Domingão se avizinhando nestes tempos restritivos de pandemia e a última coisa que me passou pela cabeça foi permanecer em casa, de quarentena, vendo mais um belo dia se diluir bem na minha frente. Nestes quase quatro meses de isolamento forçado aprendi que é possível sair sim, mas obedecendo sempre um rigoroso protocolo de higiene e limpeza. Isto é, ao invés de ir ao mercado, caixa eletrônico ou algum outro serviço essencial ia pro mato. Simples. E pra mim pernar sozinho no mato é mais que uma atividade outdoor qualquer. É algo essencial á minha saúde, seja ela física ou mental.
Bom, do rolê em questão não teve muito o que discutir uma vez que já ensaiava faz tempo retornar á Pedra da Seriema, local que não pisava a mais de década. A dita cuja consiste num enorme monólito rochoso situado no alto da Serra do Itapety, na cota dos 1110 metros, em Mogi das Cruzes. O detalhe deste atrativo é que é basicamente desconhecido e pouco visado por montanhistas, mesmo estando relativamente próximo de outro mais badalado, a Pedra do Lagarto. Desconhecido por andarilhos, mas não por caçadores ou extrativistas ilegais, diga-se de passagem. E meu interesse em voltar lá era puramente no sentido de testar minha memória e avaliar meu senso de navegação, uma vez que pelo pouco que me recordo da vez em que estive na Pedra da Seriema não havia trilha até lá e havia que se embrenhar no mato até ela. Arrumei então minha mochila e lá fui eu.
Com viagem bem tranquila desembarquei na última estação da Linha Coral da CPTM por volta das 10 horas, situada na cota dos 710m. Dali simplesmente cruzei a rodoviária, a rotatória e uma simpática pracinha até finalmente cair na Av. Antonio de Almeida, sempre acompanhando a sinalização “Bairro Rodeio” ou “Jd. Maricá”. No caminho, em meio aquele dia de céu azul, poucas nuvens e sol a pino, a paisagem logo revela a elegante silhueta da Serra do Itapety esparramando-se por toda extensão daquele quadrante, recortando o horizonte com suas abauladas escarpas de leste a oeste. Aquele dia prometia.
Após cruzar a ponte sobre o Rio Tietê e a rotatória da Av. Perimetral, tangencio o pacato Bairro Rodeio que parece recém levantar naquele horário. Área predominantemente residencial, me mantenho sempre pra nordeste até que o asfalto termina e dá lugar a precária “Estrada Velha do Lambari”, antiga via de conexão da cidade com o outro lado da serra. Uma vez nesta empoeirada via de chão, a exatas 10h30, basta acompanhá-la até o final, ganhando altitude aos poucos conforme as botas pisam o chão.
O sol brilha forte e o suor já escorre farto pela ponta do nariz quando minha ascensão se dá no agradável frescor da floresta, que me envolve num misto de mata nativa, ciliar e reflorestamento. Ainda lembro quando este caminho, hoje largo e bem batido, era uma simplória e estreita picada. Hoje circulam nele até veículos com relativa frequência, tanto que no caminho um tiozinho num fusca parou bem do meu lado. “Tô indo até a primeira porteira! Que carona?”, disse ele. Incrível como quando a gente precisa mesmo carona ela não aparece, agora quando ela é desnecessária aparece aos montes. E claro, agradeci a oferta ao senhor, dizendo que a ideia era seguir a pé mesmo ao alto da serra. Se fosse na volta…
A subida então prossegue tranquila e desimpedida naquela manhã ensolarada, quando subitamente tropeço com uma placa indicando os limites da Reserva Botujuru, do lado duma bifurcação que dá na porteira mencionada pelo tiozinho e que nada mais é uma propriedade particular. Ignoro esta via e me pirulito pela vereda, que penetra serra acima logo após a supracitada placa da reserva. Imediatamente reparo que a trilha se encontra totalmente roçada e de fácil trânsito, bem diferente da última vez em que ali estivera e onde tive que me digladiar com voçorocas de capim velcro pra conseguir subir. E tome subida interminável!
O trecho seguinte – e com maior declividade do trajeto, o tal “Paredão Boliviano” – além de bastante acentuado, escorregadio e com pedras soltas servindo de degraus, é facilmente vencido sem ajuda da vegetação ao redor, como noutras ocasiões. Mas logo depois a vereda nivela e tangencia uma curta picada que dá acesso a uma clareira, onde além de vestígios de fogueira existe uma oportuna bica, onde é possível encher os cantis com o precioso líquido. Olho o celular e vejo que são apenas 10h45! Mas daqui pro alto já não falta muito não.
Minha rota agora se mantém em nível, ladeando uma enorme área de várzea, até tropeçar com uma ramificação pela esquerda, que ignoro, e outra logo adiante onde tomo a via da esquerda, que continua subindo o restante da serra. Evitar seguir reto, pois este caminho retorna ao pé da serra pelo ombro serrano vizinho, via Trilha do Pinheirinho, descendo até a sede da Reserva Botujuru, antiga Faz. Rodeio. E lá o pessoal pode implicar com a presença de visitantes. Falo por experiência própria. Fica dado o aviso.
Pois bem, uma vez nesta ramificação da esquerda não tem mais erro, pois dali o caminho dá seu estirão final através dum caminho bem escorregadio, empinado e coberto de limo, demandando atenção redobrada. Capim velcro surge pra se agarrar a nossa pele assim como um ou outro tronco no caminho, obstáculos dos quais é fácil se desvencilhar ou simplesmente contornar. Até que enfim caio num cruzamento bem no estreito selado que tanto interliga cristas como dá acesso ao outro lado da serra. Aqui decido tomar o ramo da direita, rumo leste, bem mais roçado que os demais. A via então prossegue apenas mais um pouco pela crista, em suave ascensão, quando os primeiros degraus e aderências rochosas da Pedra do Lagarto surgem á minha frente. Pronto.
E assim, por volta das 11hrs, piso pela enésima vez nos 1090m das ásperas aderências da Pedra do Lagarto e que agora faz parte da Reserva Botujuru, onde me brindo com uma breve parada pra descanso. Apesar de pisar aqui incontáveis ocasiões, ainda me encanto com a bela panorâmica que este mirante proporciona, privilegiando basicamente o quadrante norte e voltada para o Vale Paraíba do Sul. Lixo? Por incrível que pareça, nenhum. Turistas? Apenas este que vos fala, acredite se quiser.
Pois bem, fiquei na larga e áspera lajota do Lagarto o suficiente pra retomar meu fôlego, bebericar alguns goles de água e prosseguir minha jornada. Dali desci ao sopé da pedra, mais especificamente na outra grande rochedo achatado que lhe serve de apoio, onde vistosas bromélias dividiam espaço com restos de fogueira recente. Ali desci até os limites da pedra com a mata, buscando algum vestígio de trilha, até que encontro um rabicho do antigo caminho se pirulitando pra floresta, na direção nordeste. Pronto.
Mergulhei então na espessa e frondosa floresta alocada bem na frente da Pedra do Lagarto, bordejando aquela íngreme encosta sempre na direção supracitada. Mas não tarda pra vereda sumir de vez e me obrigar a prosseguir o resto do caminho na raça, afastando o mato á minha frente com ambas mãos. E assim fui vencendo terreno lentamente em meio aquele caminho agreste, desviando de voçorocas de taquarinhas e muito, mas muito capim velcro. Sim, se a rota até o Lagarto estava livre e desimpedida o mesmo não podia ser dito da rota pra Seriema, razão pela qual ganhei de brinde trocentos arranhões e cortes nos braços e pernas.
Mas devagar e sempre fui avançando naquele íngreme contraforte serrano, sempre tocando pra nordeste e buscando não perder demasiada altitude, me mantendo sempre na mesma cota altimétrica. Creio que só precisei perder altitude pra contornar dois enormes matacões cobertos de espinhentas bromélias e capim-navalha. Mas todo aquele esforço foi recompensado ao alcançar um trecho da encosta onde pude avistar, em meio a espessa vegetação, a base da pedra almejada alocada num cocoruto próximo, porém mais destacado daquele contraforte serrano.
E assim, de forma morosa, porém constante, pouco antes do meio dia pisei no sopé do cocoruto avistado onde reencontrei algum vestígio da trilha anteriormente perdida. Não que ela agora fizesse diferença, mas porque de nada me servia, pois já me encontrava do lado do tal imponente rochedo que conheci como Pedra da Seriema. Na verdade o conjunto é composto por dois grandes monólitos que se projetam encosta acima feito dois enormes mísseis de granito, grudados pelas laterais formando uma estreita grota entre eles. Na base há um espaço bem plano capaz de acomodar uma barraca, lugar este ocupado já por um bivake artesanal, além de muita tralha de caçador espalhada. Um isopor continha mantimentos, panelas, talheres, enormes facões e alguma roupa bem velha. E enfiado nos estreitos buracos da pedra havia um velho colchão, espremido entre pequenas toras de madeira, provavelmente pra alimentar a fogueira á noite.
Depois de uma boa bisbilhotada na base, inclusive uma enorme fenda entre as pedras chamada de “Buraco do Tatu”, resolvi subir uma das pedras, isto é, a mais “escalaminhável” delas uma vez que a outra só é possível chegar no alto com técnicas de rapel. Pois bem, e lá fui eu escalando a face rochosa da pedra menos inclinada, me apoiando tanto em agarras como em galhos firmes do arvoredo em volta que teimavam em cair sobre a pedra. E assim, entre um pêndulo e outro, finalmente ganhei o alto dos 1110m dum dos rochedos do conjunto, bem acima da copa das árvores daquele setor da encosta.
Como era de se esperar, o topo é menor e menos espaçoso que o Lagarto, porém é bem mais alto e com visual arrebatador muito mais amplo que seu ilustre vizinho réptil. Sem nada bloqueando a vista, a paisagem é larga e os horizontes do setor norte abrem-se totalmente: emoldurados por uma montanha esmeralda com detalhes cor-de-rosa dos ipês, enxergo vestígios da urbe mojiana ao sul; as corcovas florestadas do restante da crista serrana, a oeste, além das antenas do Pico do Urubu espetando o firmamento; e a horizontalidade de Santa Isabel e Igaratá quebrada pelas Serra de Piracaia e do Itaberaba, recortando o horizonte ao fundo, ao norte. E assim, empoleirado no alto da pedra com vista tão magnífica, me brindo não apenas com um merecido descanso como uma delicioso lanche, enquanto no céu um gavião reclama ruidosamente da minha intromissão em sua vizinhança!
Mais que revigorado e depois de umas trocentas selfies, resolvi que era hora de zarpar coisa de 15 min empoleirado naquele imponente cocoruto de granito. Incrivelmente, descer dali foi mais fácil que subir, uma vez que bastava se pendurar nos galhos do arvoredo ao lado que eles mesmo se curvam o suficiente pra perda de altura se tornar segura, até finalmente pisar novamente em chão firme. O mesmo pode ser dito de retornar pro Lagarto, que me parece bem mais rápido e menos complicado que na ida, tanto que lá pisei por volta das 13 horas, início de tarde com sol a pino, de onde me mandei sem pestanejar serra abaixo, de volta pra Mogi! Até lá, a algazarra promovida por saguizinhos saltitando no arvoredo até me fez esquecer o ardor do corpo ralado em contato com o suor, coisa que só abrandou mesmo após um longo e demorado banho já no conforto do lar.
Finalizando mais um relato, fica aqui a indagação do porquê da pedra levar o nome de uma ave típica de cerrado ou de terrenos mais abertos ou descampados, coisa que aquela cumieira serrana dificilmente se enquadra. Eu chamaria o lugar de Pedra do Caçador, por sinal bem mais apropriado. Mas independente de nomenclatura, fica também o registro que a Pedra da Seriema é um programa mais rústico e técnico que a tradicional Pedra do Lagarto. Sim, pois mesmo estando quase do lado do atrativo mojiano, a ausência total de trilha faz com que o andarilho saia totalmente de sua zona de conforto e literalmente mergulhe na mata afim de chegar na pedra. Isso sem falar no desafio de testar o próprio senso de direção naquele breve, porém confuso trecho. Mas e daí? São exatamente estes pequenos perrenguinhos o legítimo tempero á aventura, e que pra quem gosta de mato sabe o quanto isso é restaurador. Física e mentalmente, pois afinal nestes tempos de pandemia é preciso também cuidar da saúde em todos os sentidos. Tanto física como mental. Senão a gente, que é do mato, pira…