A Escalada da Fenda “Y” na face da Esfinge

3

A mais de ano que o Henrique (Vitamina) Paulo Schmidlin olhava desejoso para a fenda “Y” na face da Esfinge que os irmãos Osíris (Arame) e Orisel (Estaca) Curial deixaram por terminar, até que se encheu de vontade pedindo autorização para dar sequência na escalada e tratou de procurar um companheiro para a empreitada. Só o Werner (Tarzan) Wiemer se empolgou com a idéia e no dia 26 de fevereiro de 1954 partem de Curitiba no trem das 14h00 em direção ao Marumbi.

Rotas atuais na parede da Esfinge

Iniciam muito tarde a subida e ao anoitecer chegam na base da Esfinge. No “Cocho do Boi” deixam uma mochila grande com roupas e comida, transferindo o material necessário para outras duas mochilas. Uma maior e outra pequena sem alças, quando notaram a falta de uma lanterna de carbureto. Tarzan toma para si a responsabilidade com iluminação da sua carbureteira, subindo por fora para evitar as chaminés. Do alto puxa as mochilas amarradas a corda que continuamente engata nas saliências das pedras. A subida é lenta com garoa intermitente e o Vita segue atrás a luz de vela, manejando a ponta de controle.

Na “Porta do Inferno” precisam fazer baldeação de carga porque a mochila grande não passava e a lanterna elétrica do Tarzan, presa a cintura para emergências, despenca e se perde. A parafina derretida da vela segue queimando os dedos do Vita e a carbureteira do Tarzan começa a esquentar e falhar. Na “Clarabóia” precisam passar na mais completa escuridão, nem olhar o Vita podia porquê de cima desciam todo tipo de detritos. Escalada no tato, apenas com apoios psicológicos sem avaliação do risco. Sem sucesso procuram abrigo na chaminé. Até que havia alguma proteção debaixo de uma laca saliente que facilitou o concerto da lanterna de carbureto, mas o chão irregular e inclinado, forrado de pedras pontiagudas não permitia se deitar.

Escalada na chaminé em tempos modernos.

A travessia da “5ª Avenida” foi tensa, lenta e perigosa devido ao desiquilíbrio das cargas e da vegetação molhada com a chuva engrossando. Chegaram à meia noite no “Parque dos Bois”, encontrando abrigo debaixo de uma enorme laje, onde bem espremidos ficaram apenas com a cabeça de fora e a inclinação do paredão protegendo da chuva e do vento. Trocaram as roupas molhadas por outras secas e ficam assistindo a chuva com o tempo abrindo e fechando seguidamente.

 

Dormem pesadamente até o dia clarear por completo e assistem o movimento na Estação durante o desjejum. Ao separarem o material de escalada encontram a segunda lanterna de carbureto, mas constatam que uma das alças da mochila se tinha esgarçado contra as pedras. Levariam apenas o necessário; um cantil com ½ litro d’água, algumas bananas, grampos, parafusos e grampos de olhete, dez ao todo, uma marreta com um cabo extra, óculos de proteção, canudo para assoprar a poeira dos furos e sugar água das poças, duas cordas de sisal e mosquetões. O material restante ficou enrolado num plástico debaixo da pedra.

Após breve parada atrás das moitas, o Tarzan fica animado e parte para a parede encontrando alguns grampos mal instalados a direita em que com um pé pisa no grampo e com outro se apoia na parede oposta. Segue até um grampo de olhete onde fixa um mosquetão e prossegue até a árvore na base da chaminé. Puxa a corda com a mochila e o Vita sobe pela corda só com as mãos, passando por muitas taquaras. Alcançam a primeira pedra entalada que superam sem dificuldade, mas a chaminé começa a estreitar. Ultrapassam um grampo sem olhete e prosseguem sem dificuldades pela extensa chaminé que segue estreita no fundo e alargando nas bordas, mas a mochila fica presa e o Vita precisa descer até a pedra para desengatar.

A chaminé estreita no fundo e larga nas bordas é considerada difícil até hoje pelos escaladores que frequentam o Marumbi.

A segunda pedra entalada de longe parecia estreita e afiada e a terceira é pequena e redonda, depois a quarta é pouco maior e finalmente a quinta na base do “Y”, muito complicada, que o Tarzan venceu por fora, mas com jeito e calma o Vita passa por dentro.

Base da Y, atualmente possui chapeletas novas além de ser possivel usar equipamentos móveis.

O Vita começa a guiar em direção a um parafuso e finalmente encontra um confortável platô para descansar. Já se avistava o último grampo batido pelos irmãos Curial, mas a fenda é estreita e vai requerer muito esforço para ultrapassa-la. No “Y” seguiram pelo braço da esquerda porque avaliaram que o da direita era muito raso e talvez só muito adiante seria exequível. Era outra época, outros equipamentos, outra técnica e já é impressionante o que faziam com os parcos meios que dispunham.

Tarzan acha que instalando cinco grampos se resolve o problema. Vita descansa empoleirado sobre o penúltimo grampo com os pés doendo e o xinapau, espécie de sapatilha com solado de sisal, em frangalhos pela fricção contra a pedra. O local é muito exposto e passado o último grampo começa o trabalho duro. Estão muito cansados e a sede os atormenta há horas.

O Tarzan dá continuidade a um furo pré-existente, mas a rocha se esfarela e inicia outro para fixar o grampo de olhete. O Vita sobe com apoio moral em moitas de capim até a base de uma pequena fenda, mas sem encontrar ângulo para usar a marreta, instala um parafuso com a mão esquerda que permitiu erguer o corpo e ficar na vertical.

O primeiro subia até o obstáculo seguinte, puxava a mochila e prosseguia enquanto o segundo subia em simultâneo desentalando a mochila. O Tarzan bate um grampo com olhete e prende o mosquetão, mas ao chegar na posição, o Vita, descobre que perdeu seu mosquetão na passagem abaixo. O sol inclemente e a sede atroz produziam efeitos devastadores na capacidade de concentração, só conseguiam pensar em procurar por água. Estavam extremamente desidratados, cansados e sonolentos.

Tarzan concentra suas derradeiras forças para cravar um último grampo sem saber o que os aguardava adiante devido a inclinação da parede. Caso fosse favorável teriam feito a conquista, caso contrário abandonariam a parede e retornariam derrotados. Puxa a corda e nada acontece porque a ponta da grossa corda de sisal se prende numa fenda vinte metros abaixo. Tentam inutilmente soltá-la de todas as formas imagináveis e nenhum dos dois encontra vontade ou forças para descer. Amarrando uma ponta da corda reserva a cintura e as mochilas na outra ponta, o Vita sobe abandonando a corda principal. Chegando próximo ao Tarzan sente um tranco e também a segunda corda com as mochilas se entala.

Ambos têm, em simultâneo, um ataque de raiva na parede. Na mão apenas o cantil vazio levado fora da mochila na esperança de encontrar alguma poça d’água de chuva. Respiram fundo e abandonam as cordas entaladas, precisavam ao menos ver a que distancia estavam do fim. Seguem agarrando frágeis moitas de capim e algumas poucas taquaras isoladas. A inclinação amaina e finalmente alcançam o mato ainda dentro da fenda do “Y” que se estreita cada vez mais, mas agora haviam tantas hastes de taquaras para agarrar que até atrapalhavam o avanço.

Transversal da P3 para o Parque dos Bois

As mãos doloridas, as pernas inteiramente esfoladas e os dedos aflorando das alpargatas destruídas, mas nada disso interessava, só pensavam em encontrar água. Atacaram todos os caraguatás que encontravam, sugando com o canudo sua água apodrecida e cheia de insetos mortos. Nada mais importava. Subiam sedentos, mas subiam, o Tarzan a frente rasgando taquara. As 16h00, debaixo de sol e calor fortíssimo quando atingem um belíssimo platô com vistas panorâmicas e pouco depois encontram a picada. O Vita se detém marcando a saída do mato já pensando no retorno enquanto o Tarzan urra de júbilo por chegar ao cume da Esfinge. Assinam o livro de cume e desmoronam no chão.

A face norte da Esfinge finalmente fora conquistada. A euforia era tanta que por instantes até esqueceram suas mazelas, mas as desgraças são insistentes. A fatiga extrema os fez relaxar ao sol inclemente sem nenhum remorso, descansando os músculos e viajando com a mente. Para ficar perfeito só lhes faltava água e comida. Tinham alucinações pensando em água, beberiam todo o rio ao mergulhar a cabeça na água. O barulho do vento passando pela vegetação os lembravam de cachoeiras e já haviam sugado toda a água podre dos caraguatás. A urgência de água os fez vencer a indolência. Voltar pela trilha resolveria todos os problemas imediatos, era tentador, mas e depois? Quando teriam vontade e forças para voltar e resgatar as mochilas com os equipamentos? Decidiram por desescalar a fenda.

Subir solando foi tenso, mas descer escorregando de costas para o vazio ou de bunda olhando o nada foi insano. Das sapatilhas xinapau com solados de sisal pouco restava e os dedos já saltavam fora pelos buracos. Escorregar pela corda de sisal toda cabeluda com as mãos nuas era um martírio, mas voltar a subir cinco metros para desentalar estava fora de questão, melhor desescalar. A sede atormentando, o corpo todo suado, os joelhos esfolados, as costas lixadas no contato com a parede e para acabar; escurecia rapidamente.

No “Y” desceram um primeiro lance de rapel, mas a experiência não foi nada boa. A corda não deslizava pelo corpo e na camisa ensopada de suor. Naquela época não conheciam a cadeirinha e o rapel era praticado com a corda deslizando pelo tronco e cintura. Seguiram com as mochilas pendulando numa das pontas da corda com a outra amarrada na cintura queimando a pele da barriga e mesmo assim a maldita corda não parava de se prender nos mais insólitos lugares. Noite escura com as lanternas de carbureto queimando dentro da fenda enquanto ao longe as luzes da estação brilhavam na escuridão por detrás do Abrolhos. Para baixo pouco conseguiam iluminar e o tato fazia toda a diferença, mas desciam rápido. Cada vez mais rápido.

No “Parque dos Bois” correram para resgatar a mochila com o cantil que até amenizou a agonia, mas matar a sede de fato só muito mais tarde na “Torneirinha”.

Croqui feito por Vitamina

História verídica extraída dos “Diários do Vita” em tradução livre.

Fotos de 27/05/2022 por ocasião da regrampeação da Fenda “Y”

 

 

Compartilhar

Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

3 Comentários

  1. Rafael Luiz Grando em

    Sensacional! Insano de fato! Muitas gargalhadas aqui… Não sei o que deve ser melhor: essa história contada pelo próprio Vitamina ou escrita pelo grande Fiori. Só me vêm à mente aquela expressão: “desgraça pouca é bobagem!”. Mas afinal, em que ano colocaram um livro de cume lá? Esse pessoal era brabo mesmo kkkkk

  2. Julio Cesar Fiori em

    Muita gente tem esta mesma curiosidade; Pq “tradução livre” dos diários do Vita? Primeiro pq os diários foram escritos apenas para o Vita relembrar de forma que para entender o q esta escrito nas páginas dos diários é preciso antes conhecer e decifrar o próprio Vita. Em seguida é preciso conhecer as raízes da língua portuguesa e expressões a muito em desuso q até o google desconhece e também um pouco de latim vulgar. Mas não é tudo, os fatos narrados não obedecem a estrita lógica cronológica e estão dispersos por várias páginas em meio a pensamentos, planos, correções e divagações. Não é fácil, mas é gratificante e instrutivo.

Deixe seu comentário