A travessia da Farinha Seca

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A Serra da Farinha Seca é a imponente cumeada visível de quem desce a Estrada da Graciosa, famosa vereda de paralelepípedos q interliga o planalto curitibano ao litoral. Com 16kms verdejantemente escarpados q se espicham a partir do Morro Mãe Catira e findam nos contrafortes abruptos e verticais no Morro da Balança, a visitação da Farinha Seca é rara, senão inexistente, por vários motivos. Não bastasse o terreno acidentado, seus cumes desprovivos de mirantes e repletos de vegetação agreste, suja, rija e espinhenta fizeram com q apenas recentemente a travessia completa destas cristas fosse realizada. Isso após 17 árduas investidas q cobraram inclusive uma vida. Este é o relato fiel da nossa incursão pelos quase onze cumes que integram esta nova travessia, neste rincão intocado, selvagem e pouco conhecido inclusive no sul do país.

Após uma madrugada mal dormida de viagem embalada em fina garoa e tempo incerto, chegamos à Estrada da Graciosa naquela fria e enevoada manhã de quinta eu, Mamute e Cissa, às 7:30hrs. Estacionamos então na pastelaria logo após o portal, meio q descontentes por conta da mesma não estar aberta a fim de nos providenciar um revigorante desjejum. Se bem q quiçá nem houvesse tempo pra isso, pois não tardou pro resto dos integrantes daquela supertrip darem o ar da graça. A Solange viera deixar pontualmente no horário combinado seu marido, o veterano e q dispensa apresentações Julio Fiori, a espoleta Débora e a londrinense Lau, q viajara tb madrugada adentro de busão afim de integrar a trupe.
 
Após as devidas apresentações imediatamente embarcamos rumo nosso destino. Nosso intrépido quarteto paulista acompanhou então o veiculo do Fiori, mas não rodamos nem alguns poucos kms pela famosa estrada centenária abaixo q logo adentramos numa precária estrada de chão, à direita. Serpenteando devagarzinho pela mesma não tardou a estacionar em definitivo num local chamado Casa Garber (ou Casa de Pedra, em virtude dumas ruínas logo ao lado). Fomos recebidos por um robusto senhor, q atende pela pitoresca alcunha de “Espalha Brasa”, q autorizou a permanência dos veículos. Falador como ele só, estava com a barba recém-feita, sinal q naquele dia provavelmente visitaria as “primas” na cidade. Pra animar nossa recepção, um bando de bichanos de tds as cores e tamanhos surgiu de tds os cantos, fazendo a festa das meninas, enqto a estridente cachorrada sentia na pele o desdém em favor dos pequenos felinos.
 
Enqto ajustávamos as cargueiras nos ombros o tempo em volta apresentava melhoras. As brumas dispersavam-se lentamente, e o tom opaco do firmamento mostrava animadoras frestas de deslumbrante céu azul. Ainda assim, apesar de estarmos ao sopé do Mãe Catira sua cumeada estava totalmente invisivel à nossos olhos, engolida por completo pelas névoas remanescentes. Apenas pra constar, o Mãe Catira recebeu este nome devido a uma escrava alforiada que no sec. XVIII fixou residência nas margens do rio do mesmo nome, às margens da Graciosa. Ate ai o GPS do Mamute assinalava certeiros 910m de altitude.
 
Iniciamos a caminhada pontualmente ás 8:30hrs, tomando uma picada próxima do casa do seu pançudo proprietário. Óbvia, bem batida e oportunamente sinalizada, a trilha sobe o Mãe Catira progressivamente pela sua encosta forrada de mata, q por sua vez fornece as raízes necessárias q aqui servem de degraus. Qq semelhança com o trecho intermediário do PP será mera coincidência. Não tem erro qto o rumo a tomar, tanto q existem setas amarelas pintadas no arvoredo durante td este comecinho de trajeto. Mas não tarda pra piramba embicar forte, o suor escorrer pelo rosto e o vapor exalado dos poros embaçar os óculos.
 
Por volta das 9:30hrs temos a primeira das inúmeras breves paradas de td travessia, na cota dos 1090m, q se dá oportunamente numa simpatica cascatinha q refresca a goela, molha rostos suados e enche cantis menos abastecidos. A pernada então prossegue no mesmo compasso anterior, sempre atentando pras marcações de plástico e setas na vegetação, sem gde dificuldade. O ritmo é ágil e o grupo, decidido, e dessa forma a ascenção progride consideravelmente entre muita conversa e papo furado, enqto vai se enxugando a umidade matinal da mata a nossa volta.
 
Emergimos nos primeiros campos de altitude pouco antes das 11hrs e imediatamente os horizontes parecem se ampliar permitindo um magnífico vislumbre ao nosso redor. Temos então uma breve parada num cocoruto rochoso pra apreciar a vista descortinada, na cota dos 1385m, beneficada pela gentileza das brumas recém dispersas, assim como pra beliscar nosso primeiro lanche da trip. O vento frio cortante nos obriga a trajar anorakes enqto mexericas, barras de cereais e chocolates são mastigados naquela encosta próxima da bifurcação q, em menos de meia hr, leva ao alto dos 1457m do Mãe Catira e, numa hora, aos 1339m do cume do Morro Sete, q recebe este nome por ostentar este número cravado num paredão. O Mãe Catira é o pto culminante de td Serra da Farinha Seca e dali já se tem um bom vislumbre do entorno, incluído do restante da rota daquele dia: ao norte avista-se a silhueta de td cadeia do Ibitiraquire, com destaque inconfundível pras “orelhinhas” do Ciririca e o majestuoso PP elevando-se do resto do recorte escarpado da serra; e ao sul notamos uma serie de elevações sucessivas cobertas de verde, q correspondem ao Popoaçu-Mirim, Casfrei, Esporão do Vita e Tapapuí. Pois era pra lá q seguiríamos.
 
Após bordejar os campos arbustivos do Mãe Catira começamos uma descida quase vertical ao fundo vale q dá acesso à montanha sgte, isto é, ao Popoaçu-Mirim, tb conhecido como Pequeno Polegar. Mergulhamos então novamente na mata, equilibrando-nos sobre raízes e galhos pouco estáveis, auxiliados pela consistência mais segura dos troncos do arvoredo a nossa volta, e assim perdemos altitude rapidamente. A desescalaminhada íngreme lembra bastante à do Corcovado de Ubatuba e num piscar de olhos pisávamos no leito pedregoso de um pequeno córrego no selado q faz ligação entre as montanhas, onde temos mais um breve pit-stop de descanso e onde a orelha de muita gente “off-trip” deve ter entrado em combustão espontânea, dado o teor venenoso dos comentários q ali surgiram.
 
Sem perder de vista as benditas fitas na vegetação, a jornada outra vez embica forte montanha acima acompanhando um enorme paredão rochoso da encosta do Popoaçu-Mirim. E tome subida! A partir daqui já não existe trilha alguma e vai-se seguindo simplesmente um rastro por onde há menos mata, desviando de espinhentas bromélias! Vale tb salientar q naquela íngreme piramba o pessoal se pirulitou na dianteira, enqto eu fiquei atrás acompanhando o passo vagaroso da Lau, q sentiu o peso da forte ascenção. Mas ainda assim prosseguiu no ritmo dela, firme e decidida, sem entregar os ptos! Ao emergir novamente nos campos de altitude, aqui tomados por caratuvas ressequidas dançando ao vento, e galgar aos ziguezagues o restante da montanha, não demora pra ganhar os 1382m do estreito cume do Pequeno Polegar. Eram exatamente 12:40hrs e o topo é tomado de espessa macega (vegetação arbustiva, rija e compacta), mas uma fresta q serve de pequeno mirante permite vista privilegiada do Mãe Catira e dos impressionantes abismos q o separam do Morro Sete.
 
Despencamos então pela grota oposta novamente, sempre atentos às marcações (cada vez mais raras), agarrados ao tronco e raízes do arvoredo feito macacos. E tome mais desescalaminhada onde td cuidado é pouco, afinal, o perigo está justamente ao se apoiar em pedras soltas ou galhos podres. O chão pisado tb merece atenção redobrada, já q grotas e buracos escondem-se traicoeiramente em meio a compacta mistureba de terra, galhos e folhas. Por sua vez, oportunas frestas na úmida vegetação permitem avistar nosso proximo destino, o Casfrei. E após uma descida longa e acidentada, no fundo do vale nos brindamos com outra breve parada apenas pra retomar o fôlego necessario e encarar a subida sgte. 
 
Retomamos a pernada serpenteando enormes blocos rochosos q podem servir de eventual bivake emergencial, contornamos um espesso bambuzal pra logo em seguida passar p/ subida propriamente dita do Casfrei. A ascensão é curta, íngreme e praticamente em linha reta piramba acima. Num piscar de olhas galgamos os 1266m do seu cume coberto de vegetação dura e lenhosa q vai até a altura do quadril. Pra variar, do alto víamos nitidamente a crista ascendente do Esporão do Vita e, logo atrás, a cumeada do imponente Tapapuí e 00B.
 
A marcha prosseguiu no mesmo compasso anterior, isto é, com uma nova e íngreme descida em direção ao colo sgte q nos separava da base do Esporão do Vita, a sudoeste. Na descida, o “quinto” apoio foi fundamental pra vencer alguns desníveis, e foi ai q o Mamute ficou com a calça em frangalhos (quase uma tanga), qdo a mesma enroscou num galho atrevido durante um salto. Pois bem, após atravessar um espesso bambuzal no vale, passamos a ganhar altitude através duma encosta suavemente inclinada tomada por bromélias gigantes q teimam em ferir quem passa por ali. Desviando a td momento de suas longas e afiadas espadas se cruzando à nossa frente, emergimos enfim no alto dos 1336m do Esporão do Vita. Da sua cumeada coberta de infinita macega entrelaçada e alguns outros arbustos menos lenhosos tivemos uma boa panorâmica do q havíamos percorrido e do q ainda faltava, assim como o imponente cânion do Rio Taquari, a nossa direita. Td isso beneficiado pelo céu claro e atmosfera transparente. Isso em si já era um alivio. No entanto, a Lau não escondia no rosto sua tremenda exaustão, e precisávamos urgentemente duma parada mais demorada pra descanso. Tb pudera, viajar a noite td e ainda encarar uma trip daquele naipe não era pra qq um. 
 
A bendita parada veio qdo desviamos dos campos de macega da crista principal e descemos um pouco, mergulhando na mata próxima da base do enorme e abaulado Tapapui. Em tempo, o Tapapuí detém dois cumes: o principal no extremo noroeste da montanha, de 1438m e outro, mais próximo da crista principal, chamado de 00B por corresponder supostamente a este azimute. Pois bem, ouvindo o som inconfundível de água borbulhante próximo, tivemos nosso pit-stop as margens pedregosas das nascentes do Rio Taquari, as 15:40hrs, onde descansamos e mastigamos alguma coisa, pra alivio da Lau. Uma simpática cascatinha oportunamente tb serviu pra refrescar nossos rostos suados, naquele grotão mocado na encosta montanhosa, onde o GPS do Mamute marcava exatos 930m de altitude. 
 
Após escalaminhar a cascatinha pelo seu paredão lateral, retomamos a caminhada agora acompanhando o supracitado córrego pelo seu leito ensaboado e pedregoso. Aqui incrivelmente a Lau teve mais desenvoltura no avanço e foi menos desgastante pra ela. E assim foi, onde bastou apenas seguir rio acima, saltando as pedras de uma margem à outra ou escalaminhando as encostas mais íngremes sem gde dificuldade. 
 
Após outro tanto abandonamos o riacho e passamos a escalaminhar o ultimo trecho em meio a quiçaça lenhosa e muito caraguatá eriçado, pra então emergir nos 1438m no topo do 00B, já no Tapapui, já quase no final da tarde. Não deu nem tempo de descansar direito em meio à mata arbustiva ressequida, apenas pra apreciar o belo visu dos cumes próximos, tanto da crista percorrida como do q ainda faltava: vislumbramos doutro ângulo as magníficas paredes vertiginosas do Morro Sete, as encostas do Pequeno Polegar e do Farinha Seca na vertente oposta. Sem mto esforço, avistava-se a cordilheira do Ibitiraquire e do Marumbi, respectivamente ao norte e ao sul. E ao longe, a silhueta inconfundível da Serra da Prata! Uma pequena clareira em meio à espessa vegetação parecia ser o único lugar decente pra pernoite no topo. No entanto, um forte e frio vento castigava o cume ameaçando nos varrer dali. Isso bastou pra desestimular td e qq idéia de pernoite com bivake por ali. Sim, ninguém carregava barraca a não ser a Cissa! Decidimos então prosseguir adiante rumo ao selado entre o Tapapui e Farinha Seca, por sinal bem mais protegido e confortável, e assim seguir nossa programação original.
 
Com o sol rapidamente se pondo no horizonte mergulhamos outra vez na mata fechada, onde perdemos altura considerável no q parecia ser o íngreme grotão sul do Tapapuí. Com a luminosidade esvaindo-se e o olhar ainda não habituado à penumbra redobramos o cuidado no avanço, tateando bem o terreno antes de estender o braço ou de esticar a perna. Breve pausa pra colocar as headlamps ao atingir as nascentes do Rio do Meio, já sob o manto negro daquele inicio de noite caindo sobre ombros serranos. Se descer rios já é algo perigoso de dia imagine então fazê-lo no escuro, sob fachos de lanterna? Pois é, não tinhamos escolha. Agora teríamos q acompanhar o curso d’água rio abaixo até a altura do selado, onde o terreno da encosta suavizava na base do Farinha Seca. Olha, essa descida de rio foi tensa e estressante não somente pelo fato de ser quase q às cegas – sob risco de fratura num piscar de olhos, despencando, escorregando ou apenas pisando numa pedra solta – mas foi tb mto desgastante devido ao cansaço acumulado. A falta de sono decente somado à pernada daquele dia cobrava seu pesado tributo e eu não via a hora daquele perrengue agoniante terminar pra desabar no meu saco de dormir. Logicamente q Fiori, Débora e Cissa dispararam na dianteira, enqto eu, Mamute e Lau ficamos na rabeira.
 
Depois duma meia hora rio abaixo q pareceu interminável, tateando o chão q parecia mais firme e menos liso, e de perder mais outra meia hora tanto buscando um pto sinalizado rio acima (q quase “travou” as costas do Mamute), alcançamos o tal pto de referência onde coletamos água pro pernoite. Na seqüência, seguimos o rastro duma picada q subia a encosta e, em menos de 10min alcançamos então o tal lugar de pernoite. Ufa!! O local era pequeno, mas era o único trecho plano da encosta, na cota dos 1230m entre o Tapapuí e o Farinha Seca.
 
Não q isso fosse problema áquela altura do campeonato. O inconveniente mesmo era a abundante presença dum cipozinho infernal chamado de “unha-de-gato”, q além de flexível e se agarrar em qq saliência, dilacera e perfura a pele com facilidade. Logicamente q tivemos q limpar bem a área pra tds se acomodarem naquele exíguo local. Resultado: td mundo montou seu bivake selvagem onde deu, acomodando sacos-de-dormir no chão sob um toldo improvisado; enqto a Cissa foi excessão, espremendo a única barraca no espaço restante, quase as 20hrs!!! 
 
A temperatura não tardou em despencar, nos obrigando a agasalhar devidamente de modo a nos preparar a passar aquela noite naquele cafundó serrano. Na seqüência fogareiros ronronaram anunciando uma fartura de comilanças naquele rincão selvagem. Calabresa, queijo, arroz, macarrão e até carne desfiada estiveram à disposição em nosso buffet improvisado, comida esta q nunca esteve tão deliciosa, entrecortada de causos pitorescos, como o da “Sereia do Marumby”. Fiori até disponibilizou uma “branquinha” pra ajudar a relaxar, embora isso fosse desnecessário. O corpo estava sonado de cansaço e logo mais capotaríamos naturalmente. Dito e feito, a conversa foi minguando aos poucos até q sós e ouviam roncos abafados ppelos sacos-de-dormir. No caso do Fiori e Mamute, a impressão era q dormiam acompanhados de duas onças. Por sua vez, a noite transcorrera sem nenhuma intercedencia, mas fora bastante fria e úmida, conforme previsto. Pela madrugada, frestas no arvoredo filtravam a claridade dum enorme disco prateado pairando sobre nós, assim como permitima vislumbrarpedaços dum negrume coalhado de estrelas, sinal q teríamos um gde e belo dia pela frente. 
 
A sexta-feira irrompeu conforme nossas previsões, isto é, a atmosfera transparente indicava q o dia seria esplêndido. Sentia o corpo td ralado e dolorido do dia anterior, principalmente o joelho, mas nada q cartelas de Dorflex não resolvessem. A Lau mostrava fôlego e ânimo revigorados e isso era ótimo. Não há nada q uma boa noite de sono não resolva. Pois bem, embora tivéssemos a mto despertos, o friozinho matinal nos segurou aos casulos por mais tempo. Mas não teve jeito. Havia q prosseguir e otimizar a pernada daquele dia. A Lau providenciou um oportuno café-com-leite q, embalado com bisnagas com nacos de queijo, serviu a contento como desjejum matinal.
 
Com as cargueiras novamente nas costas, iniciamos a pernada daquele dia ganhando as íngremes encostas do Farinha Seca por volta das 8:30hrs, onde ainda dava pra transitar em meio ao arvoredo, repisando pegadas das expedições anteriores. Eu, Lau, Mamute e Cissa desta vez fomos na dianteira, enqto Fiori e Débora ainda arrumavam suas tralhas. Não havia problema qto o rumo a tomar, pois a mata abaixada, marcas de facão e, principalmente, as benditas fitas no arvoredo ainda serviam como rastros confiáveis a serem seguidos áquela altura do campeonato. Mas assim q a piramba apertou o bosque deu lugar a td tipo de vegetação agreste, seguida da habitual macega. A picada morro acima nos brindou com muita taquara, quiçaça, bambuzinhos, unha-de-gato e bromélias imensas, na qual fomos abrindo passagem até despontar, após o campinho do Tanguiri, numa pequena clareira forrada de capim na extremidade norte da crista q abriga os quase 1372m do alto do Farinha Seca, as 9:15hrs. Uma vista fantástica do Tapapuí, cuja cumieira era encoberta por nuvens esparsas, e o espetáculo dos paredões a prumo do Esporão do Vita lançando-se sobre o abismo da Graciosa, serpenteando mil metros abaixo foi merecedor de vários cliques. 
 
Fiori não tardou a se juntar á gente q, empoleirado no capim, permaneciamos ainda maravilhados pela visão a nossa volta. A atmosfera transparente daquela manhã radiante nos proporcionava uma vista incrível inclusive de td quadrante sul, isto é, de td q nos restava da travessia: um íngreme e fundo vale nos separava do Morro dos Macacos, cuja crista se perdia nos 3 cumes do Mojuel e Jurapê. Por sua vez, o Balança surgia minúsculo como uma imponente barbatana rochosa de 1116m verticalizado no outro extremo da cadeia. E ao sul, emergindo num mar de nuvens, reluzia a crista azulada do Marumbi.
 
Imediatamente minhas memórias voltaram a exatos dois anos atrás, qdo estavámos neste mesmo cume (porém na cia de outros companheiros) e tivemos q tomar a dolorosa decisão de abortar a travessia por uma série de motivos q nem vale discorrer aqui. Dali tomamos uma rota de fuga pelo Rio do Meio (passando pela belíssima Cachu dos Degraus) até dar na comunidade rural do mesmo nome, já no pé da serra. Só sei q aquela q seria a expedição derradeira q consolidaria enfim a travessia, deixou neste q agora escreve o gosto amargo de ser apenas a de nº 13, q provavelmente pela tradição de mau agouro do maledito número trouxe uma indisposição “escrota” pro Mamute, uma noite “inesquecível” pra dupla Jurandir/Pedro Hauck, e um acidente de trãnsito pro resto dos integrantes da expedição. Mas posteriormente com o esforço conjugado de várias mãos e mto suor sobre cortes e arranhões a travessia foi concluida no ano sgte. Após 5 investidas adicionais a região, diga-se de passagem.
 
Retomando a pernada, começamos a descer a encosta da montanha sentido oeste, rumo o fundo vale q nos separava do Morro do Macacos. Como sempre, a encosta de macega não tardou a dar lugar a floresta úmida e fechada, a qual serpenteávamos seguindo apenas rastros vagos de pisadas anteriores. E tome uma descida q pareceu interminável! A declividade acentuada logo abrandou, na medida em q a vegetação aumentava de tamanho e gdes gigantes da florestas ja davam sinal q estávamos na proximidade do selado entre as montanhas. Mas após um tempinho saltando pedras e acompanhar um pequeno córrego, finalmente tivemos uma breve parada ás margens da areia dourada doutro curso dágua, q molhou nossa goela e refrescou nosso rosto suado.
 
Daqui já começaram os perdidos pq a ausência total de marcação (fita) ou rastro nos fez praticamente azimutar na direção sul/sudoeste e buscar novamente algum vestígio de rastros anteriores. Perdemos quase uma hora galgando uma encosta coberta de bromélias gigantes de 1,5m, onde avançamos penosamente em meio a folhas afiadamente serrilhadas, abrindo caminho na unha e levando td sorte de corte e rasgo nas mãos, braços e pernas! Não bastasse isso, depois enfrentamos um labirinto de cipó unha-de-gato q se encarregou de detonar o q ainda restava inteiro no corpo. Mas felizmente quebrando um pouco pra esquerda, Fiori reencontrou vestígios da passagem da ultima expedição e retomamos nossa jornada mais aliviados.
 
E após subir uma íngreme piramba q pareceu não ter fim desembocamos no descampado de capim e arbustos q dão conta dos 1222m do cume do Morro dos Macacos, onde fomos recebidos por um brumado espesso q nos privou de apreciar a paisagem ao redor. E ao exato meio-dia nos presenteamos com uma breve e merecida parada de descanso mais demorada, onde desabamos o traseiro no chão fofo de capim e mordiscamos fatias de salame, nacos de provolone e gomos de mexiricas. Vale destacar q aqui é aparentemene o único lugar onde dá pra acomodar confortavelmente umas 3 barracas e q, em tese, era nosso lugar de primeiro pernoite. Há aqui tb os primeiros vestígios da famosa travessia perpetrada o ano anterior pelo Elcio e Jurandir, a “Alpha-Crucis”, q emendou as 3 maiores pernadas parananenses, sob a forma de adesivos personalizados grudados numa madeira fincada na clareira maior q domina o cume.
 
Retomamos a pernada no quarto de hora depois, descendo pelos campos na direção oeste até a macega ate mergulhar novamente na mata fechada. Dali bastou acompanhar uma vala seca q mais abaixo vertia água corrente em boa quantidade. Fiori alertou pra abastecer tds os cantis q tivéssemos. “Água potável daqui em diante só no Rio Ipiranga, amanhã perto do meio-dia!”, completou. Dessa forma enchi minha pet de 1,5L enqto a Lau fez o mesmo com seu camel-back, garantindo assim o precioso liquido pra janta e manhã sgte. E assim prosseguimos a descida em meio a macega restante, cambaleando pelo peso avulso (porém necessário) nas cargueiras em direção á crista verdejante q exibia seus contornos verdejantemente ondulados a nossa frente.
 
“Gente, agora td mundo o mais próximo possivel, sem gde distancia entre cada um!”, alertou Fiori. E não era pra menos pois agora estavamos no trecho mais confuso da trip. A crista é recoberta de densas florestas q não permitem qq orientação visual sendo facil se perder. As raras frestas na mata apenas mostravam uma paisagem opaca tomada por névoa. Não existe qq tipo de marcação ou sinalização, e as fitas já não se viam desde o Farinha Seca. Sem nada plotado no GPS, nossa única opção viável de navegação era seguir vestígios dos colegas predecessores, ou seja, marcas de facão na mata! Dessa forma prosseguimos nossa jornada com muito sobe-desce pela crista, sentido sul, desviando das onipresentes gretas, taquaras, cipós, bromélias e quiçaça no caminho. Qdo os rastros sumiam – geralmente nos selados de ligação e sempre devido a mata tombada – nos dividíamos de modo a fazer um pente fino nos arredores, até reencontrá-los. Processo este q foi repetido varias vezes. E assim, em trabalhando em equipe, avançamos relativamente bem naquele rincão selvagem e intocado.
 
Os 1196m do Mojuel foram alcançados as 14:15hrs, onde tivemos breve pit-stop pra descanso em meio a macega e caraguatá q domina o cume florestado desta montanha. Avançando então atraves da quiçaça cada vez mais espessa, onde o mato ressequido teimava em enganchar nas cargueiras e atrasar nosso passo, as 15:30hrs atingimos os 1110m do Jurapê, onde nossos traseiros novamente desabaram num cume tão desprovido de mirante ou qq visu qto o anterior. Vale mencionar q o Jurapê tem 3 cumes quase q seguidos, sendo q no do meio começou a desenhar um profundo selado a nossa direita. Ali tb chegamos numa gde pedra na encosta onde ressurgiram os rastros com força total. Se antes buscávamos minucuosamente marcas de facão na mata agora as fitas amarelas estavam presentes a cada dois metros! Não havia mais erro qto q rumo tomar!
 
Foi ai q finalmente as brumas foram generosas em nos dar um tostão de vislumbre num cocoruto, e qual nossa surpresa ao constatar bem proxima uma ultima gde e imponente silhueta antes do vazio profundo. Era o Morro do Balança!! Desnecessario mencionar q respiramos aliviados ao ter esta constatação pois eu e a Lau não éramos os únicos cansados e doidos pra encostar de vez o esqueleto. O Mamute tb sentira tb as agruras do descondicionamento e ficou na rabeira do grupo, com varias paradas de descanso neste q seria o ultimo trecho pela cumieira serrana. 
 
Enqto isso os pés do Fiori, Cissa e Débora se apressaram em descer a encosta, mergulhar num brejo enlameado no selado e cruzar o mar de caraguatás até a macega do outro lado. E finalmente subindo mais um tanto chegamos num lugar apelidado de “Alto Alegre”, q nada mais é uma ampla e oportuna vala q circunda o contraforte norte do Balança, na cota dos 1068m de altitude. As 18hrs e com a luminosidade rapidamente se esvaindo montamos nossos respectivos cafofos naquele buraco, onde nem a Cissa escapou de montar seu bivake. O lugar é literalmente uma “vala coletiva”, onde tds se acomodaram ao largo de td sua extensão, perfilando os sacos-de-dormir e estendendo uma lona meio capenga, logo acima. Se chovesse estava td mundo lascado pois td agua da montanha fatalmente escorreria por ali, mas por sorte o céu limpo diluía esta preocupação.
 
Qdo o bréu total tomou conta do nosso mocó, fogareiros foram postos a funcionar trazendo td sorte de iguarias q foram prontamente devoradas. Mas ao q parece eu não era o único cansado, uma vez q o borburinho geral só perdurou algum tempo depois da Débora parar de tagarelar, ao se dar conta q o resto já se aninhara confortavelmente nos braços de Morpheus.
 
Só assim prum silencio sepulcral tomar conta do Morro do Balança. A noite, por sua vez, nos brindou com zilhões de estrelas cintilando no céu, brilho este q iluminava parcialmente nosso acampamento pelas frestas do arvoredo, embora a mata remexendo devido as fortes rafagas de vento nos assombrasse com chuva iminente. E assim tivemos uma agradável e revigorante noite de sono profundo. Ou quase. Além de dormir na posição incomoda de “69”, de modo a caber na vala, eu e a Lau cozinhamos dentro do saco-de-dormir e enquanto tirava o excesso de roupa pude constatar q tds ali tb concordavam q aquela noite fora menos fria q a anterior.
 
Na manhã sgte levantamos prontamente antes da 8hrs ao constatar q teríamos mais um dia de bom tempo pela frente. Na sequencia e sem muita pressa terminamos nossas provisões num farto desjejum, de modo a aliviar ao máximo o peso no lombo, enqto nossas cargueiras se davam o trabalho de engolir o equipamento restante do bivake. O racionamento de água dava pro gasto e o q restava era suficiente pra nos sustentar ate a baixada. Largamos então as coisas e nos pirulitamos prum rápido ataque praquele q foi considerado o bicho-papão da travessia, o Balança. Rasgamos então o restante de macega no caminho e, num piscar de olhos, emergimos no majestuoso cume deste imponente rochoso, pontualmente as 9hrs.
 
Os 1116m do topo do Balança são marcados por um pequeno mirante rochoso q tem uma vista soberbamente privilegiada de td conjunto Marumbi, iluminado em primeiro plano de forma impar pelos primeiros raios daquela manhã. Com o sol alto e visu esplendido estava td lá, bem vivo e nitido: o recorte escarpado de tds seus gdes picos apontando por céu, a linha férrea cortando o maciço transversalmente, a Estação e Usina Marumbi, o cânion do Ipiranga e os saltos do Rosario e Feitiço, além do Véu da Noiva. Alem dele, é possivel avistar os recortes silhuetados, ao longe, da Serra da Baitaca, da Igreja, da Prata e o Campo dos Ciprianos, entre outros acidentes geográficos menos conhecidos. E num trecho de macega na direção contraria é possivel avistar td trajeto da travessia feito desde o primeiro dia. Pausa pra fotos, muitas! 
 
Pois bem, era chegada a hora de descer, as 9:15hrs, e foi ali q tomei a noção do porquê daquele gigante de granito ser o bicho-papão de td travessia, q demandou muitas investidas pra ser domado e q tomou inclusive uma vida no processo. Uma muralha rochosa vertical q se projeta em negativo sobre a Graciosa, mil metros abaixo!!! Cuidadosa e cautelosamente fomos desescalaminhando na vertical atraves de tocos, pedras, galhos e qq coisa q estivesse a mão q nos ajudasse a perder altitude. Sempre tateando bem onde pisar, buscando agarras firmes, tocos q não se esfarelassem e chão q não escondesse gretas traicoeiras no caminho. Um trecho literalmente feito pra macacos q foi meio tenso, principalmente praqueles cuja perna ou braço se fazia pequeno demais pra alcançar o apoio sgte!
 
Braços e pernas empenhados em equilibrar a cargueira pra não rolar morro abaixo até a base do primeiro paredão, onde o terreno ficou mais ameno pra então acompanhar uma úmida canaleta a um pto chamado de “chuveirinho”. Ali, na encosta rochosa, havia finalmente água sendo despejada em pingos, brotando das pedras, mas q por falta de paciência e de tempo passamos batido, limitando-nos apenas a molhar os lábios com aquele liquido precioso, porém ofertado em conta-gotas q mal saciaria uma sede feroz. Na sequencia veio um interminável ziguezague íngreme em meio a um espesso taquaral, onde não raramente bambuzinhos nos seguravam agarrando-se a qq saliência das cargueiras.
 
Mas felizmente não tardou pro terreno abrandar de vez, na forma duma agradável crista q descia suavemente incialmente pra sudeste mas depois desviou pro sul. Ali tivemos um maravilhoso vislumbre dos altos paredões da pirâmide final, do Pico do Diabo e de onde já se ouvia o rugido raivoso do Rio Ipiranga no salto do Feitiço e Salto Rosario, q não tardaram em se mostrar na segunda sequencia verticalizada de desescalaminhada. Mas a piramba logo foi vencida dando lugar a um trecho q ziguezagueou a encosta ingreme por um bom tempo, sentido leste, sem gde desnível, porem com eventuais trechos de escalada. E tome impacto no joelho!
 
Ao meio-dia tivemos uma breve parada nos lajedos secos conhecidos como “Tobogã”,q qdo deve chover deve ficar um espetáculo só, na cota dos 500m. Após o descanso dos joelhos mais sentidos veio finalmente um trecho menos penoso em meio a uma frondosa floresta com alguns exemplares de suculento palmito, ou seja, a descida mostrou-se suave ate o restante da trip, pra alivio das pernas cansadas! Alcançamos as margens do Rio Ipiranga as 13hrs e demos graças as céus por não ter chovido, já q o mesmo sobe meio metro em 10 minutos e leva 4 horas pra baixar. Cautelosamente o atravessamos, saltando de pedra em pedra ou enfiando bota no leito mesmo, com agua na altura do joelho.
 
Na outra margem bastou seguir pela sussa e bem marcada Trilha do Salto do Rosario, em meio a um bucólico bosque e onde tropeçamos com a única peçonhenta da trip. Ao dar nas margens do Rio São João, as 13:40hrs, q cruzamos nas mesmas condições q o anterior, nos brindamos com uma parada maior pra lavar tanto a alma, a roupa, o corpo e as agruras sofridas durante td travessia. A água estava tinindo de gelada, mas isso não impediu q eu e o Mamute nos brindássemos com um mergulho, enqto os demais limitavam-se ao tradicional banho “tcheco-tcheco”.
 
Dali pra pra entrada da Usina Hidreletrica do Marumbi foram dois palitos, onde nos pirulitamos pela estrada do Nhundiaquara o restante de serra abaixo. Buscavamos sempre nos manter em movimento pois, a diferença dos dias de vara-mato isentos de qq espécie de mosquito, ali no limpo havia um inferno de sanguessugas dispostos a sugar o pouco de sangue q havia na gente! Mas a caminhada terminou de fato após o IAP, qdo encostamos numa das primeiras casas do caminho (q alugava bóias pra rafting no Nhundiquara) onde negociamos transporte pra simpatica Morretes! Lá acionamos o resgate pra buscar o veiculo, enqto com a mesma tenacidade e voracidade com q encaramos a travessia, fizemos uma investida sem dó nem piedade num suculento prato de barreado, peixe, camarão e toneladas de cerveja gelada. Nada melhor pra terminar uma travessia daquelas, com garbo e elegância merecidas.
 
A Serra da Farinha Seca se confundiu no decorrer dos séculos com o nome da centenária estrada q a serpenteia, a Graciosa, mas na verdade td corresponde a um único acidente geográfico que recebeu dois nomes. Afinal, trata-se da mesma imponente cumeada no sentido NE-SO. Independente de qq nomenclatura, a travessia desta serra selvagem e intocada é ainda obscura e desconhecida, claro. No entanto, estas pernadas q estão longe dos holofotes midiáticos particularmente considero as melhores. O pioneirismo do trajeto num lugar q até agora poucos pisaram é certamente um convite instigante à aventura. Mato, campo, frio, calor, solidão, quiçaça, macega, unha-de-gato e desníveis abruptos. Uma graciosa e perrengosa aventura que resgata o melhor estilo do montanhismo tropical tupiniquim.
 
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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A Travessia da Farinha Seca

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“A melhor travessia não se faz na perfeição das cristas, mas nas curvas do seu pé torto, seu olho vesgo e seu coração danado.“- adaptado de Dalton Trevisan.

Como a frase acima esta travessia também não foi ideia minha, ela nasceu sabe lá quando. Registros mostram que em 1997 a SPM (Sociedade dos Poetas da Montanha ) planejava fazer a travessia saindo pelo Balança até o Morro do Sete, porém, na primeira investida, o montanhista Black morreu, desestimulando seus colegas de continuarem na empreitada. Um ano depois, o Cover com seu grupo da AMC – Associação Montanhistas de Cristo – conseguiu realizá-la, porém por outro roteiro (Morro Isolado até o Morro do Sete),  repetido novamente em 2007 pelo Natan e companhia dos NNM – Nas Nuvens Montanhismo.

Com a tecnologia em navegação por satélite e georreferenciamento transferida pelo Prof. Raul M. P. Friedmann ao nosso navegador Elcio Douglas, traçamos um roteiro pelos cumes e cristas paralelas ao profundo abismo onde serpenteia a centenária estrada da Graciosa. A Casa Garbers, do Alemão ou Casa de Pedras como também é conhecida tornou-se o referencial de partida e a Usina Hidroelétrica do Marumbi – UHM – o ponto de chegada, com o bicho-papão de toda a aventura representado pelo Morro do Balança e seu desnível vertical de 1.000 metros que no passado já nos havia cobrado uma preciosa vida.

A coisa começou a realmente tomar forma no apagar das luzes de 2010 quando eu, o Paulo Marinho e o Moisés Lima subimos pelo Morro Mãe Catira orientados pelas fitas deixadas em 2007 pelo NNM e alcançamos um afloramento rochoso na encosta sul do Poaguaçu Mirim – Pequeno Polegar -, a meio caminho do Tapapuí – 00B – quando uma violenta tempestade tropical nos forçou a retroceder. Uma segunda investida mobilizou o Johny e o Filipe numa tarde sufocante que pouco avançou além do cume do Poaguaçu. O trabalho de exploração teve continuidade com o Elcio e a Bárbara repisando nossas pegadas e avançando até o cume do Casfrei, na vertente oposta, onde igualmente foram enxotados por outra tempestade seguida pela escuridão noturna.

Apesar de empregar toda a tecnologia digital disponível e da insistente pregação do chato mestre Jedi – o Yoda dos pinheirais – ainda nos falta o sabre de luz para definitivamente entrar no século XXI e neste cansativo processo exploratório apelamos mesmo para aquela velha ferramenta do 'século passado' que tanto encantou os silvícolas do século XVI. Os sempre eficientes Três Listras correram soltos por entre moitas de taquara, emaranhados de cipó, unhas-de-gatos, caraguatás eriçados e trechos infinitos de macega dura e entrelaçada nas cristas empinadas e cumes expostos.

O verão de 2011 seguia quente e sufocante demais para se enfrentar as cristas das montanhas, assim optamos em trilhar veredas próximas à água. Acompanhado pelo Moisés, Elcio, Paulo, Johny e Bira abandonamos os veículos à beira de uma lagoa na comunidade rural do Rio do Meio e cruzamos o pasto no frescor do amanhecer para encontrar o leito do rio no interior da mata. Com a água cristalina ao alcance das mãos, avançamos até a nascente na grota que separa o Tapapuí do vizinho Tanguiri onde novamente enfrentamos o mato bravio antes de emergir nos campos de altitude. O cume do Tapapuí nos ofereceu uma recepção digna do inferno naquele início de tarde. Sol abrasador, nenhuma brisa e enxames de butucas alucinadas por nosso sangue.

Conseguimos permanecer ali o tempo suficiente apenas para estudar uma possível rota de aproximação pelo Esporão do Vita e visualizar, na face oposta, o campo do Tanguiri seguido pelo imponente cume do Farinha Seca e vazamos literalmente enxotados pela nuvem de insetos sedentos.

Os cumes estavam definitivamente fora de nosso alcance enquanto a temperatura não descesse a patamares civilizados. Precisávamos nos manter junto aos rios e iniciamos a exploração na ponta sul da travessia. Com os automóveis protegidos no estacionamento da Dona Isabel, na estrada das Prainhas, seguimos até o portão da Usina, descemos o barranco e cruzamos o Rio São João para alcançar o pátio da UHM. Comigo estavam o Otaviano, Pedro Hauck, Johny, Moisés e Elcio avançando pela mata fechada até cruzar com a trilha às margens do Rio Ipiranga. Nadando no piscinão do Salto Rosário e tomando sol nas pedras pudemos estudar com tranquilidade as encostas e paredões verticais do Morro do Balança, o desafio maior desta travessia.

No final de semana seguinte, com a trilha para o Salto Rosário reconhecida, eu, o Pedro, Elcio e Moisés encontramos a melhor passagem pelo Rio Ipiranga e adentramos pela encosta do Morro do Balança avançando até uma muralha vertical que se projetava em negativo sobre nossas cabeças. Bloqueados pelo obstáculo intransponível passamos o resto do dia a explorar seus contornos a procura de uma falha de continuidade que permitisse a passagem em segurança com as mochilas cargueiras. Por fim, com o Pedro apresentando graves sintomas de desidratação e hipoglicemia, retornamos ao conforto das águas geladas do rio onde lavamos todas as agruras do dia.

Ainda no auge do verão fiz com o Elcio, Moisés, Bárbara, Paulo Marinho e Vinícius uma última tentativa de exploração no Balança, mas desta vez o Rio Ipiranga não nos permitiu cruzá-lo devido ao volume d´água que naquela semana já havia arrasado todo o litoral ao pé da serra e nos contentamos em revisitar o Salto Rosário para depois descer o Rio Nhundiaquara com câmeras de ar enquanto o Vinícius enxugava todas as cervejas do boteco.

Com a aproximação do outono os dias gradualmente voltam a ficar propícios para se aventurar pelos cumes e acompanhando o Elcio e o Moisés subimos o Mãe Catira alcançando novamente o Casfrei em meio a denso nevoeiro. Sem GPS esperamos por horas na névoa gelada com esperança de uma abertura que não veio e pouco pudemos avançar. Duas semanas depois o tempo estava magnífico e novamente no Casfrei, com mochilas cargueiras e GPS, avançamos grota abaixo até encontrar o Rio Taquari nervoso como só ele. A exploração do rio foi tensa e não poucas vezes colocamos o pescoço em risco ao escalar paredões a pique e cânions obscuros até vazar por um mar de caraguatás gigantes na aresta superior do Esporão do Vita.

Rasgados e sangrando pelos poros, retornamos ao rio que seguimos até a nascente para embicar na encosta a direita e despontar nos campos de cume do Tapapuí mais mortos do que vivos. O vento parecia não suportar a presença de intrusos naquela noite, mas só desocupamos nossa posição com os primeiros raios de sol, descendo a encosta oposta já galgada para atingir a nascente do Rio do Meio e preparar um belo desjejum. Com a pança forrada investimos contra a intrincada vegetação virgem da encosta até despontar no campinho de cume do Tanguiri e novamente enfrentar macega braba na direção do Farinha Seca quando no meio da tarde paramos a poucos metros dos campos que antecedem o cume para retornar à civilização pelo leito do Rio do Meio. Estava feita a ligação entre o Sete e o Tanguiri, faltava agora o trecho sul da travessia.

Na bem-vinda chegada do frio de inverno já estávamos preparados para desafiar as encostas do Morro da Balança e com o Mikael, Moisés e Elcio cruzamos sobre a cachoeira seca do Tobogã avançando a oeste até a cascata de árvores e para cima vencendo o paredão que contorna toda a face sul da montanha que antecede o Balança. Pelo esporão seguimos até o anoitecer para um bivaque improvisado debaixo de chuva gelada. Na manhã seguinte continuamos deitando taquara pela afiada crista até a pirâmide final onde novamente fomos bloqueados por outro imenso paredão de rocha viva.

O cume estava perto e já podíamos sentir seu gosto. Quinze dias se passaram até que outro dia perfeito surgisse no horizonte. O Jurandir Constantino apresentou-se de Paranaguá e de Matinhos chegou o Ivon Cesar – Índio Sexta Feira – além do Moisés e do Elcio pra me acompanharem no ataque final. Avançamos pela crista com apenas uma parada de descanso. Na cachoeira seca derivamos a direita pela base do paredão pegando água nos chuveirinhos e com dois toques fincamos os pés no alto da muralha. Quando nada mais poderia nos impedir de alcançar o cume desandou uma tremenda chuva sobre nossas costas. Nada poderíamos fazer naquela encosta inclinada além de seguir em frente para o desconhecido a procura de um abrigo, quando uma vala cruzou nosso caminho. Era um providencial mocó para o pernoite úmido e gelado. Sem barracas, cada um se ajeitou como pode e o Jurandir improvisou uma cobertura com uma saca de açúcar da marca 'Alto Alegre'. A coisa estava precária naquele buraco, mas com a barriga cheia, o bom humor retornou e até a chuva  ficou suportável.

Ao amanhecer rasgamos a macega até o cume para ver os primeiros raios de sol iluminarem o Marumbi por entre frestas das nuvens, anunciando outro dia magnífico. Para espantar o frio ainda arranjamos força de vontade para cruzar o selado e investir sobre as encostas do morro ao lado, que depois apelidamos de Jurape, antes de descer para o conforto da civilização.

A travessia começava a desenhar-se, com o enigma do Balança desvendado, já tinha começo e fim, mas também um imenso ponto de interrogação no meio. Tudo do Farinha Seca ao Jurape era desconhecido e ainda faltava ligar o Casfrei ao Tapapuí por uma rota viável. Esta ligação ficou por conta do Jurandir e do Elcio que da grota aos pés do Casfrei avançaram resolutos até a primeira cumeada do Esporão do Vita deixando sua marca na paisagem.

O mês de junho já caminhava para seu final quando por aqui desembarcaram o Jorge Soto, Mamute, Fábio e a Vivi vindos de São Paulo para botar a mão na massa. A eles se somaram a Barbara, Natan e Michele, Otaviano e Carol, Moisés, Elcio, Pedro e eu no Portal da Graciosa enquanto o Jurandir aguardava no estacionamento da Dona Isabel. Administrar um grupo deste tamanho não é fácil e então dividimos a turma, metade avançaria pelo sul escalando o Balança enquanto os demais seguiriam pelo norte para se encontrarem no meio do caminho onde trocariam as chaves dos automóveis.

Na Casa Garbers fomos recebidos com muita chuva e pelo humor ácido do Espalha Brasa:
    – E daí véio pançudo, esta chuva vai parar? – fui perguntando.
    – Vai sim, vai parar daqui a pouco….no lombo doceis, isto sim!

Apesar da pouco animadora resposta do índio véio seguimos em frente pela trilha encharcada do Mãe Catira. Na cachoeira o Mamute já apresentava as dores de uma lesão mal curada que acabou por forçar sua desistência antes do primeiro mirante, mas o sol já ameaçava romper com a cortina de neblina. Isto inflou os ânimos para mergulhar no buraco em direção ao Pequeno Polegar onde o Elcio, Moisés e a Barbara já despontavam nos campos. No Casfrei, o sol já ardia no lombo, mas no Esporão do Vita, quando alcançamos os apressadinhos, o sol começou a fritar os miolos.

Continue lendo na segunda parte…

Fotos: Elcio Douglas Ferreira e Moisés Lima

Links para textos complementares:
1. Circuitão de Fim de Ano
2. Batismo de Fogo no Tapapuí
3. Farinha Seca
4. O Mistério do Balança
5. Mãe Catira – Farinha Seca
6. Rio do Meio, UHM, Porto de Cima e Morretes
7. Travessia da Farinha Seca em 24 Horas

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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