A conquista do Cerro Torre – parte II

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Durante a expedição de 1958, Maestri realizou um reconhecimento aéreo do Cerro Torre e viu que uma rota na face norte era possível e que o colo entre este e sua agulha vizinha, (posteriormente chamada Torre Egger em honra ao austríaco que morreu nesta ascensão) oferecia um bom lugar de partida para efetuar um ataque final ao cume.

:: Leia a primeira parte da história da Conquista do Cerro Torre.

O CERRO TORRE

Montanha maldita, agulha maravilhosa, grito de pedra, montanha infernal, agulha travessa: estes são alguns dos adjetivos usados para definir uma das montanhas mais belas e singulares do mundo: o Cerro Torre.

Entre todas as definições citadas, a mais original e simpática é a última, empregada por Gino e Silvia Buscaini para descrever o Cerro Torre no seu belíssimo e interessante livro “Patagônia”.

Cerro Torre.

O Cerro Torre é uma agulha travessa, com seu cogumelo de gelo no cume, como um bonete insolentemente atravessado. Último dos muitos cerros esculpidos na poderosa inserção de granito, resultou similar a um filho rebelde que muitas vezes se apresenta com humor duvidoso. Suas piores provocações, de acordo com o vento, são o gelo que se incrusta para se encapuzar até as orelhas e depois despir-se em um golpe repentino para permanecer totalmente desnudo, só com seu cogumelo na cabeça. Sua vaidade o havia levado a querer renegar sua realidade de montanha para tornar-se como um mito. Para consegui-lo estaria disposto às práticas mais torpes, valendo-se também de escândalos e intrigas“. Um Torre vaidoso e às vezes mal é o descrito em “Patagônia”, e efetivamente, se queremos humanizar a montanha, não encontraremos adjetivos mais adequados.

O Cerro Torre, assim chamado por sua pontiaguda e sutil silhueta, é talvez a montanha mais conhecida da Cordilheira Patagônica Austral, tanto pela subjugante história de sua conquista como por sua beleza.
A magnífica montanha constitui a maior de quatro agulhas graníticas que formam um imponente complexo montanhoso de rara beleza e harmonia. A cadeia Cerro Torre – Cordón Adela está situada no limite oeste do Gelo Continental, próximo dos 49º 20´ de latitude.

Sobre a vertente argentina da cadeia montanhosa se forma um vale que se encontra com o do Rio das Vueltas: frente às paredes do leste do Cerro Torre, da Torre Egger, da Punta Herrón e do Cerro Standhart, constituindo a vertente hidrográfica esquerda, se encontra a cadeia do Fitz Roy e seus satélites. A cabeceira do vale é ocupada pelo glaciar do Torre, cujas águas de fusão do gelo formam a Laguna Torre, do qual o emissário é o Rio Fitz Roy.

A vertente ocidental do Cerro Torre é principalmente rochosa, assim como a meridional. Do glaciar se erguem paredes graníticas compactas de mais de 1.300 metros de altura. A vertente ocidental, a mais exposta aos ventos ciclônicos que provêm do Oceano Pacífico, está coberta quase por completo por uma crosta de gelo que se forma pela condensação do ar úmido sobre as paredes rochosas. Este é, sem dúvida, um dos rincões mais remotos e selvagens da Patagônia, apartado de fácil vias de acesso e quase sempre envolto em nuvens. A vertente norte não é no entanto bem conhecida. Se estende desde o vale formado entre o Torre e o Egger e se abisma em parte também para oeste, sobre o Gelo Continental. Provavelmente é o lado mais perigoso, dado que está sujeito a cobrir-se repentinamente de gelo e a liberar-se dele com a mesma velocidade. É nessa vertente norte que se iniciou a história da conquista desta magnifica montanha.

Parede Norte, Maestri – Egger ou Egger – Maestri, 1959

Durante a expedição de 1958, Maestri realizou um reconhecimento aéreo do Cerro Torre e viu que uma rota na face norte era possível e que o colo entre este e sua agulha vizinha, (posteriormente chamada Torre Egger em honra ao austríaco que morreu nesta ascensão) oferecia um bom lugar de partida para efetuar um ataque final ao cume. Maestri e Cesarino Fava fizeram bons amigos nesta expedição e combinaram de voltar na temporada seguinte.

Toni Egger na juventude.

Com grandes problemas e esforços econômicos, Cesare Maestri voltou à Patagônia na temporada 58-59. Ao observar que a rota escolhida incluía muita escalada em gelo, e que suas habilidades neste terreno eram limitadas, começou a busca por um terceiro na cordada. Logo encontrou um jovem e forte escalador austríaco chamado Toni Egger. Este era o melhor alpinista de seu país nesse momento e um escalador completo com grande aptidão para a escalada em gelo, tendo realizado muitas e difíceis ascensões nos Alpes e no Peru. Hoje em dia se diz que a técnica de Toni estava adiantada 10 anos comparado com os de sua época.

Maestri e Egger se conheceram em um refúgio nas Dolomitas, e imediatamente se juntaram para organizar a expedição à Patagônia Argentina. Esta não começou com muita sorte. Três dias antes de partir, Maestri bateu seu carro já vendido, perdendo muito dinheiro. Também perdeu uma contribuição da SNIA VISCOSA (indústria de fibras), que foi para as mãos da segunda expedição de Walter Bonatti ao Cerro Torre, a qual acabou não indo. E em Buenos Aires uma carta da Embaixada da Itália que pedia um avião para transportar a expedição, se extraviou. Já na Argentina o dinheiro que lhe restava foi gasto para conseguir um caminhão que demorou sete dias para chegar à estância mais próxima do cerro. Durante esta viagem desapareceu um dos sapatos especialmente confeccionados para esta escalada. Uma vez na região, ao cruzar o rio Fitz Roy quase perde a vida ao ser arrastado pela corrente, como Jacques Poincenot, e para completar, Egger esteve imobilizado por uma semana devido a uma infecção em um pé, deixando para Fava, Maestri e o resto, os trabalhos dos transportes.

Cesare Maestri 1959.

Dias mais tarde montaram três acampamentos, e Cesare e Cesarino conseguiram equipar 150 metros da parede. Quando Toni melhorou, ele e Maestri trabalharam outra semana fixando cordas fixas até chegar ao campo de neve triangular característico da parede leste, a 400 metros de onde instalaram um depósito de víveres e equipamento.

Foram dez dias de mal tempo desde então, e em 25 de janeiro puderam retornar ao campo III na base da parede. O encontraram coberto de neve, tendo que cavar quase 15m de túnel para chegar ao depósito fortemente provido de alimentos, combustível e mas de 100 grampos.

Cerro Torre em 59. Foto de Cesarino Fava.

Depois da última tormenta, o Cerro Torre estava coberto de neve, mas o clima havia melhorado e Maestri sentia que o momento decisivo havia chegado. Os planos de Toni eram fazer um ataque final com comida suficiente para seis dias, deduzindo que seria mais rápido e menos cansador. Assim convenceu ao resto da equipe de fazer uma tentativa rápida desde o colo.

Em 28 de janeiro subiram as cordas fixas, mas sentindo-se tensos e nervosos pela escalada que iam realizar. Seguiram por largas fissuras geladas expostas à queda de pedras, mas que permitia ao trio avançar rápido com crampons e piolets. As fissuras terminam na base do gigantesco diedro da face leste. A partir daí, e para alcançar o colo, começaram uma longa travessia sobre sistemas de rampas sob o negativo pilar norte.

Col de la Esperanza, atrás do Domo Cerros Blanco, Piergiorgio e Pollone.
Primeira expedição argentina italiana a Cerro Torre, 1958. Foto: Rene Eggmann, coleção Guillermo Glass. Fonte CCAM.

Maestri previamente o havia batizado como ´Colo da Conquista´ porque segundo ele “na montanha não existe a esperança, somente existe a vontade de conquista, a esperança é a arma dos pobres” (se acredita que esta frase foi dita em contrapartida do “Colo da Esperança” da expedição de Bonatti de 1958).

Já ali, Fava decide descer para dar aos escaladores mais fortes maiores possibilidades de triunfar. Ajudado por Maestri e Egger, Fava desescala a travessia e depois faz uma longa série de rapéis até chegar ao glaciar. Passam uma noite em claro no abrigo. No dia seguinte amanhece perfeito, Egger começa a liderar as cordadas e Maestri o segue com a mochila mais pesada. A escalada começa a se realizar sobre finas camadas de gelo e neve, de um metro de espessura e às vezes de somente 20cm. Maestri relatava: “A cada passo toda a superfície de gelo ao meu redor fazia um ruído grave e oco, rompendo-se em grandes pedaços que caiam ao vazio. Os parafusos de gelo entravam como em manteiga e nos davam só uma ilusão de segurança. Em cada cordada cavávamos uma pequena plataforma para chegar à pedra aonde não encontrávamos nenhum rastro de fissura, então devíamos fazer buracos para grampos de expansão, e cada buraco necessitava 500 marteladas para ser realizado“.

Continuaram por mais 12 horas, nas quais segundo Maestri “suas vidas não valiam nada”, avançando 300m em uma parede de 50 a 60 graus de inclinação. Ao final do dia alcançaram uma região na qual o gelo é de maior espessura e consistência, se sentindo mais seguros. Em uma plataforma de neve cavam e instalam o abrigo.

No terceiro dia o clima segue bom e Egger continua liderando. Escalaram na maior parte por chaminés de gelo protegidas do vento utilizando todas as técnicas sobre gelo que conheciam, e inventando outras como quando Maestri precisou cavar um túnel no gelo para evitar um negativo.

Quando a parede norte se tornou muito vertical, a cordada atravessou para o lado noroeste. Neste dia escalaram 250m e bivacaram em uma confortável plataforma de neve sem necessidade de se encordar. O cume se encontrava a solo 150m.

O dia 31 amanheceu com vento forte e quente. O barômetro de Maestri indicou que a pressão havia caído abruptamente e por isso uma tormenta se aproximava. Ali começou uma corrida contra o tempo. Se alternaram na ponta enquanto o vento soprava cada vez mais forte. Maestri escalou os últimos metros quase horizontais, lutando contra as rajadas. Chegaram ao cume exaustos, comeram, tiraram fotografias e deixaram escritos seus nomes dentro de uma lata que enterraram na neve. Maestri relatou: “tinha sonhado mil vezes com este cume, mas agora permaneço indiferente, embrutecido pelo cansaço e com os nervos crispados. Desescalo este cume sem nenhum sentimento de emoção e sem o menor rastro de desgosto ou medo”.

Escalada de 59 no Torre.

Às 16 horas começaram a rapelar em um vendaval quente que provoca avalanches por todas as partes. Em três rapéis voltaram ao último abrigo. O ruído do vento era ensurdecedor e Toni repetia a cada momento “espero que não morramos de morte blanca“. Pela manhã molhados e com fadiga continuaram a descida. Para isso utilizaram a técnica que consiste em descer o primeiro e que depois rapele o segundo. Se dependuravam nos cogumelos de gelo que eles cavavam e depois, quando se acabava o gelo, colocavam dois pitons de expansão no duro granito por cada relevo. Colocaram mais de uma dezena em toda sua longa descida.

Em um momento se enganaram de canaleta e continuaram descendo diretamente pela parede norte. Bombardeados por pedaços de gelo e açoitados pelo vento, depois de onze rapéis, instalaram após um monte de neve seu quinto bivaque em plena parede. Logo após o entardecer do dia seguinte terminaram de descer a face norte e se uniram com sua linha de ascensão mais ou menos na metade da grande travessia entre o grande diedro leste e o colo. Já um pouco mais protegidos do vento e a somente 100 metros das cordas fixas, Cesare encontra uma pequena plataforma e trata de convencer Toni de passar a noite ali. Egger sentia que o lugar era muito exposto e insistiu para que Maestri descesse para buscar um abrigo melhor. Enquanto o faziam, uma avalanche gigante, “como um sopro de morte”, arrasta Toni que tratou de voltar à parede, mas os blocos cortam a corda e ele desaparece no vazio para sempre.

Toni Egger

Sem equipamento de bivaque, que também foi arrastado pela avalanche, Maestri passou a outra noite bivacando em “pêlo”. Ao amanhecer continuou descendo com os restos de corda que sobraram “como um homem condenado. Alguém indiferente à vida ou à morte vai que vai ser executado”. Já perto do glaciar, escorregou e caiu os últimos metros até o solo, mas foi amortecido pela grande quantidade de neve fresca acumulada e conseguiu se salvar. Não se lembra de nada desde este momento.

Cesarino Fava, montanhista argentino que participou da expedição ao Cerro Torre em 1959.

Cesarino Fava abandonou o campo III rumo ao II e encuentrou Maestri na tarde de 3 de fevereiro caído na neve, a 300m do acampamento, delirando e no limite gritando “Toni, Toni!!!”.

Maestri conseguiu se salvar, voltou à Itália e foi reconhecido como um herói nacional. Segundo ele, a empreitada ao Cerro Torre não foi uma escalada mas sim um “jogo com a vida”.

Esta ascensão foi considerada por Lionel Terray (primeiro escalador junto a Guido Magnone do Cerro Fitz Roy) como “a maior façanha de escalada de todos os tempos”. A escalada de 1959 foi detalhada em uma completa reportagem expedicionário, incluindo uma descrição técnica da rota e vários artículos e revistas.

Em 1976, uma expedição americana à Torre Egger, liderada por Jim Donini, encontra parte do corpo de Toni Egger, mas não a câmera de fotos (com tomadas do cume) que segundo Maestri era levada por Toni ao ser arrastado pela avalanche.

Restos mortais de Toni Egger encontrados por Jim Donini em 1976.

Se ficasse confirmada, esta escalada seria considerada como a primeira ascensão mundial de uma parede Grau VII (7c no Brasil).

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Texto publicado pela própria redação do Portal.

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