Relatos são produções humanas. Assim, sempre são plurais, enviesados e imperfeitos. Me agrada acreditar que contribuo, de alguma forma, com o montanhismo, no registro e no disponibilizar de informações relevantes aos que almejam trilhar a imensidão desse nosso pequeno globo chamado Terra.
Busco a tola convicção que equilibro os parágrafos entre o ser por demais sucinto e o abusar na prosa, registrando, na qualidade possível, boa parte do processo envolvido numa travessia da envergadura que completamos. Peço que perdoe a prosa prolixa e o registrar de informações que possam parecer pouco contribuir para o pleno entendimento da aventura em que nos provamos.
O quarteto formado para esse desafio era forte, “à prova de bombas”. Eu, que vos escrevo, o Douglas Garcia, a Amanda Mascaro e o Rafael Santos. Essa formação somava décadas de experiência em trilhas, perrengues e aventuras. Personalidades harmoniosas e habilidades complementares permitiam apostar no êxito da empreitada. O avanço na saúde da mãe tornou inviável que a Amanda se afastasse de SP por mais que alguns poucos dias. Buscamos entre os amigos que sabíamos serem resilientes para suprir a vaga deixada pela sua saída e naturalmente convidamos o Cláudio Macedo, que havia trilhado conosco na AC em 2023. Convite feito, convite aceito. O elevado nível técnico do grupo agora dispunha de um aficionado por registros visuais, fosse em fotos ou vídeos. Não é nenhum exagero registrar que as melhores imagens da nossa pernada, tem o seu olhar equilibrado por trás. Nossa previsão era para a segunda quinzena de julho, período de férias do Rafael. Marquei minhas férias para o mesmo período. Posteriormente, haveria remanejamento do período de férias dele e, portanto, do nosso período, para a primeira quinzena. Dentro do período planejado, pegaríamos a primeira janela favorável. Nesse tipo de atividade, há dois erros a se evitar: 1º, fixar data de início e ignorar a realidade do tempo climático e, 2º aguardar uma janela perfeita, dispensando janelas “viáveis”. No primeiro caso, incorre-se em grande risco de, no mínimo, notável insucesso por afrontar a Natureza. No segundo caso, o risco é perder uma janela “boa”, na espera de uma janela “ótima” que não chegue. A jornada que pretendíamos era longa, pedia pelo menos 8 dias de tempo bom dentro dos 10 dias regulamentares. O décimo primeiro dia, limite de tolerância para a conclusão exitosa seria nossa “margem final”, a ser usada apenas de uma tempestade inviabilizasse o deslocamento em algum dos dias.
Passamos a acompanhar atentamente a evolução do tempo, procurando entender quando seria o nosso momento. Dentro do horizonte de tempo de que dispúnhamos, obtido com o sincronismo das férias laborais e obrigações judiciais, entre o dia 3 e o dia 20/7, a janela que se desenhava era agreste, sofrida.
Entraríamos na montanha nos estertores de um período chuvoso, com o tempo melhorando conforme progredíssemos. Se tudo transcorresse como previsto, até o dia 12 o tempo alternaria períodos de baixa pluviosidade com períodos de sol. A partir de domingo, 13, o tempo viraria para chuva e assim permaneceria até onde a previsão permitia analisar. Os modelos de previsão numérica apresentavam alguma divergência, de forma que adotei como referência a previsão do modelo ECMWF que apresentara maior acurácia nos meses precedentes à nossa travessia, quando cotejado o previsto com o observado em campo durante as incursões prévias para ajustes de infraestrutura (reposição de livros de cumes cruciais para segurança) e instalação dos pontos de ressuprimento.
No que podemos chamar de dia 0, parti de São Paulo na companhia do Douglas Garcia, no ônibus das 13h. De Cotia, pouco antes, partira o Rafael Santos. Nosso ponto de encontro seria a rodoviária de Curitiba, onde o Cláudio
Macedo nos aguardaria para prosseguirmos sob a direção segura do Leonardo da Silva Costa até a fazenda Lírios do Vale. Ali, a dona Lígia, previamente avisada de nossa chegada nos franqueara a passagem pela sua propriedade.
Fizemos os últimos ajustes nas mochilas sob um incipiente e, pelo que esperava, breve chuvisco. Confiantes de que a previsão do tempo se alinhava com a realidade que nos aguardava, abandonamos alguns recursos, por julgarmos demasiado o zelo original. Cometi a imprudência de deixar dois ponchos de emergência junto com as coisas para retorno à SP. Outros fizeram similar. Nas horas seguintes, todos teríamos o pensamento retornando aos recursos que, ousados, havíamos abandonado nas cargueiras que ficavam na civilização. Talvez neles estivesse a chave para a conclusão exitosa da nossa pernada. Elementos críticos que abandonáramos, poupando gramas de peso nas cargueiras, mas que nos sobrecarregaria os pensamentos por muitas horas no primeiro dia de caminhada.
Nossa aproximação, sob chuva fraca e constante e temperatura baixa, na faixa dos 10°C foi concluída às 2h da sexta feira. O fino chuvisco que logo nos abraçou foi, não é exagero dizer, saudado por mim. Parecia ser a confirmação de que a previsão de que dispúnhamos representava o que ocorreria. Porém, se a chegada desse chuvisco era prevista, sua persistência nos surpreendeu. Meu eterno otimismo fizera das suas, e ante a possibilidade de termos garoa e neblina no primeiro dia, retruquei “estaremos acima das nuvens”. A chuva que duraria cerca de 2, talvez 4 horas, persistiria, ainda que intermitente, por todo o nosso primeiro dia. Muitas árvores, de pequeno e médio porte estavam tombadas sobre a trilha, certamente pelos ventos de alguma frente fria que ocorrera após a nossa passagem em junho, na travessia entre as fazendas Lírios do Vale e da Bolinha.
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Dia 1 – 4/7/25
Nosso primeiro dia se inicia na Ponte Indiana Jones (Rio Cotia), às 2h da madrugada. Seguindo o regulamento proposto, uma vez dada a largada, temos 240 horas para percorrer os 87 km do trajeto “riscado” pelo Elcio Douglas que, em 2019 efetuou a travessia ACE inaugural na companhia do Israel Silva e André Frazon. Reserva-se 24 horas de “cortesia” à uma excepcionalidade e não entram no tempo de que julgamos dispor. Registre-se que esses 87 km são “limpos”, ou seja não somam erradas, desvios ou descaminhos entre cada cume, garganta ou vale. A chuva nos persegue, gelada e insistente. Permaneço absorto, introspectivo a maior parte do tempo, focado em seguir o passo moroso e seguro do Douglas. De outras caminhadas em situações limite, aprendemos na pele, a lição de manter um passo constante, na velocidade do elemento mais lento do grupo. Hoje, nesta pernada, esse posto lhe coube. Mais que incitá-lo a acelerar, insistimos que mantenha o foco e ande na celeridade possível. À frente, Macedo e Rafael esbanjam vigor, vencendo pequenos lances de 40, 50 metros antes de interromperem a subida para nos aguardar.
Caminho como fecha-trilha, apreciando a madrugada cruenta que nos oferta a Face Leste do Ferraria e buscando manter as roupas secas no limite do possível. Meu passo é lento, resultado do aprendizado na tentativa da Monstruosa inicial, onde o afã de ganhar metros rapidamente nos fez descobrir as cabeças e encharcar as roupas. Terminamos essa investida em um bivaque não intencional, emergencial mesmo. E aprendemos. Agora, a caminhada não era célere, mas constante. Equilibrávamos o calor que ascender a Face Leste fomentava com o abrir das ventilações das jaquetas ou com o retirar de parte das roupas. Ao alcançar a crista, a maior exposição às rajadas de vento reduziu a sensação térmica e houve quem reforçasse as camadas de proteção contra as intempéries. Eu testava uma jaqueta feita pelo Falcão Negro Montanhismo em material usualmente empregado para a confecção de caiaques infláveis. A resistência à passagem d’água, bastante elevada e o baixíssimo absorver de água na trama fazia supor que poderia ser uma grande aliada para essas pernadas em condições mais delicadas.
Subimos na contagem regressiva para o clarear do dia, quando esperamos que o chuvisco estie. Passamos pelo lance mais técnico, conhecido e temido “degrau” às 5h50. O elevado nível técnico do grupo permite que superemos os lances de corda sem maiores percalços. Às 6h40 fazemos uma breve pausa, coletando água na gruta para um chocolate quente servido pelo Macedo. Arrumamos as tralhas e retomamos a caminhada, com um pequeno perdido na sequência, rapidamente superado pelo trabalho em equipe.
O dia amanheceu cinzento, um pequeno estio trouxe, ainda uma vez, a expectativa que o tempo abrisse e o sol firmasse. Parcialmente abrigados pelas florestinhas próximas ao cume, torcíamos por um vento que limpasse o céu do manto plúmbeo que o cobria. Fiz uma parada para descobrir como me aliviar sem retirar as duas calças que usava. Foi menos complexo do que havia teorizado. Tendo me servido da pazinha pela primeira vez nessa caminhada, me sentia muito disposto e de excelente humor. Apertei o passo até alcançar o grupo e procurei recuperar o fôlego enquanto vencíamos os últimos metros até o cume. Chegamos ao cume do Ferraria às 8h50, com 6h40 de caminhada desde a ponte indiana Jones e quase 10 horas sob condições desgastantes. Fizemos uma rápida parada para registro no livro de cume, um curto lanche e tornamos a vestir as cargueiras para iniciar a longa descida ao colo entre o Ferraria e o Taipabuçu.
Com o dia claro, um pouco impaciente, tomei a frente do grupo por algum tempo apertando o passo numa descida menos morosa. Já iniciando a subida, encontrei uma garrafa de GATORADE perdida, provavelmente por algum corredor que passara por ali nos dias precedentes. Essa química não me apetece e passei a garrafa para o trio, sabendo que apreciariam o mimo inesperado. Alcançamos o cume do Taipabuçu às 11h40 e o Rafael nos comunicou que decidira abortar, descendo para a fazenda Pico Paraná. Estamos molhados e gelados. Ele informou que não consegue se manter aquecido. Tento motivá-lo a prosseguir conosco, lhe ofertando a blusa de merino que pegara na véspera ou a jaqueta de pluma, que seguia muito bem protegida. A verdade é que, nesse momento, ainda não cogitávamos desistir, mesmo assim acredito que tenha passado pela cabeça de cada um a dúvida sobre quem era o sensato ali: o Rafa reconhecendo a dureza dos dias que nos aguardam e capitulando, prudente, ou a do trio que permaneceria na montanha, resistindo às duríssimas condições que nos assolavam.
Com o nascer do dia e o ganho de altitude, as condições não haviam se amenizado. Ao fino chuvisco intermitente, se somara a queda na temperatura com o ganho de altitude e o vento que, quando alcançávamos trechos expostos nos castigava em congelantes rajadas. A temperatura ambiente recuara dos 10 graus iniciais, oscilando entre 4 e 5. A sensação térmica, considerando que estivéssemos secos, era de 0ºC. Com as roupas e os corpos molhados, a nos parecia estarmos numa geladeira, sob temperaturas negativas. Parar, por pouco que fosse resultava em um tremer do corpo incontrolável. Descendo do cume do Taipabuçu, nos despedimos do Rafa que seguiu pela direita em direção ao banho quente e retorno a partir da fazenda Pico Paraná. Pegamos o acesso à esquerda que nos levou ao colo entre o Taipabuçu e o Caratuva. Esse colo, permite substancial economia de tempo e esforço, mas engana aqueles que esperam um acesso célere entre os dois cumes. No passado, já fomos pegos nessa vã esperança, de forma que dessa vez apenas subíamos, sem muito prestar de atenção ao progresso quando fomos surpreendidos pela impressão de que o cume se avizinhava aos nossos passos. Tentando manter a inabalável fleuma de quem já não espera nada da vida além de um subir sem fim sob a chuva, refutei as opiniões de que estávamos muito perto. Foi grande a alegria de nos descobrimos tão perto, e de algum lugar, arrumamos mais forças e vencemos os metros finais até o camping e, finalmente, a caixa de cume do Caratuva para os devidos registros. Fizemos um breve lanche e retomamos o caminhar, agora descendo a Trilha da Conquista, bastante enlameada. Na passagem, já quase na chegada ao A1, recuperamos os lanches de trilha que havíamos armazenado ali durante os preparativos. Aproveitei a pausa para retirar a lente de contato do olho direito que me incomodava há bastante tempo, com algum cisco que ficara preso. Lavei o olho com soro fisiológico em abundância e decidi ficar as próximas horas com lente em apenas uma das vistas. Compensaria a queda na acuidade visual e redução da noção de profundidade com maior atenção e o emprego do bastão para “tatear” antes de firmar o pé.
Deixamos as tralhas no A1, enchemos os bolsos dos lanches de trilha e partimos, às 16h11 para o grande desafio do dia, o ataque ao Pico Paraná. Sabíamos que a noite nos alcançaria no retorno, de forma que todos pegamos duas lanternas de cabeça. Para dar conta da maior exposição ao vento, inevitável nesse trecho, reforçamos os agasalhos. Subimos de forma cuidadosa, sem atender aos anseios do corpo por mais velocidade, agora que o peso das cargueiras não nos lastreava. Cumeamos o Pico Paraná às 18h18, fizemos os devidos registros e tratamos de fugir dali.
A descida foi efetuada sob o mesmo cuidado, sabíamos que nossos reflexos estavam prejudicados em função da longa exposição ao frio e chuva. Alcançamos nossas tralhas às 20h30 e, imediatamente vestimos as cargueiras e partimos para o derradeiro trecho do primeiro dia, com destino ao Itapiroca, onde faríamos o pernoite. Ali, à esquerda da trilha para o cume, havíamos estabelecido nosso primeiro ponto de suprimentos. Até alcançarmos o cruzo para o Itapiroca, pouco falamos, concentrando energias nas tarefas finais do dia. A jornada fora longa e desgastante e ainda projetávamos que o mais delicado seria o momento de montar acampamento, no cume varrido pelo vento e pela chuva. No cruzo, tomei a frente e apertei o passo, buscando alcançar o ponto que havíamos pensado para o acampamento. Ao chegar, às 22h40 constatei que o local não apresentava significativa proteção para o vento que soprava, carreando chuva nas rajadas. Retirei a cargueira e estudei algumas alternativas para as barracas, todas pouco atraentes. Pouco depois o Douglas e o Macedo chegaram e, ao lembrarem que no acesso ao cume havia pequenas áreas de florestinhas, foram conferir e encontraram um pequeno refúgio, que permitiria que nos abrigássemos do vento. Enquanto montávamos acampamento, o Douglas tentou resgatar os mantimentos que havíamos previamente instalado, sem sucesso. Eu me recolhi na barraca, retirei as roupas molhadas, que ficaram largadas ao lado da barraca, vesti as secas e caí para dentro do saco de dormir. Pelo que me contariam, alternaria roncos com gemidos pelas 3 horas subsequentes. O Macedo preparou cerca de 400 ml de chocolate quente para cada, que lançou em garrafas plásticas fechadas. Usei como aquecedor, por um longo tempo antes de abrir e consumir. Também ofertou se alguém queria que preparasse umas das sopas que levávamos. Cedi o pacote de queijo coalho assado e um doce de leite ao Douglas, comi mais alguns doces e tratei de me recompor com uma noite de sono.
Dispomos apenas da carga de gás do Macedo e das minhas pastilhas de combustível sólido, que frente aos tremores das minhas mãos não eram opção para aquecimento. Douglas comunicou que, no dia seguinte, ao acordar, desceria para a fazenda Pico Paraná, abortando a travessia. Naquela hora e naquelas condições concordamos que bastava, não fazia sentido continuar numa provação tão desgastante.