A “Torre Inca” de Cajamar

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A vasta região de reflorestamentos vinculada á Cia Melhoramentos e popularmente conhecida como “Reflora”, situada entre os municípios de Cajamar e Caieiras (SP), é repleta de antigos fornos de cal esquecidos pelo tempo. Vestígios duma época quando a produção de cal trouxe desenvolvimento à região, no início do século 19, alguns deles são bem evidentes e estão em relativo bom estado de conservação. Outros, no entanto, estão perdidos em meio à mata em locais de difícil acesso. Destes últimos destoa um de beleza ímpar chamado de “Torre Inca”, assim nominado por estar tão pitorescamente coberto de vegetação que lembra um antigo templo pré-colombiano peruano. Depois dos “Fornos de Ponunduva” e do “Castelo de Caieiras”, este é o relato fiel duma chinelada de quase 26 km a “Torre Inca” de Cajamar, atrás dessa antiga relíquia cuja produção agitou intensamente os trilhos da “E.F. Perus-Pirapora”.

Torre Inca

“É o seguinte, a ´Torre Inca´ tá no meio da reserva! Você pega a via principal perto da Rodovia Bandeirantes na direção oeste e segue por volta de 5 km, aí fica esperto para um lago ou córrego a esquerda, que a trilha sai logo daí!”, foi o que me lembro vagamente da dica dada por um biker na minha última visita a “Reflora”, cerca de dois anos atrás. Depois disso fiquei com a ideia fixa de querer encontrar essa tal “Torre Inca”, da qual o biker falava com deslumbramento. Pra isso tive que decifrar essa antiga descrição verbal, tentando precisar a localização desse atrativo por meio de imagens aéreas, chegando a alguns possíveis locais em potencial de onde pudesse estar. Pronto, imprimi meu croqui e lá fui eu atrás desse “templo” conhecido por poucos do qual não existe relato nem ponto georeferenciado algum. Fui já ciente sabendo da real possibilidade de voltar de mãos vazias, sem encontrar nada, mas ao menos a chinelada valeria a pena por estar conhecendo um setor da Reflora novo.

Junto com o Celestino, única viva alma que topou me acompanhar na empreitada, saltou na Est. Perus por volta das 09h30min. O dia estava radiante, prometendo sol e calor durante todo período quando nos pirulitamos em direção à antiga fábrica de cimento Portland, atualmente utilizada por policiais do GOE e para prática de paintball. No entanto, nosso acesso foi barrado pelos seguranças alegando que já não era mais possível passar por ali pra chegar à rodovia. Surpresos com esta nova medida fomos forçados a contornar a fábrica pelo seu limite sul, isto é, por trás dela.

contornando a Portland

Retrocedemos então e fizemos isso, inicialmente tomando uma precária via asfaltada que ganhava a colina atrás da fábrica pra depois ganhar o pasto de sua encosta mediante uma trilha feita por bikers. Bem, pelo menos este breve desvio serviu pra conhecer as antigas instalações da Portland por outro ângulo.

Após a fábrica caímos novamente na rota tradicional, tangenciando algumas casas aqui e acolá, e logo deixando pra trás a charmosa Vila Triângulo, a antiga vila operária abandonada que já abrigou os operários da Portland. Tomamos então a vereda que acompanha os trilhos, cruzamos sob o movimentado viaduto da Rodovia Bandeirantes (SP-348). Me chamou a atenção este trecho estar com muito mato crescido, sinal que menos gente vem passando desde então, quiçá pela presença cada vez maior de indigentes adotando o viaduto (e arredores) como moradia. Logo, este trecho não recomendo cruzar sem companhia apenas por precaução.

No mirante da Pedreira

Do outro lado já se avista o enorme Morro da Pedreira e as serrinhas menores da Reflora, a noroeste, contrastando seus tons verdejantes com o azul impar do céu naquela linda manhã. O passo aqui se apressa ao passar por algumas casinhas de alvenaria, onde alguns cachorros podem vir incomodar, até desembocar num estradão maior. Tomamos então esta via maior na direção norte, cruzamos por cima do Rio Juquery e seguimos em frente indo em direção á pedreira. Ao passar sob uma linha de alta tensão abandonamos o estradão e tomamos uma precária via de manutenção que acompanha as torres supracitadas, ganhando altitude lentamente na direção oeste. É incrível como as feições em terrenos reflorestados mudam radicalmente, pois lembro vagamente trechos totalmente descampados que agora estão com generosas árvores em crescimento. Aqui basta se manter sempre na via principal que segue agora pela cumeeira junto das torres, desce um pouco e desvia pro norte, indo de encontro uma ramificação importante.

Aqui nos mantemos na via que toca pro norte, ganhando lentamente a encosta do Morro da Pedreira, um caminho que é bem mais agradável de palmilhar pela presença cada vez maior de mata ciliar (e menos eucalipto) e repleta de enormes rochedos a margem do caminho. E assim, firmes e fortes, chegamos no “Mirante da Pedreira” por volta do meio-dia, local onde fizemos nosso primeiro pit-stop de descanso e beliscada de alguma coisa nas mochilas. Mastigando meu sanduíche, apreciamos o belo visu descortinado pela intervenção da mineradora Pedrix, sob a forma duma cratera gigantesca, onde as vistas largas privilegiam todo quadrante leste. Da direita pra esquerda é possível avistar o Pico do Jaraguá, a Serra da Cantareira, o Ovo da Pata (no Juquery) e o Cristo de Caieiras, este coroando um serrote desgarrado da Serra do Tico-Tico, ao norte.

Cruzando o bosque do Bambi.

Retomamos nossa chinelada seguindo pela via principal, ainda tocando pro norte, agora em terreno da Reserva Florestal Alfredo Weiszflog, de propriedade da Cia Melhoramentos. Bosque repleto de pinheiros e araucárias, esta reserva é muito bonita e por pouco só falta o Bambi cruzar o caminho pra completar a paisagem pra lá de bucólica. Surgem bifurcações no caminho, mas nos mantemos sempre pro norte, acompanhando a distância o burburinho dos veículos na SP-348, que corre paralela ao nosso trajeto.

Um tanto depois o caminho desce forte e cai de encontro á rodovia, perto dum viaduto. Aqui a opção tentadora seria ir embora pelo viaduto e terminar caindo no centro de Caieiras, mas essa saída seria além de inglória muito pouco coerente com a proposta de busca da tal “Torre Inca”. Ao invés disso, pulamos uma porteira da Melhoramentos e nos pirulitamos por um estradão que ainda mantém a direção indo pro norte. Mas lentamente a rota desvia pra oeste, penetrando cada vez mais e mais no interior da Reflora, num setor que pra mim era novidade em pisar. A partir deste momento que comecei a vasculhar minha memória pra tentar reconhecer “in loco” as referências dadas pelo tal biker do início deste relato.

Caminhada com pouca inclinação.

Pois bem, sempre nos mantendo na via supracitada pra oeste, a pernada prosseguiu de forma sinuosa e com pouca variação de altitude. No trajeto, cruzamos com muito reflorestamento, ruínas de alguma construção á esquerda perto de limoeiros (que fizemos questão de colher), uma mini-subestação da Eletropaulo de manutenção das torres de alta tensão (sim, aquelas mesmas que acompanhamos no início) e muitas, mas muitas ramificações que fuxicamos meio que superficialmente na tentativa de identificar, ou pelo menos relacionar, com as precárias dicas que tínhamos em mãos. Pra abastecer mais as mochilas, tropeçamos com um abacateiro repleto do fruto.

Depois de cerca de 4 km tocando pra oeste nossa atenção redobrou pra um trecho bem abastecido de água e muita várzea, onde adentramos nas bifurcações atrás da tal torre pré-colombina, sem sucesso. Eu já estava quase desistindo de nossa empreitada, uma vez que era o mesmo que buscar agulha em palheiro, mas foi aí que tropeçamos com as primeiras viva almas do rolê naquele cafundó da reserva. Era uma dupla de ciclistas que se surpreendeu com nossa determinação em chinelar naquele lugar e a quem perguntamos se conheciam a tal “torre inca”. E qual nossa sorte que eles conheciam a dita cuja e nos passaram as dicas corretas de como chegar, tintin por tintin! Ufaaaa… Menos mal!

Placas pelo caminho

Com infos bem mais precisas, prosseguimos determinados na mesma direção anterior já quase alcançando o limite noroeste da Reflora, onde a vegetação pareceu se mostrar mais espessa e densa. Aqui praticamente acompanhamos os últimos Km o manso Córrego Itaim (ou Bom Sucesso), que marulhava ao nosso lado alternando de margens. Cruzamos os portões enferrujados duma portaria abandonada da Melhoramentos e seguimos mais um pouco a frente. Passamos por um pontilhão de madeira sobre o supracitado ribeirão e na bifurcação seguinte nos pirulitamos na direção norte. Aqui já não estávamos mais em Caieiras e sim em território do município de Cajamar.

Chegamos ao destino

Esta mais pra templo asiático

Foi ali que caminhamos mais um pouco e abandonamos a via anterior por uma ramificação menor, á nossa esquerda. Não precisou andar muito, pois um enorme vulto na mata já se fazia presente logo no início daquela larga vereda. Era pouco depois das 14h quando ficamos enfim diante da tal “Torre Inca”!  E a visão realmente impressiona! Não pela grandeza arquitetônica ou proeza de engenharia que construiu a enorme torre de pedra que se ergue coisa de 8m acima do chão. O fascínio do atrativo é justamente a mata, a vegetação que a abraça quase que completamente, que a conquistou, brotando mágica e poderosamente entre suas paredes, muros e janelas. Esta torre, que nos seus melhores dias produziu muito cal e trouxe desenvolvimento á região dois séculos atrás, surge timidamente entre raízes e troncos de árvores que parecem se fundir á sua arquitetura.

A vegetação abraça-se á estrutura e crava-se á sua fachada de tal forma, como se a quisesse fazer desaparecer ou engolir. E não seria a primeira vez. Quando a produção de cal deu lugar á produção de papel industrial, os fornos foram abandonados e esquecidos. Pra serem redescobertos por andarilhos ou bikers atrás de aventuras ao ar livre.

A mata engoliu toda estrutura.

Mas olhando com muito mais atenção, pra mim o atrativo não lembra muito uma torre pré-colombina peruana e se assemelha mais a algum templo asiático, cambojano, por assim dizer. Pra conhecer melhor o lugar é preciso abrir passagem entre ramos, galhos e raízes e adentrar na estrutura. Em seu interior a natureza teve o cuidado de interferir menos, permitindo vislumbrar perfeitamente o orifício do alto da chaminé principal.

Pra completar a paisagem, totalmente orgânica, na frente da torre emparelha-se um enorme muro coberto de musgo e líquens, que provavelmente sustentava os trilhos das vagonetes que escoavam a produção do minério ás composições da E.F. Perus-Pirapora. E sim, a atmosfera ao redor é realmente intrigante, mística e leva á reflexão.

Descansados e bem mais revigorados, retomamos nossa chinelada pelo mesmo caminho embora tivéssemos a alternativa de seguir em frente e findar na Rodovia Anhanguera (e dali tomar duas ou três conduções a SP).

Mureta de sustentação dos antigos trilhos

Voltamos então todo aquele interminável estradão, só que no final passamos sob o vão da Rodovia Bandeirantes pra cair nos finalmentes da Cia Melhoramentos. Antes, porém, fizemos uma breve parada pro Celestino clicar mais um forno de cal, porém este bem mais conservado pela empresa, o tal “Castelo de Caieiras” que já descrevi minuciosamente noutra aventurinha de anos atrás. Feito uma fortificação medieval, três imponentes torres elevavam-se a margem da estrada, alocadas ao largo dum aprazível gramado lembrando o castelo do Harry Potter. Pausa pra fotos, muitas!

Castelo de Caieiras.

Na sequência prosseguimos nossa jornada já nos finalmentes, saltando mais 2 ou 3 porteiras fechadas, bordejando um belo espelho d’água ao sopé da serra do Tico-Tico e cruzando a charmosa vila dos funcionários da famosa Cia de papel, até sair pela entrada principal. Acredito que chegamos a Caieiras por volta das 17hrs, no exato momento em que o sol despencava atrás da serrinha baixando consideravelmente a temperatura ambiente. Antes de embarcar no trem de volta, logicamente que primeiro passamos no mercado a fim de abastecer as mochilas com algum salgado e muitas latas de cerveja pra comemorar os quase 27 km chinelados naquele longo e exaustivo dia. Um dia de pernada felizmente em que saímos satisfeitos por concluir o objetivo proposto.

A famosa “Reflora”

Pontilhão sobre o Córrego Itaim

Vinculada à Cia Melhoramentos e popularmente conhecida como “Reflora”, a Reserva Florestal Alfredo Weiszflog é uma vasta área repleta de morros, reflorestamento, mata ciliar, riachos, vida animal e trocentos fornos esquecidos espalhados em seu território, como a “Torre Inca”. Agregando uma extensão da Serra do Tico-Tico e do Morro da Pedreira, esta reserva leva o nome de um dos grandes diretores da empresa e sua função é suprir a mesma de matéria prima, embora uma boa parte esteja sob proteção ambiental. Por conta de suas dimensões superlativas e altos visus, o lugar já foi descoberto pelos adeptos duma magrela, o que não impede que também possa ser desfrutada em duas pernas, que foi nosso caso. Mas é preciso ter muita disposição. No entanto, esse é apenas um pequeno detalhe. Um simples detalhe que serve de tempero pra qualquer aventurinha despretensiosa de final de semana.

 

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

4 Comentários

  1. Marcelo Coelho em

    Boa tarde Jorge, belíssimo relato, sou fã dos seus relatos.
    Você tem as coordenadas geográficas da Torre Inca?

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