A Maria Fumaça

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A seguir A Maria Fumaça, 1º parte de uma história contada em 10 capítulos, escrita para esclarecer alguns mistérios da Serra do Marumbi e aprofundar outros, onde alguns personagens, lugares e acontecimentos são reais enquanto nomes, datas e outros tantos acontecimentos são fictícios. Tudo junto e misturado durante uma hipotética Travessia Alpha-Ômega.

_Sabiam que esta foi a primeira estrada pavimentada do Brasil? – Anna perguntou a seus companheiros de viagem.
_E vem mais cultura inútil! – respondeu Renan do banco traseiro sem levantar o olhar, irritado com o súbito desaparecimento do sinal de celular.
Oscar apenas sorriu, sem se descuidar do volante nas curvas sinuosas da estrada. Estava apaixonado pela garota e divertia-se com seu entusiasmo por história, florestas, animais e arte. Aprovava todos os seus interesses e corria para satisfazê-la nos mínimos detalhes.
O orvalho da madrugada tornava muito liso o piso de paralelepípedos na descida da velha Estrada da Graciosa, tornando bastante lenta e perigosa a condução do veículo, mas o entusiasmo da namorada recompensava qualquer sacrifício. Anna ficava em êxtase diante da imensidão da floresta, do ar puro inflando seus pulmões e da pureza da aurora rompendo por detrás dos morros.

Maria Fumaça – Fonte: Cid Destefani

Começava mais um feriadão prolongado com o final de semana e o tempo excepcional no final daquele inverno quente e seco prometia muitas aventuras no Parque Estadual Marumbi. Caminhadas pelas trilhas, banhos de rio e namoro ao luar fariam a delícia para o casal e certamente promoveria a cicatrização de uma recente decepção amorosa do amigo. Renan sempre tinha algum amor platônico que terminava sem mesmo nunca haver começado, mas estes sonhos desfeitos eram sentidos com extremado realismo.

Cruzaram o Rio Nhundiaquara sobre a ponte de ferro com o sol já ameaçando dissolver a bruma matinal e seguiram a direita pela Estrada das Prainhas, acompanhando o rio. A ausência de buracos devido a longa estiagem permitia boa velocidade e rapidamente alcançaram os estacionamentos. No Centro de Visitantes fizeram um cadastro rápido declarando apenas os nomes, telefone de contato e destino. Mochilas cargueiras nas costas e pé na estrada, tinham pressa para chegar ao camping a tempo de escolher um bom lugar antes da multidão esperada para o final de semana.
Anna falava pelos cotovelos. Música para os ouvidos do Oscar e já bem próximos da bifurcação para a Usina de Marumbi Renan seguia distanciado para conseguir ouvir seus próprios pensamentos. Distraídos só perceberam a aproximação de um quarto mochileiro quando este os cumprimentou. Pareceu saído do nada, materializado na estrada, mas Anna o reconheceu.
               – Você não é o Aldo que escreve naquele site?
               – Você lê meus relatos?
               – Todos, adoramos tuas aventuras. Você já é uma lenda! Vai escalar?
               – Não, desta vez vou fazer uma coisa diferente.
 A resposta ateou fogo na curiosidade dos três que imediatamente pararam de andar, dedicando toda a atenção para o recém chegado.
                – Não faz segredo – interrompeu o Oscar – conta logo esse lance.
               – Não sei se devo – Aldo se fez de difícil – é apenas uma idéia que pode nem dar certo.
               – Conta, conta! – implorou Anna – não me mate de curiosidade.
               – Se tudo der certo vocês poderão ler no site.
               – Tá de sacanagem! – Renan também mostra interesse – Agora que começou, termine.
Voltaram a andar, agora mais lento.
               – Bem, é apenas uma hipótese. Soube que no início do século passado uma locomotiva a vapor despencou numa grota e nunca foi retirada.
               – E você sabe onde ela está? – perguntou Renan.
               – Como disse, é apenas um palpite. Talvez tenha sido retirada, talvez esteja enterrada debaixo de toneladas de pedras ou consumida pela ferrugem. Pode nem existir e tudo não passar de boatos.
               – Você sabe ou não? – Anna ficava impaciente com tanto suspense.
                 – Soube que caiu num precipício na entrada do túnel nº 6, mas só poderei confirmar depois de descer para ver com meus próprios olhos.
Aproximavam-se da entrada do velho caminho do Itupava que sobe a serra e por duas vezes cruza com a ferrovia. Tornaram-se pensativos e Aldo sabia que plantava uma forte semente de curiosidade na mente dos três jovens. Era uma isca muito poderosa e Aldo, dez ou quinze anos mais velho e experiente que o trio, sabia manipular emoções como ninguém. Despediu-se e seguiu em passo calculadamente lento pela trilha do Itupava. Pouco tardou para ser alcançado por um esbaforido Oscar que foi correndo a seu encalço.
               – Aldo, espere – respirou com as mãos nos joelhos – podemos te acompanhar?
               – Cara, nem sei se de fato esta Maria Fumaça existiu. Vocês podem perder todo o feriadão procurando um fantasma.
               – Claro, sabemos disto – assumiu o risco – mas o importante é procurar, conhecer novos lugares. Isto que é aventura!
               – Por mim tudo bem, desde que não me culpem se não acharmos nada. O mato é imenso e tem lugar para todos. Vou indo devagar para não esfriar os músculos e vocês me alcançam, não tem como errar.
Oscar correu até o início da trilha para chamar os companheiros enquanto Aldo apressava os passos para valorizar sua fama de montanhista intrépido e veloz. Convenientemente se deixou alcançar observando a paisagem sobre a ponte pênsil, no cruzamento com o Rio Taquaral.
               – Conhecem as ruínas do posto de cobrança do pedágio?
               – Ruínas? Pedágio? – se admiraram.
               – Já se cobrava pedágio no tempo do Imperador. Venham ver isto.
Adentrou algumas dezenas de metros pelo bosque e afastou algumas trepadeiras com uma vara. Por toda a parte surgiram pequenos muros de pedras empilhadas. Raspou o chão afastando folhas mortas e retirando uma camada superficial de húmus expôs o verdadeiro extrato de cacos de telha ainda identificáveis como tal. Depois de cruzar com o Rio São João por sobre a segunda ponte pênsil, igualmente afastou a vegetação rasteira e resgatou telhas cerâmicas quase inteiras do solo úmido. Anna se encantou com os achados arqueológicos, apesar da pobreza do que sobreviveu das velhas edificações.
               – Você sabe o que era isto? – a curiosidade matou o gato – Conte!
               – Nossos índios até onde se sabe pouco se interessaram pelos altos cumes, mas conheciam muito bem as ricas canhadas entre as serras. A Trilha do Itupava era por eles percorrida desde tempos imemoriais quando desciam a serra no verão para mariscar no litoral e retornavam ao planalto para se alimentar de pinhões no inverno.
Sentia prazer em contar histórias.
               – Uma antiga lenda conta que a descoberta da trilha se deve a caçadores em perseguição a uma anta no alto da serra para finalmente conseguirem abate-la nas imediações de Porto de Cima onde o Rio Nhundiaquara se tornava navegável para as canoas de um só pau. Certamente usaram arcos e flechas para matar o animal.
Caminhavam pelos intermináveis zig-zags da subida do Cadeado, sujando as botas nos lamaçais e escorregando nas pedras ensaboadas pelo limo das folhas apodrecidas. Mas nada saciava o apetite da Anna por histórias, fábulas e mitos. Demoraram-se por algum tempo no santuário onde explicou que o colonizador europeu não demorou a aprender com os indígenas os segredos desta vereda que só permitia o tráfego de pedestres em função dos imensos precipícios em paralelo ao leito do Rio Piranguçu.
               – Carregavam suas cargas nas costas, à maneira índia até o período Pombalino quando se separam as coroas de Portugal e Espanha. Os portugueses iniciaram a corrida colonizadora para oeste empurrando os espanhóis para o outro lado do Rio Paraná. O Tenente Coronel Afonso Botelho Sampaio foi designado para a missão e na impossibilidade de passar seus canhões pela trilha original se vê obrigado a melhorá-la abrindo a passagem no Morro do Cadeado à custa de muita pólvora de suas munições de guerra.
Só omitiu que toda a tropa foi trucidada pelos índios ao chegar aos sertões de Guarapuava.
               – Assim se iniciou o tráfego com tropas de muares que cresceu continuamente com o desenvolvimento do comércio entre Curitiba e o litoral, mas os cascos das mulas cavavam a terra e provocavam imensos atoleiros obrigando as autoridades ordenarem o calçamento da trilha e estabelecer praças de pedágio para arcar com os custos de manutenção. O último e maior deles se fixou entre os rios São João e Itupava onde encontramos as ruínas dos alicerces.
Esperaram pacientemente até uma composição ferroviária subir a serra certificando que encontrariam os trilhos desimpedidos a frente. Afastaram-se antes que um grupo de turistas, cujas vozes já se ouvia ao longe, chegassem também ao santuário. Aldo desejava manter em segredo sua Maria Fumaça até realmente encontra-la e publicar seu relato. Ser o primeiro era questão de honra e merecimento para ele que pesquisou o assunto.  Não deixaria pistas para a concorrência caso o destino não os favorecesse naquela data. Partilhando o segredo e plenamente unidos numa equipe de exploração, todos entenderam a natureza da coisa e se mantiveram em silêncio até o fim do túnel nº7 por mais custoso que fosse a Anna. Período de vaca amarela que causou indisfarçável satisfação ao Renan já cansado de papo furado.
Encaravam uma grota incrível e por mais que procurassem não encontravam uma rota segura para descer até o fundo onde poderia estar a locomotiva. Seria necessário usar de equipamentos para rapel, talvez vários lances em seqüência e nenhum deles estava equipado com o material necessário.
Nova decepção na outra ponta do túnel ao se depararem com um segundo precipício.
                – Na entrada do túnel seis subindo ou descendo a serra? – Anna se queixava de forma inconsolável – Mas você nem imaginou a necessidade de rapel?
                – Vim apenas explorar o lugar e mesmo com meu equipo completo levaríamos o dia todo para descer os quatro até o fundo desta grota. Poderíamos dividir a corda, mas todo o resto é equipamento pessoal.
Teriam que voltar em outra ocasião com cordas, arnês, freios e mosquetões.
               – Magoei! – insistia Anna – Já estava me sentindo dividindo a cena com Indiana Jones e agora voltamos a farofagem no Marumbi.
               – É um pouco longe daqui, mas conheço um lugar com os restos de um avião de passageiros – Aldo surgiu com nova idéia – e para chegar lá não precisa mais que duas boas pernas se servir de consolo.
               – Longe, quanto? – perguntou Oscar um pouco desconfiado.
               – Programa para o feriado inteiro, mas faz a travessia da serra e passa por lugares incríveis. É coisa para entrar pra história. No acidente só sobreviveram dois dos vinte e cinco e vi uma turbina, o trem de pouso e um monte de pedaços espalhados. Procurando vamos encontrar muito mais coisas.
 Caminhavam pelos trilhos em direção a Estação Marumbi cruzando pelo túnel cinco e o trem os encontrou na metade da Ponte São João. Os túneis e as curvas os impediram de ouvir a composição se aproximar e tomados de surpresa ficaram sem alternativas.  Correr pelos dormentes não era opção e sem tempo hábil para retornar ou avançar seguiram as instruções do Aldo para se pendurar para fora da ponte agarrados nos perfis metálicos. Ouviram de passagem um bom xingamento do maquinista que com as mãos manifestava toda sua indignação pelo encontro imprevisto.
 O sucesso da manobra e a injeção de adrenalina os motivou pelo resto da estrada. Sentiam-se invencíveis e aptos a enfrentar qualquer desafio. Nas proximidades do Rio Taquaral Aldo os alertou que era preciso tomar uma decisão porque o avião se encontrava em área intangível do parque onde por lei era proibido entrar.
 Em meados dos anos 90 foi criado o Parque Estadual do Marumbi com leis rígidas e plano de manejo que proíbe até hoje o acesso dos esportistas para toda a parte central destas serras. Com o parque também surgiu uma legião de dedos duros que se julgam mais iguais entre os iguais na proteção das pererecas e sapos cururus que hipoteticamente habitam estas regiões consideradas intangíveis. Caso optassem pela travessia não poderiam dar as caras na estação sob penas de multa e até processo por invasão. Teriam que sair da estrada de ferro e subir o rio para evitar os controles.
A inundação de adrenalina e a rebeldia da juventude falaram alto novamente. Desceram da estrada e seguiram pelo leito de pedras do rio até encontrar a trilha principal que escala a montanha do Marumbi. Por pouco mais de um quilômetro trilharam por terreno conhecido, mas na cachoeira dos marumbinistas Aldo os alertou que seguiria a direita para longe da trilha principal e teriam que se decidir. Fariam a travessia ou subiriam mais uma vez a velha e conhecida montanha para depois vagabundear pelo camping até o fim do feriado?
O tema colocado desta maneira incitava os brios da molecada e apesar do receio do desconhecido latejava ardente o desejo pela inusitada aventura.

Cronologia dos capítulos

Continua no capítulo 2 – A CACHOEIRA DOURADA
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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