Comprei a minha poucas semanas antes da viagem, coisa que não se faz, mas…. A velha de guerra já não estava mais tão impermeável e tive que arriscar fazer a expedição de botas novas e pouco amaciadas. Tive sorte, as botas foram e estão ótimas.
Chegando ao primeiro acampamento fizemos a divisão, sorteio, enfim, acomodamos todas as duplas em suas barracas. Chegamos e tudo já estava pronto. Registrados todos os integrantes do grupo num tipo de casa de Guarda Parques do acampamento, com seus “reais” endereços e números de passaportes muito bem anotados no livro de registros por nosso guia Maximo, reunimo-nos e comemos nossa janta, e dormimos para no próximo dia seguir para mais alto.
Todos os dias éramos acordados por um dos ajudantes da cozinha, que na porta de nossas barracas nos entregava uma caneca de chá quente e deixava uma bacia com água quente para cada um usar conforme a sua maior necessidade. Organizadas as mochilas para o dia seguimos tranquilos para o segundo acampamento a 3850 metros, o Shira Cave.
Durante o caminho a paisagem foi mudando, aos poucos as grandes árvores foram substituídas por pequenos arbustos, e isso foi se repetindo até chegarmos aos campos mais altos onde um terreno de rochas e pó substituía completamente a paisagem, e cada vez mais perto estava o nosso destino! Todos os acampamentos têm banheiros, fossas, ficando assim o caminho limpo.
A rota Machame é mais longa que a outra também usada por grande parte das pessoas que sobe o Kilimanjaro. Na rota escolhida para nossa expedição, vamos vendo o Kilimanjaro à frente e depois do segundo acampamento, começamos a contornar a montanha pela direita, e temos a oportunidade de ver a montanha em diversos ângulos até chegar ao seu cume.
Em nosso segundo dia na montanha, chegando ao acampamento, fizemos uma caminhada até um local rochoso, onde encontra-se uma caverna. Lá tivemos uma conversa com o grande Lázaro, mais conhecido como Teacher, quem nos explicou sobre a caverna, que antes era usada como abrigo. No teto podíamos ver as marcas do uso, devido ao fogo usado para aquecer por quem ali passava. Hoje as barracas são mais usadas, tamanho é o número de pessoas que passam por ali.
Mais uma noite e partimos para o nosso terceiro dia na montanha e terceiro acampamento. No caminho passaríamos pelo ponto mais alto da jornada até então, o Lava Tower. Uma incrível formação rochosa no meio do caminho, de onde avistamos o Kilimanjaro e a rota até o próximo acampamento. Paramos nesse local para um descanso e almoço, e não pude deixar de experimentar as rochas com suas agarras.
As rochas ali, convidando para serem escaladas. Observada por um corvo, subi um tanto, momento registrado pelo Maximo. Lembrando que ainda havia muito a ser percorrido, e não era o momento de arriscar uma queda, acompanhada pelo voo do corvo, desci para me unir ao grupo. Depois todos fomos até o cume da formação rochosa. Momento estratégico para nossa aclimatação. Uma das companheiras, ao chegar nesse ponto, sentiu-se um pouco mal, mas não foi motivo para ficar embaixo.
Essa pequena escalaminhada, primeiro desafio do grupo, foi encarado por todos, até os que diziam nunca ter escalado rocha, e bem sucedidos pudemos apreciar a paisagem sob um céu azul que nos acompanhou em quase todos os dias. Seguimos depois da nossa exposição a uma maior altitude, até então, ao quarto acampamento, o Barranco Camp, de 3950 metros.
Até lá fomos seguindo um vale, com árvores que eu nunca tinha visto. Típicas da região do Kilimanjaro, um misto de cacto com folhas nos altos, formavam uma paisagem de filmes de ficção científica. Mais alto, mais frio e seco, menos água, as árvores se adaptaram e adquiriram a peculiar forma. Nesse acampamento, ultrapassamos a barreira das nuvens, e daí para frente, todos os dias observávamos o pôr do sol, e apenas o Kilimanjaro, e um outro monte a frente (esqueci o seu nome!), onde o sol se punha.
Próximo destino acampamento Karanga a 4100 metros. Logo após ao café, uma caminhada descendo por um pequeno vale onde corria um rio, e de cara uma parede rochosa, onde distante víamos o zigue-zague para subi-la, e pequenos pontos distantes, pontos estes que eram os carregadores e outros grupos que saíram antes de nós. Quando vimos a parede, entendemos o porquê do nome: “breakfast wall”. Nem bem o café da manhã acentou na barriga, de cara um paredão de 200 metros na nossa frente. Demos risada. Mas nem tudo é como parece. Aprendi nesses anos de trekkings pelo Brasil e mundo e em algumas escaladas em montanhas de altitude, que não é muito bom ficar olhando lá na frente. O melhor a fazer é curtir a paisagem por onde estamos passando, passo a passo, que assim, quando menos esperamos chegamos onde esperávamos chegar. Ficar olhando lá na frente, faz com que não aproveitemos o que estamos experimentando em cada passo, e o caminho fica mais cansativo. No fim o zigue-zague tornava a parede escalável!
O grupo se dividiu conforme o ritmo das passadas. Conhecemos nessa parte do caminho um casal de portugueses, que estavam ali passando a lua de mel. Um bom lugar para passar a lua de mel para os amantes das montanhas, diga-se de passagem. E que sincronia, o casal era de médicos. Subimos conversando, trocando idéias sobre medicina de montanha, sobre emergências em Pronto Socorro. Nos separamos. Quando estávamos quase chegando ao topo da parede, Maximo parou para ajudar um carregador de outra expedição que estava muito cansado, e sentou-se nas rochas. O grupo seguiu, eu parei para ver se precisavam de alguma coisa.
Max abriu seu super kit de primeiros socorros e lançou mão de seu estetoscópio, examinou o jovem carregador e passou o equipamento para mim a fim de que auscultasse também. Apesar de ser ortopedista, lembro ainda das aulas de propedêutica médica nas enfermarias de clínica da Santa Casa de São Paulo. A aula dos estertores… E o que estava detectando ali, não parecia edema agudo. Só estertores, subcrepitantes ( ahaaaaa essa os amigos clínicos vão gostar ), na base do pulmão direito! E o jovem meio febril… Max olhou para mim e soltou um “e aí”, eu disse o que observei, e para mim aquilo parecia infecção. Com os conhecimentos do nosso grande guia, em medicina de altitude, e algum conhecimento de clínica médico da cliente ortopedista, orientamos o carregador e o responsável por ele. Precisava descer e logo, pois com uma infecção é mais fácil uma descompensação para edema agudo pulmonar da altitude.
Deixamos uma medicação para ajudar, mas o tratamento era descer o mais rápido possível. Seguimos então nosso caminho rumo ao campo Karanga, discutindo casos médicos, o do jovem e outros mais. Contei sobre as vezes que já precisei ajudar em viagens para o Maximo e ele falou das experiências dele. Ambos, pelo que parecia, satisfeitos com o que pudemos fazer para o jovem carregador. Acho que nos identificamos, cada um em seu trabalho (a médica ortopedista montanhista e o alpinista guia médico de montanha de altitude), quanto ao quesito “agir caso algum imprevisto ou alguém necessite”. Meu dia-a-dia é no Pronto Socorro, casos estranhos, urgentes costumam ser os meus preferidos!
Assim chegamos ao quarto campo, localizado aos 4100 metros para jantar, descansar, apreciar o pôr do sol com as nuvens cobrindo o nível abaixo de nós como um tapete e prepararmo-nos para o dia de seguir ao Campo Alto, Barafu, aos 4650 metros, onde chegaríamos cedo, descansaríamos e se as condições de tempo permitissem, na madrugada partiríamos rumo a parte do nosso objetivo na expedição. Cume do Kilimanjaro.