A Trilha Noroeste do Pico do Itacolomi

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Ele já foi chamado de “Farol dos Bandeirantes” por orientar viajantes e tropeiros nos arredores de Ouro Preto, uma vez que a inconfundível pedra em forma de dedo que coroa seu escarpado cume é o grande destaque visível da histórica cidade mineira. É o Pico do Itacolomi, que atualmente já não atrai antigos desbravadores atrás de ouro e sim caminhantes em busca das largas vistas que seu topo de 1772m proporciona. Seu cume é acessível de duas formas: pela enfadonha trilha oficial que, bem sinalizada mas sem pontos de água, parte da portaria do Parque Estadual no qual o pico está inserido; ou por uma vereda alternativa que nasce a noroeste, a margem da Rodovia dos Inconfidentes (BR-356), que é o tema deste relato. Mais rústica e acidentada, esta rota de 7kms passeia por uma diversidade cênica impressionante e possui atrativos como a “Cidade de Pedra”, a “Capelinha” e é farta no precioso líquido, com direito a refrescantes banhos nas cabeceiras do córrego Belchior.

Nas duas semanas que deram início ao ano parti com a Lau numa viagem descompromissada pelas cidades históricas mineiras, aliando passeios culturebas a rolês naturebas. E claro que o Pico do Itacolomi seria visita mais que obrigatória durante nossa passagem por Ouro Preto. Já conhecia o parque e o pico duma antiga travessia década atrás, mas a vontade de chegar ao topo de outra forma que não fosse o oficial falou mais alto. Sem atrativos significativos, ausência de água e com acréscimo de 6kms desnecessários por tediosas estradas de terra, evitar a vereda institucionalizada pelo Parque Estadual foi movida também por questões logísticas. Por sorte, tomei conhecimento duma rota alternativa que me pareceu mais interessante; ela não só abreviava o trecho de via de chão como apresentava mais atrativos ao longo do seu trajeto. Peguei as infos necessárias e lá fomos nós!

Partimos cedo de Ouro Preto, cidade histórica que nasceu durante o ciclo do ouro no século 17, aproveitando o tempo mais fresco e ameno do início de dia. Devia ser coisa das 8hr quando cruzamos o bairro Bauxita, situado no sul da cidade, em direção ao sopé do pico. Caminhada tranquila e embalada pelos divertidos nomes das “repúblicas” aqui existentes por conta da renomada universidade local (UFOP), que atrai estudantes de todo país. Diferente dos demais dias de tempo claro, aquela manhã começara com firmamento totalmente tomado de nuvens grossas e da inconfundível silhueta da Serra do Itacolomi pouca coisa se avistava naquele horário. O jeito era torcer pra que o tempo melhorasse no decorrer do período.

Menos de meia hora de chinelada pisamos no asfalto da Rodovia dos Inconfidentes (BR-356), bem na frente do Hospital Municipal. Do outro lado da estrada há um dos típicos marcos da Estrada Real e, do lado, o portal de entrada pro Parque Estadual do Itacolomi, de onde por mais alguns quilômetros de chão se alcança o centro de visitantes e a trilha oficial que leva ao pico. Ignorando a portaria do parque nos mantemos na via asfaltada que corre paralela á rodovia, porém subindo suavemente na diagonal, indo em direção á serra. Trecho este bem sossegado e sem tráfego algum, marcado apenas pela presença de farta vegetação na encosta á nossa direita, perfumada principalmente por lírios-do-brejo.

Mas num piscar de olhos surge uma caixa d’água e uma porteira de metal do nosso lado, onde uma placa carcomida do parque parece avisar que dali em diante o acesso esta restrito a pessoas autorizadas ou algo do tipo. Pronto, contornando facilmente a dita cuja pisamos numa óbvia vereda que se pirulita serra adentro, em meio a muita vegetação ainda umedecida pelo sereno noturno, dando o pontapé oficial de nossa pernada ás 8:30hr enquanto o altímetro crava exatos 1200m. Ajeitamos então as mochilas, apertamos o cadarço nas botas e vamos que vamos!

Subindo pelo carreiro de quartzito

Começamos caminhando em meio a muito mato num chão coberto de grama, mas não demorou pro cenário mudar radicalmente logo adiante, com a vegetação diminuído de tamanho até se tornar arbustiva num chão coberto de rochas e quartzito. Sempre tocando pra sudeste e ganhando altitude de forma imperceptível e desimpedida, o caminho vai sempre margeando a encosta do Morro do Cachorro, que nada mais é uma crista que deriva do maciço principal. Mais adiante não tardaram em aparecer os tradicionais afloramentos rochosos bem típicos do Espinhaço, de todas as formas e tipos. Este trecho exibe algumas grutas no caminho, muitas flores e apenas uma pixação “louvando Deus”, infelizmente. E o tempo? Pois bem, o tempo continuava bem fechado, ocultando não só a cumieira montanhosa como o tradicional “dedo rochoso” que tanto serviu de referência aos antigos bandeirantes.

escalaminhando um vale

Mas após quase 3kms bem tranquilos, ás 9:30hr alcançamos uma bifurcação bastante significativa, na cota dos 1360m. A tendência natural é se manter na vereda principal, ainda margeando a encosta serrana que agora toca na direção sul (indo de encontro á trilha oficial do parque), mas a inscrição numa rocha indica seguir outro caminho á esquerda, isto é, pra leste. E é esta rota que tomamos sem pestanejar, agora perdendo um pouco de altitude indo de encontro a um estreito vale. A mata então novamente se adensa sob a forma dum chaparral de samambaias e alguma mata ciliar, em meio a grotas traiçoeiras e uma oportuna bica que murmura em meio as pedras.

Na sequência abandonamos o vale através de uma escalaminhada bem sussa por trilha mais acidentada e estreita, mas que começa a apresentar uma beleza impar na geologia da paisagem, uma vez que somos recebidos por uma enorme pedra com formato de “Moai”, aquelas estátuas da Ilha de Páscoa. E assim as 10hrs, na cota dos 1390m, chegamos num lugar que apelidamos de “Cidade de Pedra” justamente pelas belíssimas formações rochosas espalhadas ao redor. Dependendo da imaginação é possível ver índios, dinossauros, águias ou até elefantes naquele cenário pitoresco. Aqui tivemos um breve pit-stop pra fotos e algum descanso.

Cidade de Pedra

Pedra do Índio

Daqui a vereda ganha novamente os altos descampados, primeiro pro sul e depois pra leste, subindo suavemente através dum inconfundível carreiro de quartzito em meio á belas sempre-vivas, que dançavam á brisa matinal. Mas foi aqui que o caminho se tornou confuso não apenas pelo nevoeiro que se adensava cada vez mais, como pela trilha que sumia a todo momento. Pois é, se o tal “dedo rochoso” estivesse visível não teria erro em seguir em frente, o que me obrigou a fazer uso da bússola apenas pra garantir que estávamos na direção certa. E felizmente estávamos. Foi aqui também que tropeçamos com uma dupla de jovens mineiros que também ia pro pico e estava “mais perdida que cego em tiroteio”, e que decidiu se juntar a nós na empreitada. Eles, curiosamente, chamavam o “dedão rochoso” de “pedra do Joinha”, mostrando assim que cada um vê aquilo que deseja ver.

Uma vez na direção certa não tivemos dificuldade em reencontrar a trilha logo adiante, tocando outra vez pra sudeste. E assim, após cruzar alguns focos arbustivos e trechos com brejo, fomos perdendo altitude indo de encontro a um amplo vale alocado quase no sopé do maciço principal da Serra do Itacolomi, que ainda teimava em ocultar sua cumieira nas brumas. No caminho, na cota dos 1423m, cruzamos com uma simpática capelinha com uma imagem quebrada de Nossa Sra de Aparecida, cujo charme era que era toda feita de pedras. Pausa pra fotos, claro, uma vez que o altar deve ter sido erguido pelos antigos trabalhadores (e escravos) que cruzavam penosamente a serra pra trabalhar nas antigas fazendas que havia na região.

Capelinha de Nossa Senhora

Cabeceiras do córrego Belchior

Logo adiante, as 11hrs e após quase 5,3km andados desde o início da trilha, cruzamos os simpáticos lajedos e caldeirões por onde correm as cabeceiras do Ribeirão Belchior. Sim, ali mesmo na cota dos 1430m tivemos mais uma parada não apenas pra descansar, como também pra abastecer os cantis com água cristalina descendo diretamente das entranhas da serra. O lugar é bem bonito pois o córrego, depois de formar poços e banheiras, despenca na forma de várias cascatas montanha abaixo, pra depois seguir seu sinuoso curso contornando a serra pra depois desaguar na Represa do Custódio, ao sul.

Após molhar a goela prosseguimos nossa ascensão de forma mais constante, agora com a picada desviando pro sul e subindo forte a encosta do vale supracitado, cruzando muitos focos de mata ciliar e muitos trechos terrivelmente erodidos. O chão firme de terra se alterna ora num terreno coberto de folhas ora em degraus lisos e escorregadios feito sabão, redobrando nossa atenção a cada passo dado. Mas não demora pra emergir em terreno aberto pra não apenas sentir a brisa refrescar o rosto suado como reparar o tempo abrindo lentamente, permitindo visualização gradual da cumieira da serra. Desnecessário dizer que ficamos extremamente felizes ao ver o tempo soprando a nosso favor.

Cascatinha

E assim as 11:45hrs atingimos a crista principal da serra, na cota dos 1600m intercepta a trilha oficial do parque. A vista se resume a um extenso e vasto platô com muitos cocorutos emergindo a oeste, enquanto no sentido oposto se podia ver nosso caminho trilhar em suaves ziguezagues, pra leste, os menos de 150m de desnível que nos separavam do alto. Dessa forma fomos vencendo lentamente este trecho mais aberto e exposto que os anteriores, onde a vegetação mudava totalmente e os afloramentos rochosos emergiam do solo com muito mais frequência, sempre cercados de capim mexendo ao vento. Neste trecho a Lau encontrou uma rara planta carnívora, que pra mim passara despercebida, além de se brindar com uma breve parada pra mastigar uma maça.

Flora típica do Espinhaço

Após os ziguezagues, onde bastava olhar por sobre o ombro pra ver todo a extensão daquele platô, a vereda segue seu rumo derradeiro na direção nordeste, bordejando por estreito caminho o penhasco do vale do Belchior. Na sequência, vem um breve trecho de árdua escalaminhada e pronto, alcançamos o mirante principal do alto do Pico do Itacolomi a exatas 12:30hrs!! Ali, empoleirados em respeitáveis lajotas de pedra a quase 1700m, se fica de frente pro tal “dedo de pedra”, cuja imponência agora é vista de outra perspectiva e se assemelha mais a uma “barbatana de tubarão”, acompanhada de outra pedra menor. Sim, apesar da pedra maior ser o destaque do cenário, o nome Itacolomi significa “pedra menina” (em tupi) e se refere justamente a esta rocha menor, que fica ao lado da grande e quase não é visível de Ouro Preto. Para os antigos índios da região as pedras eram “mãe e filha”.

Chegando no platô principal

Ficamos então um tempão ali naquele belvedere rochoso curtindo a paisagem, enquanto o tempo abria esplendidamente como que celebrando nossa conquista daquele dia. Além das escarpas do Itacolomi finalmente se descortinar pra gente, uma estupenda paisagem se abre no quadrante norte, escancarando a minúscula Ouro Preto aos pés da abaulada Serra do Veloso, seguida da escarpada silhueta da Serra de Ouro Preto e, com esforço, é até possivel ver o inconfundível recorte da Serra do Caraça. Fora isso, é possível observar as torres da Embratel que coroam o Morro do Cachorro, bordejado logo no início da pernada. Pausa demorada pra contemplação e pra beliscar um delicioso lanche, que teve até presença dum passarinho atrevido que veio mendigar alimento diretamente da nossa mão.

Depois do descanso resolvemos ir pro cume verdadeiro do pico, afinal onde estávamos era apenas o mirante mais tradicional visitado, do alto. O cume mesmo estava mais pro sul, e pra isso bastou cruzar o capim que dançava ao vento naquele inicio de tarde e desviar das pedras aflorando naquele trajeto. E assim, após uma subida que passou até despercebida, ganhamos as lajotas e rampas rochosas dos 1772m que assinalam o ponto mais alto da Serra do Itacolomi. Dali realmente se tem uma vista panorâmica que inclui todo quadrante leste, que por sua vez privilegia todo restante da cumieira da serra, além de visualizar Lavras e Mariana em cada extremo. Além disso, é possível avistar formações a quase 80km, como o Pico do Itabirito, a Serra da Piedade (Caeté) e a Torre Alta Vila (Nova Lima). Reparei também que é possível uma travessia até Mariana pelo alto da serra, pois observei vários caminhos indo em direção da cidade vizinha, e só não me animei em percorrê-los pois a idéia naquela ocasião era apenas de bate-volta. Portanto fica aqui a dica da viabilidade dessa pernada.

Panorâmica do topo do Itacolomi

Vista frontal do “Dedo de Pedra”

Tendo nossa missão cumprida, por volta das 14:15hr decidimos que era hora de retornar pelo mesmo caminho. Mas não sem antes passar pela “Pedra do Rei Leão”, um impressionante afloramento rochoso que parece um enorme míssil apontando pra oeste e que lembra muito a pedra onde o simpático leãozinho Simba, na famosa animação da Disney, foi apresentado aos habitantes da savana. Pausa pra mais fotos, claro, e só depois disso que começamos efetivamente nossa descida, no exato momento em que começava a chegar um ou outro visitante esporádico pela trilha oficial do parque.

Pedra do Rei Leão

Adeus, Pico do Itacolomi

A descida, como sempre, foi muito mais ágil e rápida que a subida. Mas como o sol estava a pino e o calor, cozinhando miolos áquela altura de meados da tarde, resolvemos fazer uma oportuna parada pra nos refrescar nas banheiras naturebas formadas pelo Ribeirão Belchior. Afinal, não havia pressa alguma em voltar cedo pra casa, não? E tome tchibum trás tchibum naquelas águas tão frias quanto translúcidas, que vieram a calhar naquele momento de sufoco infernal das 15hrs. Aliás, algo que nos chamou a atenção em todo trajeto foi a ausência de lixo, e o pouco que encontramos na forma de embalagens (de bolachas, balas, salgados, etc) fizemos questão de trazer junto, fazendo assim a nossa parte de preservação ambiental.

Claro que na volta teve tchibum!

O resto da chinelada serra abaixo transcorreu sem novidades, apenas com a constatação que a montanha agora parecia outra. Iluminada pelos tons alaranjados do final de tarde e sem nenhuma nebulosidade ocultando as escarpas, podiamos apreciar cada detalhe que nos fora negado durante a subida, inclusive novos rostos e bichos na “Cidade de Pedra”. E assim, após vencer o último vale e retomar o amplo caminho alvo de quartzito pela encosta, pudemos olhar pra trás e nos despedir da Serra do Itacolomi e seu fantástico pico, agora exibindo com todo esplendor e majestuosidade o seu famoso “dedo rochoso” em riste, no alto, apontando prum céu azul, limpo e isento de qualquer interferência atmosférica. Só pisamos no asfalto as 17:40hr pra então seguir rumo onde estávamos hospedados. Mas não sem antes passar num boteco e degustar a breja local, a deliciosa Ouropretana!

Pra finalizar aviso de antemão que a rota aqui descrita neste relato é apenas um dos vários caminhos alternativos de acesso ao pico que nascem a margem da BR-356, utilizados geralmente por jovens trilheiros ouropretenses em suas aventuras. A rota noroeste, especificamente, não oferece nenhuma dificuldade técnica desde que o tempo colabore. Se estiver nublado, o que é bem comum, é recomendável algum conhecimento de navegação (artesanal ou eletrônica) pois na metade do trajeto a trilha some em mais de uma ocasião e pode confundir os mais despreparados, a exemplo dos próprios mineiros que encontramos lá e que supostamente conheciam bem o caminho. Assim, independente das denominações de “dedão rochoso”, “barbatana de tubarão” ou até “pedra do joinha”, o cume deste belo pico vai ainda continuar sendo por muito tempo o “Farol dos Bandeirantes”. Sim, mas agora norteando desbravadores atrás de outro tipo de riquezas: as belezas naturais e cênicas que somente as montanhas mineiras conseguem proporcionar.

 

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

5 Comentários

  1. Flávio de Campos Bannwart em

    Ótima matéria ! Fiz uma trilha até o Itacolomi que em muito coincide com a de vocês. Acho que passei pelas mesmas banheira naturais. Parabéns!

  2. Belo relato, Jorge! A pernada até Mariana realmente existe e vale muito a pena ser feita. A boa notícia é que você tem um bom motivo para voltar!

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