancas, é facilmente acessível. Faz parte da Travessia Z (Fonte – Divulgação).

Então, você pode ensaiar uma travessia de crista por algo como 70 km em talvez quatro dias: é a Trilha do Z. Ela é ainda pouco praticada, apesar do seu belo cenário através de vales, cachoeiras, encostas e cristas. O incansável Jorge Soto recentemente a percorreu e descreveu – foi por ele que ouvi sobre ela pela primeira vez.

Sete Pedras, formações em arenito ao longo da Sera do Galinheiro (Fonte – Jorge Soto).

Mas o visual de Carrancas, onde este grande Z termina, é inesperado. A parede longa e vertical da serra à sua entrada contrasta com as rampas apenas moderadamente íngremes das demais formações.

A vila é belamente contornada por um sistema serrano que termina a sul na Serra do Moleque (onde há pinturas rupestres) e que se prolonga pelo arenito da Chapada das Perdizes. A oeste, você encontrará as formações anexas das amenas Serras das Broas e das Bicas, com seu belo vale.

Serra e vale de Carrancas.

Este é um conjunto muito interessante, pois contém na sua parte baixa as Cachoeiras da Zilda, principal atração de Carrancas. Existem dezenas de cachoeiras, quase todas em locais privados. Elas são agrupadas em complexos, como Vargem Grande, Toca, Ponte e Fumaça. Já se disse que a água brota em Carrancas como as flores no cerrado.

Cachoeira da Zilda, que compõe um conjunto de quedas e poços em Carrancas, MG (Fonte – Divulgação).

Você pode então imaginar que muita água verte de tantas serras nos contornos de Carrancas. A começar mesmo pela longa extensão das Cachoeiras da Zilda. Muito tempo atrás, quando a Zilda nem era conhecida, resolvemos acampar na região. E tivemos o luxo de encontrar uma casinha vazia em bom estado, onde nos alojamos com todo conforto, seu dono nunca apareceu.

A maior cachoeira acontece mais além, nos 40 metros da Cachoeira Grande, de água um tanto escassa. As quedas não são altas, embora contem com poços muito agradáveis: as Cachoeiras da Fumaça, Esmeralda e do Grão Mogol, as Corredeiras do Índio e do Turco e mais meia centena de outros atrativos.

Cachoeira da Fumaça, a única em espaço público em Carrancas, MG (Fonte – Divulgação).

E, na parte alta, uma considerável extensão de mais de 15 km com os pontos que me pareceram os mais elevados da região. São eles os Picos do Abanador e do Galinheiro, ambos com 1.590 metros e muito bonitos, pelas longas vistas e pelas rochas expressivas. E, lá ao sul, a pequenina vila de Minduri.

Então, ultrapassada a Trilha do Z, você pode percorrer estes sistemas serranos, rumo norte ou sul. Desde Minduri rumo norte até o Moleque ou a partir de Carrancas, ao longo das Bicas e das Perdizes ao sul. São roteiros de dois dias, de até 30 km. Existem estradas que podem facilitar suas travessias se você não quiser fazê-las exclusivamente a pé.

As vistas destes longos chapadões serranos são muito amplas, decoradas por mosaicos de verde. A vegetação, entretanto, mostra-se pobre, correspondente ora a um campo nativo ou a um cerrado um tanto árido.

Pois todo este relevo vai se elevando a sul. Bem além, você chegará na Serra do Papagaio, a meu ver uma das mais estupendas montanhas em toda a Mantiqueira.

O Papagaio visto do Vale do Matutu em Aiuruoca, MG. Por ele passam as travessias entre Baependi e Aiuruoca (Fonte – Divulgação).

Lá existe um Parque Estadual, que abriga importantes picos próximos ou acima de 2.000 metros de altitude. Mas esta já é outra história, que descrevi em relatos anteriores, e que não faz agora parte deste artigo.

Então, você dispõe de uma extensão no sul de Minas de mais de 200 km, digamos desde Lavras e Carrancas ao norte até Aiuruoca e Baependi ao sul, para desfrutar de longas jornadas na natureza, com pouca interferência de gente e clima bastante ameno, muitos panoramas cênicos, presença de águas limpas e campos abertos decorados pelos vultos das montanhas distantes.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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