A Cachoeira Dourada

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A seguir A Cachoeira Dourada, 2º capítulo desta história contada em 10 capítulos, escrita para esclarecer alguns mistérios da Serra do Marumbi e aprofundar outros, onde alguns personagens, lugares e acontecimentos são reais enquanto nomes, datas e outros tantos acontecimentos são fictícios. Tudo junto e misturado durante uma hipotética Travessia Alpha-Ômega.

Leia antes o capítulo 1 – A MARIA FUMAÇA
 
 
Venceu a rebeldia e depois de alguma relutância rumaram para o Pau do Maneco com cuidado para não serem vistos nem deixar rastros comprometedores. Encontraram o mundo virado de ponta cabeça, árvores com as raízes nuas para o alto enquanto as copas desapareciam no fundo das grotas, paredes verticais de pedra vertendo água, limo e troncos podres. Tudo desbarrancando em desordem e o primeiro da fila deslocava pedras que passavam como mísseis rentes às cabeças dos demais. Era o mais próximo de uma escalada realmente selvagem que aqueles jovens já haviam chegado e isto ao contrário de desestimulá-los só os excitava ainda mais. A própria dificuldade era a recompensa. 
 
Seguiram motivados, escalaminhando barrancos e agarrando-se as árvores por horas a fio até encontrarem o riacho que ouviam gritar no fundo da grota. As dificuldades diminuíram e o arvoredo tornou-se magnífico facilitando a caminhada. Num grande bambuzal tomaram o rumo do oeste por entre vegetação espessa onde só a dureza do chão denunciava a trilha, mas Aldo a frente seguia resoluto, esbanjando experiência e infundindo confiança.
 
O conjunto Marumbi sempre ocupou posição de destaque na paisagem paranaense. Muito impressionou os primeiros europeus que se aventuraram terra adentro a partir de Paranaguá assim como já era referenciada pelos índios muito antes disso e continua admirado por quantos o vêem ainda hoje. É uma linha contínua de montanhas que se levanta abrupta da baixa planície litorânea para atingir a altura de 1.565 metros no Morro do Leão e avança pelo primeiro planalto ainda preservando sua majestade. São aproximadamente 30 montanhas agrupadas geologicamente em 3 serras bastante separadas de outras serras por imensos precipícios.
 
Renan gradativamente ia ficando para trás sobrecarregado com peso inútil na mochila. Carregava água em demasia, capacete de segurança, piquetas para escalada em gelo e outros itens desnecessários e até surreais para uma caminhada na floresta tropical. No início era tratado com certa condescendência, mas não tardou para se tornar alvo das gozações dos amigos e, cansado, começou a ficar profundamente irritado.
 
               – Vá pentear macaco. – era sua resposta padrão.
 
E a macacada efetivamente apareceu para encarar o pente, balançando sobre os galhos das árvores que cobriam um riacho. O bando de macacos prego não possuía mais que uma dúzia de elementos liderados por um grande macho que de imediato demonstrou insatisfação com a súbita aparição dos primos humanos. Emitindo gritos, assobios e chiados ordenou a imediata retirada da pequena tropa. 
 
Antigas histórias de caçadores relatam que ao se verem acuadas, as mães expõem os filhotes na esperança de despertar compaixão em seus algozes. Mas não havia compaixão alguma com o Renan e Oscar seguia contando histórias nada abonadoras a seu respeito até alcançarem os campos. Caminhavam em paralelo a profunda depressão que necessariamente seria enfrentada ainda naquela tarde. Procuravam por um lugar menos traumático para executar a travessia do vale e acompanhando velhos rastros finalmente encontraram uma corda fixa descendo o precipício. 
 
               – Meu Deus! É exatamente como vejo nos sonhos e sempre pensei tratar-se de uma lembrança de vidas passadas, mas é real Oscar, é real!
 
Anna entrou em êxtase ao se aproximar da borda da depressão e ver o pequeno vale por completo. Ao final da encosta na montanha o terreno subitamente despencava uns dez metros por onde escorria uma fina lâmina d’água sobre degraus de pedra amarela que naquele horário produziam um reflexo dourado. Ouro puro e brilhante escorrendo líquido por entre as árvores.
 
               – Oscar, este é o lugar que lhe falei. A cascata dourada, o bosque, o vale! É aqui que vi os duendes e as fadas, os elfos! Este é o lugar que se repete nos meus sonhos. Estas águas purificam o corpo e o vale é um dos portais para o mundo das criaturas celestiais, onde as realidades se misturam.
 
Deixaram o campo seco e quente se agarrando em cordas para alcançar o bosque úmido e fresco no fundo do vale. Deitaram as mochilas numa pequena clareira e correram saciar a sede nas águas límpidas da cascata. 
 
               – Veja esta água, é diferente de todas as outras. Tão limpa e transparente, mas transforma a pedra em ouro só em tocá-la! É o elixir da vida longa procurada pelos alquimistas, que cura todas as doenças do corpo e da alma. Bebam e experimentem da verdadeira felicidade!
 
               – Onde estamos Aldo? – Oscar se mostra um pouco cauteloso fora de sua zona de conforto e Aldo os distrai com outra história enquanto descansam.
 
               – A ferrovia baseou seu traçado na antiga trilha sob o comando de engenheiros e mestres italianos com muita experiência adquirida em construções similares nos Alpes. Os andaimes da incrível ponte sobre o Rio São João foram inteiramente executados com bambu. Com eles veio o alpinismo que contaminou os paranaenses desde então. Já em 1879 o morreteano Joaquim Olimpio (Carmeliano) de Miranda reuniu um grupo de aventureiros e inaugurou o montanhismo esportivo no Brasil partindo de um acampamento ferroviário onde trabalhava. Repetiu a façanha várias vezes até sua morte, sempre acompanhado por pessoas diferentes e assim disseminando o vírus e a paixão. 
 
               – Mantém discípulos e seguidores até hoje.
 
Nos anos da segunda guerra o esporte ganhou forte impulso com as perseguições aos imigrantes italianos, germânicos e nipônicos que apartados da vida social na capital e já adeptos de aventuras out door em suas pátrias de origem, invadem as principais montanhas do Marumbi para piqueniques, caminhadas e depois escaladas. Conquistam todos os cumes, estabelecem as trilhas principais e abrem as vias clássicas de escalada pelas paredes de rocha. Nesta mesma época havia desejos e estudos para percorrer o que chamavam de silhueta da serra, mas o nome definitivo só chegou em 1962 com o projeto Alpha-Ômega do Henrique (Vitamina) Paulo Schmidlin e Ronaldo (Bigode) Cruz que traçaram as bases para a explosão das travessias 30 anos depois. O percurso clássico se iniciava no planalto escalando o Morro do Canal seguido da Torre do Vigia e desviando a noroeste sobre o cume agora chamado de Ferradura para em frente superar os Morros Negro, Sem Nome, Alvorada 4, 3 e 2, Chapeuzinho, Chapéu, Pelado, Ângelo, Leão, Boa Vista, Pico Marumbi (também chamado de Olimpo em homenagem a seu conquistador), Gigante, Ponta do Tigre, Esfinge, chegando a Estação Ferroviária de Marumbi pela Passagem Noroeste. Todos separados entre si por imensas grotas, florestas fechadas e distancias respeitáveis. 
 
Depois foram criando atalhos em função da disponibilidade do tempo que cada um possuía para percorrer o trajeto e assim surgiu a Trilha Free Way que se inicia ao final da Trilha Pau do Maneco e dá acesso direto ao Morro Pelado, passando por esta belíssima cascata. Também desviaram o Morro do Chapéu passando pelo selado que o separa do Espinhento e do Chapeuzinho descendo por um vale terrível para chegar diretamente no Morro Alvorada 2. Na outra ponta é possível desviar do Morro do Canal pelo atalho da Torre Amarela que leva direto a Torre do Vigia.
 
Os extremos leste e oeste são bem conhecidos e servidos com inúmeras trilhas liberadas para os esportes e o turismo. Entre eles um grande território desconhecido e sem trilhas onde cada um faz seu próprio caminho.
 
               – E aqui estamos no desafio Alpha-Ômega de resistência e navegação.
 
Todos queriam encerrar a jornada naquele lugar paradisíaco e apenas Aldo insistia em estragar a alegria de Anna impondo o pernoite morro acima, onde acampariam no campo sob um céu de estrelas. Argumentava que o vale se transformaria numa geladeira a noite e andando forte ainda poderiam alcançar o cume em mais algumas horas. Foi voto vencido pelo esgotamento geral dos caminhantes aliados ao entusiasmo transbordante da Anna. Não teve opção além de escalar a cascata e montar seu bivaque solitário nos campos, distante da umidade do riacho. Renan, Oscar e Anna montaram a barraca na clareira sob as árvores, a poucos passos da cachoeira. 
 
               – Só falta o violão. – argumentou Oscar acendendo um baseado.
 
Anna arrumava o fogareiro e mexia nas panelas enquanto Renan esticava os isolantes e os sacos de dormir no interior da barraca, mas ambos interromperam suas tarefas imediatamente após sentir o inconfundível aroma da erva queimando. Na posição de lótus compartilharam o baseado e as muitas histórias que Anna sabia de cor sobre as trapalhadas dos duendes, as aparições das fadas que realizam os desejos dos mortais e da beleza e sensualidade dos elfos. 
 
               – Viram aquele vulto? – perguntou Renan – Com certeza era um duende se escondendo atrás das árvores e aquelas faíscas verdes?
 
               – Aposto que são tiriscos – afirmou Oscar.
 
Todos riam da brincadeira entre uma baforada e outra, mas não tardou a realmente perceberem movimentos furtivos entre as árvores e uma estranha sensação de estarem sendo observados. A larica os fez limpar as panelas e a conversa rumava para uma espécie de jogo da verdade enquanto pequenos olhos verdes e brilhantes cintilavam no fundo do bosque.
 
               – Nunca contei pra ninguém, mas nos meus sonhos sou possuída por dois lindos elfos neste vale. – confidenciava enquanto se deixava viajar no ácido.
 
Das profundezas da cachoeira se materializa um ser de pura luz dourada que se aproxima e a beija com a suavidade da brisa quente que verga as hastes de capim num campo ensolarado e do bosque sombrio as dezenas de olhos cintilantes se fundem num ser verde brilhante que a desnuda com violência e obstinação. 
 
Seres das florestas e dos campos se aproximam para ver o espetáculo e se dividem em campos opostos. Torcem por seus gladiadores que se alternam entre carícias e torturas. Duas Annas flutuam no centro da arena de ofuscante luminosidade, uma entregue ao prazer suave do toque de veludo enquanto a outra é sodomizada com dor e ambas são uma só. Exposta a sensações conflitantes sente o planeta estacionar, o relógio travar os ponteiros e a gravidade desaparecer pela eternidade daquele instante.
 
Os corpos se contorcem, o coração acelera e os orgasmos se sucedem em crescente intensidade. Corpos, árvores, cascata, água, vale e montanhas se fundem numa só alma luminosa e explodem na escuridão da noite infinita. O silêncio e o nada completam o encanto dos corpos perdidos no vazio do cosmos.
 
 
Continua no capítulo 3 – A TRILHA
 
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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