A mítica travessia Alpha-Ômega

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Idealizada na década de 60 pelo lendário montanhista paranaense Vitamina (Henrique Schmidlin), mas conquistada somente nos idos de 90 pelo Máfia (Paulo César Souza) e o Dalinho (Dálio Zippin Neto) a Alpha-Ômega recebe este nome por percorrer a Serra do Marumbi do começo ao fim.

Neste trajeto, que totaliza cerca de 20 km, a travessia passa pelos cumes de mais de uma dezena de montanhas, terminando no Conjunto Marumbi, cujo ponto mais alto, o Olimpo, foi atingido em 21 de agosto de 1879, o que para muitos marca o início do montanhismo no Brasil.
 
Não bastasse a complexidade de subir tantas montanhas em um trajeto tão curto, parte da travessia está inserida em uma área de acesso proibido do parque estadual ali localizado, o que faz com que seja pouquíssimo frequentada e, por consequência, o deslocamento na mata é bastante complexo, com diversos trechos sem qualquer resquício de trilha.
 
Não ouso compará-la com as “megatravessias” Alpha-Crucis e Transmantiqueira, mas todos estes ingredientes supracitados fazem da Alpha-Ômega uma das travessias mais difíceis do Brasil. Sinceramente, não fiz ainda a Serra Fina, mas pelos relatos de alguns conhecidos que já percorreram as duas trilhas, a travessia paranaense parece ser mais complexa.
Eu precisava experimentá-la. O sentimento era tal como aquele descrito em uma das obras de Jack London:
 
 “Do fundo da floresta vinha o som de um chamado, e todas às vezes
que o ouvia, misteriosamente penetrante e irresistível, sentia-se
forçado a voltar as costas à fogueira e à terra batida e mergulhar
na floresta, mais e mais, sem saber para onde ou por quê…”
 
Foi com esse espírito que eu e o Rodrigo, também integrante da equipe da Terra Média Trekking, nos encontramos no domingo à noite em Joinville (SC) e as 07:30 da manhã de segunda-feira (10/08) partimos para o Paraná em direção ao Morro do Canal, onde inicia a empreitada.
 
 
Dia 01 – Do Canal ao Sem Nome.
 
A civilização nunca se vende barato e sabendo do plano de fuga, nos fez prisioneiros por cerca de uma hora na BR 376 por conta de um acidente. Somente por volta das 10:30 chegamos na fazenda localizada na base do Morro do Canal, local que conta até com uma lanchonete para servir os visitantes. Ali pagamos R$ 10,00 para deixar o carro e quinze minutos depois estávamos iniciando a caminhada.
 
O Canal é muito frequentado, portanto, sua subida é bem demarcada, contando inclusive com escadas e cordas de auxílio nos trechos inclinados e percorridos sobre rochas. Assim, após uma hora atingimos o topo da montanha e, sem perder tempo, seguimos em direção ao Vigia, nosso próximo cume.
 
Na AO, diferente de muitas outras travessias, os trechos entre cada cume não seguem por trilhas totalmente consolidadas ou locais de fácil navegação como cristas ou campos de altitude, mas sim percorrem pequenos vales úmidos de vegetação fechada. Por isso, de forma mais ou menos intensa, cada baixada é um desafio à parte. A primeira delas, entre o Canal e o Vigia, tem um aditivo: uma rocha com uns 12 (?) metros de altura e inclinação de praticamente 90 graus. Ali há uma corda para realizar a descida, mas, caso não aguente o peso do próprio corpo nos braços, a queda pode ser grave.
 
As 12:45 alcançamos o cume do Vigia, uma rocha que se sobrepõe a vegetação e permite uma vista única da represa Piraquara e de parte da cadeia de montanhas que percorreríamos. Ali almoçamos antes de continuar em direção ao Ferradura. Pra quem não costuma fazer travessias, recomendo muito carregar alimentos prontos para o meio-dia, assim não se perde tempo cozinhando e o corpo não esfria. Nós levamos salame e provolone defumado e, com uma massa de Rap10, fizemos uma espécie de “wraps”.
 
Logo após o Vigia perdemos uns 10 minutos para achar a trilha que descia o vale por entre algumas rochas, mas nada que prejudicou o rendimento. As 14:45 chegamos no Ferradura e, sem parar, seguimos ao Carvalho (também conhecido por Negro). Nessa parte do trajeto há uma escalaminhada/escalada de baixo grau pelo leito seco de uma cascatinha (seco no sentido de não correr água, mas a rocha estava completamente umedecida). Pelos riscos envolvidos chegamos a pensar que a trilha não seguia exatamente por ali, mas sim contornava pela lateral. Tentei uma investida pela esquerda, por um caminho entre as rochas, e ao pisar no solo/serrapilheira o chão cedeu e enfiei a perna numa greta – definitivamente não era por ali.
 
Voltamos e vencemos a passagem da cascatinha e chegamos ao cume da montanha as 16:10 horas. Em algum ponto na parte superior do Carvalho há uma trilha que segue até os destroços de um avião que se chocou contra a montanha em 1967, mas nem tentamos procurar nada e seguimos nosso rumo. Descemos e as 16:45 chegamos em uma boa área para acampamento no fundo do vale, todavia, como ainda estava cedo, decidimos tocar em direção ao Sem Nome. Já com sinais de cansaço depois de apanhar da vegetação (especialmente taquaras) o dia inteiro, caminhávamos sem nos importar com os arranhões e rapidamente superamos o desnível desta montanha e tocamos vale abaixo outra vez. As 17:40, optamos por parar.
 
Em montanhas, dependendo do seu planejamento, dormir cedo pode ser um problema, te levando a acordar de madrugada e ficar “mofando” na barraca. Com o cansaço acumulado, por vezes pode ser difícil se manter acordado, por isso, levei na mochila cinco dados para jogar algumas partidas de general e passar o tempo. Após estar ganhando de dois a zero e tomar uma virada com um general do Rodrigo na última jogada, decidi que, de fato, era melhor dormir. Mal sabia eu que esse azar era um sinal…
 
– Cumes atingidos no dia 01: Canal, Vigia, Ferradura, Carvalho e Sem Nome.
 
 
Dia 02 – Quando tudo dá errado
 
Acordamos cedo no dia seguinte e, após um rápido café da manhã sem café, desmontamos o acampamento e seguimos em frente. Aqui faço uma pausa para pedir desculpas a você leitor pelas informações repassadas de agora em diante. Eu tinha a intenção de escrever um relato bem detalhado sobre o tempo gasto na travessia, mas tudo foi “morro abaixo” por conta dos ocorridos neste segundo dia.
 
Durante o primeiro dia de travessia, por diversas vezes o mato é fechado na altura do tronco e cabeça, mas o rastro junto ao chão é bem demarcado. Além disso, há fitas que auxiliam na navegação. Porém, à medida que penetramos na serra, mais disfarçada é a trilha e esporádicas são as sinalizações. 
 
Avançamos em um bom ritmo por entre rochas e gretas até o topo do Mesa e transpomos com rapidez a sequência de cumes do Alvorada. Porém, logo após a descida do Alvorada 2, entramos em um vale onde a navegação se tornou bastante complexa. Passamos horas sem encontrar vestígios de trilha e com o GPS apresentando problemas para triangular satélites. Ou seja, estávamos perdidos e sem rumo…
 
Assim o foi praticamente durante aquela tarde inteira. O cansaço psicológico começou a bater, e as coisas pareciam não evoluir, por isso, acabei deixando de anotar nossos avanços. Contornamos por diferentes lados um aglomerado de rochas com profundas gretas na tentativa de encontrar o caminho; até investimos por entre as pedras e nada… Para ajudar, uma chuva fraca começou a cair junto do anoitecer, ainda assim insistimos em seguir com as lanternas ligadas durante cerca de uma hora, quando conseguimos algum progresso na direção correta.
Pouco depois das 19 horas, já sem enxergar muita coisa, encontramos uma minúscula área plana onde a barraca mal cabia, mas decidimos por acampar ali mesmo e, descansados, seguir nossa busca no dia seguinte.
 
– Cumes atingidos no dia 02: Mesa e Alvorada (2, 3 e 4).
 
 
Dia 03 – Uma luz no topo da montanha
 
Ao amanhecer, por um breve momento o GPS respondeu e conseguimos confirmar que havíamos caminhado no rumo certo na noite anterior, bastava seguir aquela direção. Assim o fizemos e, buscando traços de passagem humana, fossem marcas de facão ou indícios de pegadas ou apoio de mãos, após cerca de 30 minutos voltamos a avistar fitas amarelas bastante esparsas amarradas nas árvores.
 
Dali em diante criamos um ritual de passar a mão sobre todas as fitas que aparecessem. Me senti em um mapa do Super Mario World, catando as moedinhas que apareciam durante cada fase para conseguir mais vidas ou, no nosso caso, alívio e estímulo para continuar.
 
Superstição a parte, nosso rendimento voltou a melhorar depois dali. Ao acordar havíamos traçado por objetivo reencontrar a trilha e chegar nos campos a base do Espinhento até o meio-dia, contudo, as 11:45 este ponto já havia ficado bem para trás – estávamos no cume do Pelado, onde almoçamos.
 
Descansando ali fiz uma triste constatação: após três anos preservando tão bem os meus pés em caminhadas por diferentes terrenos, em dezenas de montanhas e algumas viagens pela América do Sul, minha fiel bota Nômade (hoje Vento) Finisterre, começou a apresentar problemas com descolamento do solado. Seria o “ômega” o ponto final da travessia e a aposentadoria desta guerreira?
 
Seguimos então em direção aos picos Ângelo e Leão (ponto culminante da Alpha-Ômega), ambos ligados por vegetação campestre, mas, antes de alcançá-los superamos outro caminho muito rochoso rodeado de profundas gretas, com diversos pontos onde a caminhada segue sobre uma fina camada de solo composto basicamente por raízes e serrapilheira acumulada com o passar dos anos. Outra vez o chão cedeu sob meus pés e enfiei a perna até o joelho em um buraco… As 16:20 estávamos neste segundo cume, o que consideramos suficiente para aquele dia. Armamos acampamento.
 
Daquele ponto alto fomos presenteados com um belo pôr do sol, com visão privilegiada desde a represa Piraquara até o Marumbi, com o Pico Paraná ao fundo (montanha mais alta do sul do Brasil). Concluir a Alpha-Ômega começava a se tornar uma realidade.
 
– Cumes atingidos no dia 03: Pelado, Ângelo e Leão.
 
 
Dia 04 – Finalizando Vitaminados!
 
O objetivo deste dia era chegar até o cume do Olimpo (ponto mais alto do conjunto Marumbi) até as 14 horas e dali seguir até a estação de trem para, finalmente, tomar o transporte em direção a Morretes e saborear a conquista com um copo de cerveja.
 
Antes disso teríamos que baixar mais um vale e passar pelo cume do Boa Vista, o que é feito por meio de uma trilha bastante íngreme, se puxando em capim de altitude. Chegamos lá mais rápido do que o esperado e dali em diante seguimos pela crista das montanhas em direção ao Olimpo, trecho este um tanto vertiginoso onde se caminha contornando formações rochosas com exposição a quedas perigosas e repleto de escalaminhadas que dão uma canseira nos braços. Todo o cuidado é pouco!
 
As 11:45 almoçávamos já no cume do Olimpo, de onde começaríamos a descer por uma trilha muito íngreme, mas com escadas e cordas para auxiliar nos trechos mais delicados. Havia a possibilidade de seguir até outros cumes do Marumbi, mas já estávamos satisfeitos com o sabor de terminar a mítica Alpha-Ômega e optamos por tomar rumo diretamente para a estação de trem, ponto este que alcançamos as 13:40.
 
Consultando um dos trabalhadores do local descobrimos que o trem em direção a Morretes passava somente às 11 horas da manhã, ou seja, já era… Sendo assim, tivemos que seguir adiante por cerca de 6 km até Porto de Cima, de onde conseguimos chamar um táxi (R$ 35,00).
Conversa vai, conversa vem, acabamos descobrindo que o Mário, o taxista, era amigo muito próximo do famoso Vitamina e fez questão de nos colocar no telefone com ele para contarmos sobre a aventura. Com toda a certeza, não havia maneira mais completa de encerrar essa epopeia senão esta…
 
– Cumes atingidos no dia 04: Boa Vista e Marumbi (Olimpo).
 
 
Considerações finais:
 
É um tanto difícil descrever em um relato, sem parecer sensacionalista, os diversos desafios de uma travessia tão versátil quando a Alpha-Ômega. Fotos poderiam expressar melhor, mas, infelizmente durante o percurso mantive a câmera na mochila para evitar danos ao equipamento e, com o desgaste da caminhada, quase não me preocupei com isso. 
Por último, queria apenas deixar registrado meu sincero agradecimento ao Getulio Vogetta, exímio montanhista e sempre educado e prestativo no repasse de informações sobre a Serra do Mar paranaense. Sem a sua ajuda, a AO continuaria sendo somente um conto literário pra mim. Obrigado!
 
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4 Comentários

    • Marcia Silva Martins em

      Bom dia, Pedro!
      Sempre muito bom ouvir seus relatos de travessia!
      Você transmite seus conhecimentos técnicos sempre com uma ótima didática, fazendo com que o leitor/ “expectador” dos vídeos no YouTube, se transporte para junto de você, saboreando, anonimamente, suas vitórias e vivenciando, também, os perrengues.
      Desde muito jovem, sou apaixonada por montanhismo, embora, efetivamente, só tenha feito um único rapel nestes meus 62 anos de vida, num curso de sobrevivência na selva, feito há quase 30 anos.
      Tão logo eu consiga adquirir os equipamentos básicos necessários para pernoite em trilha de montanha, entrarei em contato contigo para orientação sobre as possibilidades de trilha, considerando minhas limitações, claro!
      Abração
      Marcia Martins
      13 9 8138 6195 whats – Peruibe- SP

  1. Muito bom! Eu, trilheiro iniciante, já estou aqui olhando pra minha cargueira, esperando o dia que esteja preparado o suficiente pra encarar uma dessas.

    Parabéns pelas conquistas!

    Pra mim, ser trilheiro é isso, desafiar corpo e mente

    @rafa.santos13

  2. É um desafio e tanto. Foram 3 dias, duas noites, sendo que na última andamos 24 horas a fio, 5 kg a menos ao final da aventura. Quando finalmente chegamos na Vila do Marumbi, deitei pra descansar tive cãibra até nas orelhas. Infelizmente no último dia o tempo fechou, e com meus amigos descemos o Pelado atravessando o Marumbi debaixo de muita chuva e neblina, sem visao nenhuma. Mas valeu cada minuto.

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