Sem nada previamente programado me mandei novamente pra Pirituba atrás duma dica soprada pela amiga Priscila, que mora naquelas bandas, e dizia respeito a uma enorme área verde que tinha chance de se tornar reserva. Apesar de bem urbanóide, despertou-me a atenção a proximidade de casa, a existência duma pedreira, de trilhas na mata em meio a construções fantasmas abandonadas no tempo. Arrumei então uma tarde qualquer e lá me mandei conferir “in loco” esse provável Parque da Pedreira ou do Morro Grande.
Desembarquei lá pelas 11hr na estação Pirituba, pertencente a Linha Rubi da CPTM, e dali me mandei na direção nordeste tomando as vias do caminho, passando pelo Shopping Pirituba. Poderia ter tomado condução coletiva no terminal logo ao lado (no caso, qualquer latão escancarando “Morro Grande”) mas preferi seguir a pé mesmo pois tava bem disposto, meu destino não era demasiado longe e queria conhecer melhor aquelas bandas onde a Freguesia do Ó faz quase divisa com a Brasilândia. Existe também condução regular pra Morro Grande partindo do Terminal Lapa e do Metrô Ana Rosa. Bem, o transporte ideal fica a seu critério. Pra mim bastou apenas o trem da CPTM.
Num piscar de olhos caí na Av. Fuad Luftalla e toque por ela sem pressa, subindo pro norte. Durante o trajeto já começa a surgir uma encosta elevada verdejante por detrás do cinza urbanóide onipresente, e é pra lá que vou de encontro. Ao chegar no cruzamento onde tem um supermercado da rede “Dia”, desvio pra esquerda e subo pela Av. Elysio Teixeira Leite. Em tempo, a via em questão antigamente era conhecida como “Estrada do Congo” e ganhou o nome do dono da pedreira, pois era o único precário acesso ao então bairro do Morro Grande, tornando-a transitável pra que suas carroças levassem os blocos de pedra.
No final da subida alcanço uma rotatória e entro na rua Raimundo de Cunha Matos, cuja entrada serve de ponto final do busão Lapa-Metro Ana Rosa. Conforme adentro na via o borburinho da cidade some e a impressão que se tem é que o tempo parou meados do século passado, pois não apenas a paisagem muda como a tranquilidade e silêncio atípico toma conta. Num piscar de olhos me deparo com a entrada fechada da pedreira, onde numa placa parcialmente envelhecida e coberta de vegetação ainda se lê “Pedreira Anhangüera S.A – Empresa de Mineração Morro Grande”. No fundo avisto os paredões da pedreira, assim como tapumes, obras e várias outras placas anunciando alguma espécie de reforma. Pergunto pro guardinha de plantão o que é e responde que são obras do futuro Metrô que será ali instalado, mas que provavelmente só esteja pronto em 2027 pelo nível moroso com que o processo tramita.
Aqui é preciso um adendo da história do lugar, que por sinal é bem interessante. Na década de 30, iniciou-se intensa exploração da Pedreira Morro Grande pelo empresário Elysio Teixeira Leite, mas dez anos depois a britadeira foi desativada. Foi aí que o nordestino Tomás de Mello Cruz, filho duma família do ramo da tecelagem, casou-se com Dona Elza, filha de Teixeira Leite. Dessa união vingou a Tecelagem Santo Eduardo Tecidos de Algodão Ltda, que complementava os serviços prestados pela pedreira, que depois ganhou o nome atual, Anhangüera S.A. Isso trouxe desenvolvimento a Vila Morro Grande, que passou a ser habitada pelos operários, com direito até criação de pequeno comércio local, escola e plantação de café em torno da tecelagem. Com a morte de Teixeira Leite, Tomás de Mello assumiu o controle do império e tornou-se benfeitor da comunidade, construindo entre muitas coisas que a beneficiassem em todos os sentidos. Mas nos anos 80 a pedreira e a tecelagem pararam em definitivo, deixando apenas a enorme área abandonada no meio do bairro.
Pois bem, entre as benfeitorias que Tomás de Mello fez esta uma igreja e um charmoso cinema, que ainda se encontram de pé um pouco antes da entrada da pedreira e que merecem ser visitados. Sim, ambos locais estão fechados mas fuçando bem se encontram acessos pelas laterais. A igreja é grande e mesmo pichada, com paredes rachando e sem vidros ganha um certo ar gótico. Originalmente foi construída e dedicada a Santa Clara, com grandes vitrais e piso em desnível, de maneira que os participantes dos cultos tivessem ampla visão do altar, que ficava em destaque, elevado. O detalhe é que logo atrás do altar há uma enorme janela com vista maravilhosa do
Pico do Jaraguá.
Logo na frente está o cinema que, igualmente trancado, se acessa pela rua lateral e por uma trilha em meio ao mato. Restos de fogueira indicam que a galera deva fazer festinhas noturnas animadas no gramado de fora. Mas o interior do cinema se acede não pela porta (lacrada com cimento) e sim por rombos nas laterais. Logicamente que não entraria ali a noite e muito menos sozinho, pois de dia o local já dá medo por ser menos iluminado que a igreja. Os corredores e cubículos no interior estão bem degradados e com acúmulo de lixo dos visitantes eventuais. Mas o impressionante é realmente a sala de projeção, ampla e com nível superior. Tudo sem as cadeiras, claro. E pensar que aquele lugar exibia filmes todos os domingos pra comunidade, além da realização de outras atividades como, por exemplo, a apresentação da banda dos funcionários da antiga tecelagem. Sim, Tomaz Mello investia na formação cultural de sua pequena vila. Mas hoje tanto o cinema quanto a igreja são obras fantasmas, deterioradas pelo tempo.
Pois bem, após dar um visu nas construções e proibido de adentrar na pedreira pela entrada oficial, o jeito foi buscar um acesso alternativo, pelas laterais da propriedade. Retrocedi até pouco antes do ponto final dos busos e achei um vão entre o muro e um monte de entulho e lixo. Pronto, uma vereda nascia dali e tocava de encontro a igreja, inicialmente em meio ao mato pra depois sair num amplo descampado de capim baixo. A trilha é batida e se ramifica ora pra avenida logo abaixo, onde deve ter acesso por lá também, e se pirulita vale abaixo na direção da pedreira. Uns bodes pastando numa boa no caminho são únicas testemunhas da minha presença, por isso mesmo me mantenho bem alerta no caso de algum pepino.
Cruzo um bosque bem fechado, mas sempre indo de encontro a pedreira. No fundo do vale tem um correguinho de água límpida que corre pra oeste. A vereda desce um pouco mas depois aumenta de aclive, dando início a saída daquele vale mocado numa funda dobra serrana local. Daqui tem uma ramificação que evito, pois vai na direção da entrada da pedreira e decerto alertaria qualquer pulguento que por ventura la estivesse fazendo guarda. No final da vereda desemboco no aberto, num amplo campo de capim baixo onde encontro vestígios de fogueira e ossadas de equinos ou bovinos. Um tronco deitado do lado da fogueira indica ali ser point noturno de alguém, mas incrivelmente não há lixo algum.
Uma vez no descampado basta tocar na direção da pedreira, cujos paredões se avistam bem mais próximos, a nordeste. A picada se ramifica mas me mantenho na direção dos paredões e logo a vereda se torna uma precária estrada de chão. Logo adiante me vejo de cara com um alambrado que serve de divisória da propriedade onde estou da pedreira, mas vários rombos na parte inferior possibilitam o acesso que preciso. Em questão de segundos me deparo com os enormes paredões da pedreira, um belo e enorme lago que ainda não foi drenado, isso tudo cercado de enormes blocos de pedras, chão terraplanado e vários avisos eco-ambientais do poder público a ser ali construído. Sim, toda aquela belezura de área verde um dia dará lugar ao pátio da Linha 6 (laranja) do Metrô.
Perto dali, numa área com mato crescendo pelos lados, está o antigo maquinário da pedreira enferrujando lentamente ao ar livre. Escavadeiras e guindastes da americana Northwest apodrecem do lado de montes de britas ao invés de ser guardado como relíquias históricas. Relativamente perto dali, o que sobrou do prédio da antiga tecelagem igualmente está jogado ao Deus dará, nas mesmas condições do cinema. E lógico, a antiga e famosa plantação de café da comunidade operária foi abandonada, tomada por ervas daninhas. Tudo isso abandonado e sem ninguém. Ali, no meio daquela desolação, uma elétrica seriema foge da minha presença. Sim, uma seriema em plena Sampa!
Após uma rápida fuxicada e sentido calor daquele meados de tarde, me mandei pro lago da represa e dei um rápido tchibum pra me refrescar. E pensar que antigamente, no auge dos verões mais quentes, a população fazia dali seu balneário, onde não raramente ocorriam afogamentos. Mas no meu caso foi coisa apenas de entrar e sair, pois estava sempre em alerta pra não ser surpreendido por algum segurança ou cachorro fazendo sua ronda do meio-dia. Dali me pirulitei pras laterais da pedreira onde vi um caminho que a subia, como que fazendo um contorno em meio a mata. Caminho tranquilo e sem muita dificuldade de navegação. Cruzando um belo bosque de encosta que mescla mata secundária e eucaliptos, logo desemboco do lado dum muro que pela descrição do mapa corresponde ao ETEC ou CEU do Jd Paulistano.
Me mantenho sempre ladeando o muro e a vereda começa a fazer uma curva indo de encontro novamente a pedreira. Perdendo altitude suavemente e cruzando um belo bosque de eucaliptos, reparo que estou numa antiga estrada atualmente tomada pelo mato, mas visível pelo corte vertical na encosta. E em questão de poucos minutos desemboco num belo mirante no alto da pedreira, numa altura de 899m. Lajes e aderências rochosas dividem espaço com capim e alguma vegetação com bela vista tanto da pedreira, do espelho d’água esverdeado do lago e da horizontalidade geométrica da Freguesia do Ó e resto de Sampa, bem ao fundo. Pelas frestas na mata dos lados é possível avistar o Pico do Jaraguá e a Serra da Cantareira, nos extremos.
Depois dum merecido descanso retomo minha jornada, agora retrocedendo pela mesma vereda até uma bifurcação que tocava pro norte. Num piscar de olhos o caminho ladeia o muro e sai por um vão que dá, confirmando minhas suspeitas, no estacionamento do CEU do Jd Paulistano. No momento em que saio dali um trio de jovens adentra na vereda, dando sinais de que o mirante devia ser o lugar bastante frequentado pra molecada matar aula.
Dali basicamente contorno toda área da pedreira pelas ruas do seu perímetro norte, via “Estrada do Sabão”, sem maior dificuldade. Em sentido horário depois começo a tocar pro sul atentando pra vários outros acessos a pedreira pelo muro. Ou seja, adentrar no matinho ali não tem problema nenhum e deve ser algo bastante corriqueiro pro povo do bairro. Terminei finalmente caindo na tal Av. Fuad Lufthalla, onde refiz o caminho de volta à Estação Pirituba. Antes, logicamente, passei num mercadinho onde adquiri uma latinha e um salgado uma vez que neste rolê fui sem
mochila de qualquer espécie pois não houve necessidade. Fui apenas munido duma pochete, documentos, din-din e máquina fotográfica. Embarquei no trem por volta das 16hr rumo o lar, antes mesmo de pegar o horário do rush de final de dia, que costuma deixar os vagões parecendo latas de sardinha com gente saindo pelo ladrão.
Pesquisando posteriormente sobre a pedreira, a área realmente está abandonada a 30 anos e de fato houve um projeto de renovar o lugar, transformando-o num local de lazer à população. Chamava-se Parque Ecológico Sítio Morro Grande (ou Parque da Pedreira) cujo intuito era resguardar a mata remanescente em meio a trilhas, quadras, etc. Havia também intenção de preservação da história local, restaurando a Igreja e o Cinema tornando-os espaço culturais. Entretanto, a chegada da Linha 6 (Laranja) do Metrô à região deve dificultar essa proposta, pois as obras do pátio de manobras da linha podem ocupar uma parte considerável do terreno. O imbróglio ainda está no embate entre interesses da população e do poder público, que geralmente no final fala mais alto. Assim essa bela área da antiga pedreira, que ainda mantém uma majestosa área verde em seu entorno, corre o risco real de perder a chance de se transformar num parque público. No máximo, uma praça ecológica após a implantação do Metrô. E se a história da pedreira já estava quase sepultada, o desenvolvimento e progresso da cidade se encarregaram de jogar a pá-de-cal que faltava no sonho de Thomaz de Mello.