Hipotermia – grave risco negligenciado em um país subtropical

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O que a hipotermia, clinicamente definida como a queda da temperatura central abaixo dos 35°C tem a ver com fatalidades em um país associado culturalmente com o sol e o calor?

A combinação de roupas molhadas e exposição ao frio pode ser fatal. Foto: Blake Cheek

No excelente MEDICINA DE EMERGÊNCIA EM ÁREAS REMOTAS, primeiro livro editado no Brasil nessa área, o capítulo voltado à hipotermia reporta não serem frequentes fatalidades no cenário nacional. É certo, afinal em nosso país são raras as baixas temperaturas de latitudes temperadas, cujo potencial de causar hipotermia é de maior grau. Mesmo assim, tratemos de estressar o ponto: em águas frias, sob temperaturas corporais ainda acima dos 35°C pode ocorrer de prejudicar o sistema muscular de forma que impeça a natação. Em decorrência, a vítima submerge, aspira água e se afoga. Causa mortis, afogamento. Sob exposição à chuva e vento, com capacidade cognitiva prejudicada, o caminhante erra o caminho, sofre grave queda resultando em múltiplas fraturas. Causa mortis, hemorragia, concussão cerebral. Um escalador, com a capacidade cognitiva prejudicada pela exposição ao frio, descuida dos cuidados devidos ao equipar-se, solta-se da corda e choca-se contra o solo. Novamente, causa mortis: hemorragia, danos cerebrais. Tratarei esses exemplos hipotéticos como “hipotermia funcional”: perda da capacidade de reagir adequadamente seja devido à perda da capacidade motora, seja pelo prejuízo na tomada de decisão.

Esses exemplos hipotéticos nos alertam que não é a “causa mortis” que nós, como esportistas, devemos combater ao lidarmos com o meio ambiente durante as atividades outdoor. Quando  hemorragias, afogamentos etc. ocorrem, estamos nos derradeiros elos da cadeia de eventos de uma fatalidade. Tais condições “finais” serão tratadas por especialistas, com a presteza possível. Meu objetivo aqui é trazer a reflexão do ponto “ótimo” de ação para evitarmos que essa sequência se instale ou prossiga. Não “só” isso, mas apontar ações efetivas para lidar com os fatores contribuintes.

Habitamos um país de dimensões continentais, predominantemente tropical, cujas montanhas não alcançam 3.000 m de altitude resultou em certo relaxar da atenção dispensada ao tempo. Nossa população se apresenta bastante concentrada nas cidades, onde o abrigo das condições ambientais, em maior ou menor grau, é de amplo acesso. Não temos, no nosso dia a dia urbano expressivo impacto pelo uso de vestes leves. Mesmo as campanhas solidárias “do agasalho” ocorrem apenas durante os meses mais frios. Esse clima pode enganar o praticante de atividades ao ar livre. Não se atenta, normalmente, para o fato que a temperatura decai com o ganho de elevação. Perde-se 1°C a cada 300 m de incremento na altitude. Como exemplo, a Pedra da Mina, na Serra Fina, registra temperaturas 6°C abaixo do observado em Passa Quatro distante poucos quilômetros. Como lidar com o risco da hipotermia em atividades ao ar livre, seja acampando em montanhas ou em um trekking de bate e volta a uma cachoeira?

Em adianto: PREVENÇÃO. Como? Equipamento adequado. Conhecimento prévio dos riscos, e cenários assim como das medidas de controle e mitigação. Ações conscientes, adotadas com prontidão. Abrigar-se, retroceder, monitorar os companheiros de caminhada, interromper o caminhar e providenciar ambiente “protetor”.

Como prevenir:

Nesse sentido, traremos informações obtidas na literatura especializada a que tivemos acesso. Agradecemos as diversas contribuições e ressaltamos que as conclusões e interpretações são nossas, que somamos algumas décadas de experiência nas trilhas, em condições por vezes bastante ruins. Eventuais críticas, ressalvas e correções devem ser direcionadas apenas a nós.

Vestimentas. Uma roupa simples e leve, apresentará resistência a transferência de calor entre 0,6 e 0,8 clo (clothing). Como referência, um terno completo (costume + colete) apresenta clo = 1. Uma roupa técnica, para frios mais intensos apresenta clo entre 2,3 e 3,6. Há vestes que são eficazes secas, mas que uma vez molhadas, colapsam sua estrutura e perdem praticamente toda a capacidade isolante. Algodão e plumas sem repelência são exemplos.

Envelhecimento. Vivemos num momento em que a população está envelhecendo rapidamente e fugir para as montanhas, tem se popularizado e as atividades ao ar livre como forma de lidar com a estressante rotina urbana. Com o avançar da idade, degrada-se a capacidade sensória do ambiente e a termorregulação, prejudicando a reação aos extremos de calor e de frio. Ao que parece, a parte cardiovascular é a mais afetada. O adequado acompanhamento médico não pode ser descuidado.

Gênero. De forma geral, mulheres apresentam a temperatura central um pouco superior a de homens. Com o emprego de roupas pouco eficazes (clo baixos), tendem a apresentar aumento na perda de calor durante a menstruação que pode ser expressivo (até 40% ).

Biotipo. A perda de calor é atenuada pela gordura corporal, e pessoas “mais compactas” tem menor área exposta ao ambiente. Configuração mais vulnerável: indivíduos magros e esguios.

Vento. A capacidade do ar de remover calor do corpo cresce proporcionalmente com a velocidade com que se desloca. A sensação térmica é uma tradução desse fenômeno e pode ser obtida em sites especializados, ou calculada através da temperatura do ar e velocidade do vento. Como exemplo, ar a 5°C, saturado de água (sem chuva) sob rajadas de 50 km/h produzirá sensação térmica de -12°C, condição tipicamente presente numa entrada de frente fria, em ambiente de montanha, próximo de cursos d’água.

Chuva. O ambiente chuvoso aumentará a capacidade de remoção de calor em até 300 vezes ao verificado com ar seco. Sob baixas temperaturas, a ocorrência de chuvas e ventos intensos cria a condição de ambiente mais agressiva ao esportista.

Alimentação. O corpo hipoglicêmico tem a termorregulação prejudicada por redução no metabolismo e, por conseguinte, na produção de calor.

Exaustão física. No frio, a termorregulação dependerá do calor produzido pelo metabolismo, dos tremores e da restrição à perda de calor obtida pela vasoconstrição. Nesse cenário, a musculatura exausta não será capaz de contribuir com a produção de calor. Evitar caminhar até a exaustão, a menos que se alcance abrigo e suporte clínico-emergencial na chegada. Em caso de dúvida, pare, proteja-se do clima e aguarde. Exige planejamento prévio, equipamentos.

Álcool, drogas e medicamentos. Podem prejudicar a termorregulação ao inibir a vasoconstrição, retardar a percepção do ambiente e reduzir o metabolismo ou os tremores.

Heterogeineidade. Grupos de esportistas tendem a ser diversos em aptidões e características físicas, intelectuais e emocionais. É crucial bom equilíbrio entre os integrantes e que as decisões tomadas considerem a variedade de atributos e competências. Caminhar “até a falha” do mais resistente impedirá que os demais integrantes colaborem na preparação de um abrigo de emergência e que estejam capazes de cuidar de si próprios.

Velocidade. Caminhar mais célere não é eficaz como medida de aquecimento. Potencializa o risco de exaustão física em movimento, e principalmente, ao parar. Nesse momento, as ações de exposição e abrigo precisam ser tomadas com celeridade e assertividade. Ritmo adequado é aquele que pode ser mantido quase que indefinidamente. Apressar o passo apenas será conveniente se o alcance do abrigo for certo e a redução do tempo de exposição, expressiva.

Afterdrop. A pessoa hipotérmica ao ser aquecida externamente, pode ter a vasoconstrição atenuada, permitindo que o sangue alcance o tecidos superficiais, resfriando-se. Ao ser difundido pelos região central pode promover a queda na temperatura dos órgãos nobres. Com o esportista consciente, promover a ingesta de alimentos adocicados, preferencialmente aquecidos.

Como não se tornar vítima:
  1. Considerar no planejamento condição de tempo medianamente pior que o prevista. Erros nas avaliações do tempo ocorrem. Superestimar as capacidades, també Acidentes, idem. Para lidar com essa incerteza, coloque na mochila, ainda que para ataque, bate-e-volta e sem pernoite prevista, equipamentos adequados. Aprenda sobre o sistema de camadas para vestimentas, com roupa seca, tenha consigo capa de chuva descartável, cobertor de emergência (preferência reutilizável, pela maior resistência a rasgos) e poncho de emergência.
  2. Dispor sempre de condições de aquecer algum alimento. Nesse sentido, sopas instantâneas e chás são os de mais simples preparo. Uma espiriteira, álcool e uma caneca pequena pesam cerca de 200 gramas, no conjunto. É menos que um cartucho de gá
  3. Caso se faça necessário, abrigue-se do vento atrás de uma pedra ou descendo até um bosque, vale ou colo menos exposto. Apenas sentar-se já reduz sensivelmente a perda de calor em função do vento.
  4. Manter-se atento aos companheiros de pernada, visando identificar alterações importantes na destreza e coordenação motora. Tremores são esperados e mantida as condições de exposição ao frio, seu cessar indica expressivo agravamento do quadro hipoté
  5. Disponha de roupas secas, protegidas com pelo menos duas camadas de plástico confiá Sacos para pescados ou vegetais, comuns em supermercados, são eficazes para evitar a entrada de água, mas são frágeis. Uma segunda camada pode ser obtida com um plástico mais espesso, tipo “para gelo”, somando resistência mecânica à perfurações.
  6. Disponha sempre de um apito de emergência, não daqueles “do doce”. A voz humana não se propaga a distância maiores com eficácia, e, gritando, ela acaba rá
  7. Disponha de uma lanterna de cabeça e pilhas sobressalentes. Uma inesperada caminhada no escuro pode se fazer necessá No lado sombreado de uma montanha, dentro da mata, pode escurecer até 3 horas antes do pôr do sol. As negras nuvens de uma eventual tempestade, podem fazê-lo ainda mais cedo.
  8. Invista sempre em conhecimento (peso 0g) e equipamentos de qualidade. Conjuntos (kits) prontos devem ser testados antes de se confiar a vida (sua e dos companheiros) a eles.
  9. Esteja atento e haja. Identificados os primeiros elos de uma situação de hipotermia, tome a ação prontamente, seja vestindo uma capa de chuva, poncho etc. Considere a distância/tempo para alcançar um abrigo frente as condições do grupo, revisando a viabilidade de prosseguir/retornar periodicamente. Não aguarde que a situação fuja do controle para começar a agir.
  10. Esteja atento a uma potencial hipoglicemia, por prejudicar o mecanismo de produção de calor do corpo e aumentar o risco de evolução para hipotermia. Disponha de alimentos com elevada densidade energética, tais como doces, por exemplo.
Para aprofundar:

Thompson, R. L., Halyard, J. S. Wet-cold exposure and hypothermia: thermal and metabolic responses to prolonged exercise in rain (1996)

Vogelaere, P., Pereira, C. Termorregulação e Envelhecimento (2005);

Gonzalez, R. R., Blanchard L. A. Thermoregulatory responses to cold transients: effects of menstrual cycle in resting women (1985)

Xu, Xiaojiang, Tikuisis, R. G., Gonzalez, R., Giesbrecht, G., Thermoregulatory model for prediction of long-term cold exposure (2004)

Tikuisis, P. Predicting survival time for cold (1995)

Medicina em áreas remotas no Brasil (2019) cap. 23 — vários autores. Editores: JULIANA R. M. SCHLAAD e SASCHA W. SCHLAAD

Artigo escrito por

Rogério Alexandre – Montanhista amador e por Denis Bento – Profissional de Educação Física

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