Agudo Catita – A Montanha Secreta

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05 de junho de 2015 – Era por volta de meio dia, quando eu e meu grande amigo Raffael Galápagos conquistamos o Agudo Cuíca, após desumano laboro na construção da trilha pro mesmo. Explorando as cercanias do cume, observei de cima de uma rocha, algo deslumbrante e intrigante. Era uma grande e bela formação montanhosa a sudeste, totalmente inédita a meus olhos, mesmo após várias décadas remexendo estas terras selvagens e acidentadas.

Elcio Douglas no Agudo Cuíca, com o Agudo Catita ao fundo, em 2015.

Para domar o Agudo Cuíca, tivemos que enfrentar em suas impiedosas encostas íngremes, uma verdadeira batalha contra a terrível vegetação emaranhada, repleta de arbustos duros e retorcidos, armados até os dentes com um arsenal de caraguatás pré-históricos e suas impiedosas espadas, afiadas e pontudas. Vitoriosos e destruídos, tivemos nos campos do topo a merecida trégua. O que não esperávamos, era que com a recompensa do cume, viesse junto um bônus extra: uma nova montanha, um novo desafio. Ali nascia um sonho, para acabar com nosso sono por anos, até que fosse conquistada.

Naquela ocasião, diante do avistamento, tornou-se turvo até mesmo nosso próximo objetivo do dia, que era o Agudo Marmosa. Afinal, não havia mais certeza alguma de quem era quem no cenário. Pois o pequeno morrote na sequência do Cuíca, nem com muita imaginação poderia ser considerado um agudo. Afinal, estes são caracterizados por amplos platôs de inclinação suave, seguidos de abismos insólitos e insondáveis, que despencam abruptamente. Concluímos então, por óbvio, que o Agudo Marmosa deveria ser a nova e intrigante visão que tivemos. E, se fosse mesmo, seria impossível atingi-la naquele dia. Diante da dúvida, até descemos rumo ao divisor de águas, mas desistimos de galgar o irrelevante cocuruto. Optamos por descer um contribuinte do rio Forquilha, merecidamente batizado de rio Xexelento, por razões já esclarecidas em outros relatos.

De volta à civilização, decidimos fazer um teste: marcamos num mapa virtual nosso avistamento como sendo o Agudo Marmosa. Não demorou muito até aparecer montanhistas virtuais contestando nossa marcação, e apontando indignados nosso equívoco. Era tudo que queríamos! Agora não havia mais dúvidas da descoberta de uma montanha virgem, desconhecida, secreta, inominada, só esperando para ser (por nós) conquistada.

Antes de corrigir a marcação, escolhemos um nome pra o achado: Gralha azul. Além de ser uma homenagem a ave símbolo do Paraná, também entraria em consonância os demais morros da região com nomes de pássaros (Tangará, Corocoxó, Araponga). Feita a correção e com o novo nome no mapa, os questionamentos cessaram.

Passou-se um ano, e em 2016, juntamente com outro grande amigo, o Israel Silva, retornamos afim de consolidar a Interagudos. Outra vez, ficamos deslumbrados com montanha. Mas estávamos empenhados no projeto de um novo traçado para a travessia Alpha Crucis, chamado Alpha Crucis Express (ACE). Havia uma lista interminável de roçadas inéditas pela frente, afim de viabilizá-la, estas se estenderiam até metade de 2019, quando finalmente a travessia foi realizada.

Não foi fácil jogar o projeto de uma nova conquista para o fim da fila. Além do mais, isso era desolador e preocupante. Havíamos feito um ótimo trabalho na abertura da trilha ligando os Agudos Cotia e Cuíca, que agora estava totalmente pronta e consolidada. Certamente isso resultaria num número crescente de montanhistas visitando o Cuíca. Sem dúvida estes teriam a mesma visão que nós, e os olhos brilhariam. Então seria pura sorte ninguém ter disposição e agenda livre, para buscar o Gralha Azul antes da gente.

Vista desde a montanha secreta. Da esquerda para a direita: Agudo do Marmosa, Agudo do Cuíca, e Agudo do Cutia.

Felizmente a montanha nos esperou, e 2020 prometia ser o ano que da conquista. Mas daí veio o ataque biológico chinês Covid-19, e arrasou com o mundo, melando nossos planos.

Durante a pandemia e com o mundo engessado, sobrou tempo para ficar em casa estudando imagens e cartas topográficas no computador. Então percebi um equívoco a respeito do nome escolhido para a montanha. O perfil dela era de um agudo, assim como os demais da região. Não havia sentido algum chamá-la de morro, com nome de pássaro. Se tratava de um “5º agudo” na Serra do Mar do Paraná. Desta forma decidimos rebatizá-la, seguindo a linhagem das demais.

Raffael Galápagos e Israel Silva, apontando para o Agudo Catita, em 2016.

Após cuidadoso estudo, visando encontrar animais semelhantes a lontras, cotias, cuícas, e marmosas, surgiu na pesquisa um pequeno marsupial morador da mata atlântica: o catita. Este é o cara. Trocamos o nome de morro Gralha Azul, para Agudo Catita. E, para não ser injusto com a ave símbolo do Paraná, consagramos outro morro nas adjacências do Tangará também a ser conquistado, com este nome.

Já no início de 2021, ficou decretado que na primeira oportunidade da temporada, o projeto finalmente sairia. Até porque, havia uma grande urgência em virtude de um pressentimento recorrente. Algo me dizia que se não fossemos bem logo, outros iriam. Afinal, desde 2015, havíamos deixado várias pistas, e até comentado com alguns sobre a ideia. Isso sem contar a própria marcação em mapas virtuais. Foi muita sorte ninguém se interessar, ou ter disposição de enfrentar a quiçaça virgem. Se isto tivesse acontecido, seria realmente devastador e imperdoável para nós. Afinal era uma descoberta nossa, e uma conquista inédita, que nos aguardava pacientemente, há anos. Se alguém fizesse, a culpa seria toda nossa. Para nós restaria o sabor amargo do fracasso, do arrependimento, e da derrota, diante de nossa inércia. Teríamos que nos conformar que as conquistas são daqueles que vão lá e fazem, e não dos que ficam apenas no planejamento, com o traseiro repousando tranquilamente no sofá.

PROJETO CATITA

Com a chegada do outono, as condições climáticas começam ficar mais favoráveis. Sempre de olho em previsões, comecei monitorar potenciais finais de semana de tempo bom. Assim que surgiu, criei um grupo de whatsapp chamado PROJETO CATITA. Nele, recrutaria algumas vítimas para a roubada. Macaco velho no assunto, sabia que se quisesse quatro numa viatura, deviria convocar pelo menos oito, e assim o fiz.

Como sempre, por um motivo ou outro, alguns pularam da carroça. Quando finalmente chegou a hora, em 22 de maio de 2021, apenas um trio de malucos restou: Eu, Raffael Galápagos, e Carlos Eduardo Branco (Cadu). Pronto! Está aí um bom time.

Na noite da véspera, não bastasse estar cientes do desafio que os esperava, ainda tivemos que tolerar mandingas como danças da chuva, e macumbas de encruzilhada, promovidas por alguns desistentes inconformados com nossa determinação em prosseguir. Mas estávamos tão focados, que nada nos abalaria, nem mesmo a chuva profetizada para madrugada, horas antes da nossa partida. Afinal, a mesma profecia rezava que ainda na manhã de sábado, o sol voltaria a brilhar e iluminar nossa jornada, frustrando assim trabalhos de índios e macumbeiras.

Era 22:00 de sexta, quando o céu estrelado deu lugar a pesadas nuvens. Por sinal, isso foi logo depois de uma maldita dança da chuva ser compartilhada por um certo índio desertor.

Às 3:00 da manhã de sábado o dilúvio caiu. O combinado era que se durasse até a hora do despertador, voltaríamos pro berço e aguardaríamos o amanhecer pra decidir o que fazer, e assim fizemos.

Quando era 7:30 voltamos a conversar virtualmente. Como previsto, a chuva havia cessado. Então começamos de novo agitar a ideia. Até peguei a bike por volta de 9:30, e fui ver se a serra estava visível. Voltei animado após avistar o Marumbi, e decidimos que era hora de partir. Rafael passou 11:00 lá em casa, e quinze minutos depois no Cadu, de onde partimos rumo a Graciosa.

Início da aventura, na Casa Garber.

Pelo caminho, fomos observando o tempo cada vez melhor. Chegando na Graciosa, já havia sol. Na Garber, depois de pagar R$40,00 pro caseiro Ciro pelo estacionamento, iniciamos resolutos, às 12:15, nossa caminhada rumo ao Marco 22.

O Cadu, com o qual caminhávamos pela primeira vez, parecia um rádio ligado, tagarelando o tempo todo. Já fui logo avisando que éramos silenciosos nas trilhas, falando apenas o necessário. Pedi que não levasse a mau nosso silêncio, em nítido contraste com seu falatório.

Quando a estrada de chão encontrou a Graciosa, avistamos o Agudo do Cotia, e também o Agudo Catita, nosso destino. Tentamos ainda usar a ligação via trilha até o Marco 22, mas com o mato fechado e nosso atraso, optamos pela estrada mesmo.

Estrada da Graciosa.

No recanto Eng. Lacerda havia uma barreira sanitária de Covid parando veículos. Nós a pé, passamos despercebidos, e às 12:50 chegamos no Marco 22.

Sem intercorrências e com céu azul, às 14:45 estávamos no topo do Salto Mãe Catira, fazendo uma breve pausa para descanso e registro.

Igualmente sem imprevistos foi a caminhada entre o salto e o local que batizamos de Bivaque Remanso, onde chegamos por volta de 16:15. Para quem segue rumo a Garganta 235, este é o ponto onde se deixa o rio Mãe Catira. Recebeu esse nome porque é onde o mesmo fica bem calminho.

Salto Mãe Catira.

Finalmente chegou a hora de abandonar o conforto da trilha, ligar o GPS, e varar mato, navegando pelo traçado cuidadosamente desenhado na tela do PC, sobre cartas topográficas georreferenciadas, da forma mais otimizada possível.

O tempo continuava perfeito e ensolarado. Nosso plano, devido ao adiantado da hora, era seguir até onde desse, aproveitando até a última gotinha de luz. Quando escurecesse, montar o bivaque selvagem para pernoite.

Iniciamos os trabalhos de navegação. Ficou definido que eu iria na vanguarda, navegando e quebrando mato virgem, e amarrando eventualmente alguns fitilhos azuis. Já os amigos viriam logo atrás, pisando melhor o terreno, e fazendo pequena marcas de facão nas costas de árvores grandes, afim de sinalizar nosso retorno. A ideia desde o início, não era abrir trilha, e sim cortar o mínimo de vegetação possível, avançando no mais puro estilo “vara-mato”.

Dique de Diabásio, ponto marcante da caminhada.

Na selva densa, virgem, e fechada, vencemos apenas 300 metros em duas horas. Tempo suficiente para a noite nos alcançar. Há tempos já vinha procurando por um local razoável pra bivaque. O único que encontrei, precisava melhorar muito para ser assim considerado. Concluímos que não havia vantagem alguma em ficar por ali. Até porque essas duas horas varando mato virgem, significava menos de quinze minutos para retornar pelo chão já pisado, e marcado por três, e assim ter uma noite digna no Bivaque Remanso. A decisão em retornar foi unânime, e chegamos no rio já no breu da noite. Descansamos um pouco enquanto escolhíamos as opções de bivaque. No meu caso e do Rafael, poderia ser no chão ou na rede de selva. Com céu limpo e estrelado, optamos por rede, e começamos procurar árvores para instalação. Cadu sem outra opção além do chão em seu primeiro bivaque, tratou de cortar uns bambus, e usou uma lona para improvisar uma estrutura tipo barraca canadense, garantindo assim um teto.

Acampamento estabelecido, só restava seguir alguns prazerosos rituais em meio a natureza selvagem. Pra começar, um bom e gelado banho de rio. Primeiro foi o Rafael, e depois eu. Cadu não quis encarar. Já limpo, só restava curtir o embalo da rede, esticado sobre o isolante e coberto com uma manta, comendo e bebendo, enquanto ouvia Cadu se gabando de suas habilidades em construir cabanas artesanais estilo Tarzan.

Meu jantar foi só de besteirinhas frias, como salgadinhos e bolachas. Mimosa de sobremesa. Já os amigos, esnobaram na gastronomia gourmet de fogareiro. O Cadu então, levou até bacon para misturar rapidamente nas lentilhas, evitando assim que algum vegetariano de plantão, aceitasse o que mal lhe bastava.

Entretanto o luxo mesmo veio do Raffael. O cidadão teve a petulância de puxar da mochila uma caixa de Ferrero Rocher, daquelas gigantes, com uma dúzia. Não satisfeito, ainda sacou uma garrafa de hidromel, de produção própria, com taça e tudo. Antes de alguém se pronunciar, já foi logo disparando: “Isto é para comemorar a conquista, lá no cume do Catita!”. Era o que faltava para o ponteiro de motivação de conquista do 5º agudo, colasse no máximo.

Antes de adormecer, ainda dei uma bela organizada nas coisas para que não ficassem espalhadas. Deixe de fora apenas água, lanterna e celular. Deitado na rede, via as estrelas e a lua cheia, com seu facho de luz branca atravessando o dossel da floresta. Uma linda e calma noite, sem vento. Tudo estava tão perfeito, que até parecia um sonho.

Impressionante que com tantos anos de montanha na Serra do Mar do Paraná, ainda não tenha aprendido a conter palavras e pensamentos elogiosos sobre condições climáticas. Isso, não raramente, desperta certas entidades sobrenaturais zombeteiras da floresta, que barganham com São Pedro só pra ver montanhistas se foder. E então, se cagam de rir da cara dos otários.

Dito e feito! Às 21:00 não havia mais estrelas, e 22:15, ouvi um farfalhar sobre a mata. Quis muito acreditar que se tratava de uma brisa sacudindo as folhas. Cai na real quando gotículas começaram pousar suavemente na cara do trouxa. Pulei da rede feito um raio. Sem perder um segundo, esvaziei a mochila para sacar lona de bivaque e acessórios que estavam, como sempre, por último. Rapidamente instalei um aparato sobre a rede, o qual foi mais do que suficiente para garantir que aquela maldita garoa não me atingisse. Pronto! Feliz de novo! E de novo, caí no erro de comemorar.

Já passava de 1:00 da manhã quando despertei com um distante estrondo, a sudoeste. No fundo do meu ser, já sabia muito bem o que era o estrondo, porém me recusava em aceitar. Preferi acreditar que se tratava de um jato, ou rojão, ou uma pedreira com pedidos atrasados. Fiquei imóvel, estático, esperando não ouvir o próximo. Então um clarão fraco, e logo depois, a ficha caiu: Trovões! Aquilo passou feito um rolo compressor sobre meu ser, esmagando sem piedade minhas melhores expectativas. Ainda tentei recorrer a um veredito final com o amigo:
Rafael, por favor cara… me diz que isso que ouvi, não foi um trovão! Mas ele, sem nenhuma compaixão respondeu: Pior que foi!

Ainda havia uma última esperança. A tempestade poderia estar nos desviando. Mas um novo e forte clarão, seguido de uma potente explosão bem mais próxima, tratou de esmagar de vez, e impiedosamente esta última esperança. Não foi nada fácil aceitar aquela cruel e devastadora realidade, e o impacto sobre minha boa sorte, foi imediato. Tive que saltar imediatamente da minha confortável situação, e reformular totalmente o acampamento. Afinal a lona que havia instalado sobre a rede, protegia de uma garoa leve e sem vento. Mas seria uma grande piada sem graça, diante da monstruosa tempestade que se aproximava.

Saltei da rede rápido, iluminado pelos relâmpagos, e comecei desarmá-la. Peguei a lona de 2mx1,4m, e o kit de cordeletes, elásticos, e espeques, e montei a tenda bem próxima ao chão, levemente inclinada em forma de rampa para evitar acumulo de água, e resistir a ação do vento. Puxa pra lá, estica pra cá, tudo na correria e na escuridão da noite, só rompida pelos clarões dos raios, cada vez mais próximos. Ao acabar de montar, já ouvia o barulho da chuva desabando nos arredores, e o spray da mesma pulverizando nosso acampamento. Não havia mais dúvidas que seríamos atingidos em cheio. Por fim estendi o isolante térmico, me cobri com a manta, e recolhi tudo que ainda estava pra fora do precário abrigo. Rafael também se preparou como pode para o pior. Já o Cadu, como havia dado o melhor de si na montagem do bivaque, só restou aguardar confortavelmente em sua cabana, esperando que resistisse aos severos eventos que batiam a sua porta.

Em pouco tempo, o típico e assustador ruido de chuva forte desabando sobre a selva, avançou com força sobre nós. Relâmpagos, raios, e trovões eram tão frequentes, que mantinham a selva iluminada de forma quase contínua. Os raios caiam cada vez mais próximos. Um deles caiu a menos de 500 metros do acampamento. Resignado e indignado no meu mocó, estava realmente impressionado com a potência avassaladora dos competentes trabalhos, feitos por macumbeiras lazarentas e índios morféticos, de plantão.

Por horas fiquei ao embalo do batuque da chuva caindo naquela lona amarela, colada na minha fuça. Mas ter montado a mesma a apenas 30cm do solo, foi decisivo para me manter seco e aquecido. Ainda assim, as vezes era atingido por estilhaços de pingos rebatidos nas folhas. Se manter equilibrado no isolante de meio metro de largura era um desafio, especialmente quando precisava mudar de posição. E foi neste embalo que a noite foi passando, e a chuva desabando.

Às 4hrs despertei e já não chovia mais. Tentei ver estrelas nas frestas da folhagem, mas só vi nuvens, e adormeci de novo. Já clareava quando acordei de vez. A tonalidade azulada da alvorada sempre traz a falsa esperança de que o céu está azul. Que decepção! Estava uma grande merda. Daí vem aquele desânimo total. Trocar o bem bom, pelo inferno molhado logo ao lado. Pior ainda saber que serviço que tínhamos pela frente, já não seria fácil nem mesmo com tempo ótimo. Só em pensar, já ficava deprimido, e mais irritado que a tormenta da noite.

Bivaque Remanso – Amanhecer após tempestade noturna.

A princípio, até tive a ideia de deixar o acampamento armado para que secasse, pois por um breve momento, até vimos uma pequena brecha de céu azul cercado por nuvens laranjadas. Nem deu tempo de comemorar, e já escutamos ao longe uma maldita trovoada. Injuriado pensei: Vai si fude crise hídrica! Quero conquistar essa montanha com tempo bom!

Diante dessa nova assombração, mudei de plano. Poderia estar desabando água na volta, e não seria legal desmontar o acampamento debaixo de chuva. Aproveitamos que ainda não chovia, para desmontar o bivaque molhado, e ensacar tudo. Antes de terminar, as trovoadas já estavam bem perto, e voltou a chover. Entre as frestas das árvores, víamos no céu cinza contrastando com o branco da chuva grossa, caindo na diagonal. Nunca esquecerei a fisionomia desolada do Raffael, ao observar esta cena deprimente. Enquanto Cadu se embrenhou na mata para fazer necessidades, Raffael com semblante preocupado me disse: “Talvez fosse bom a gente reavaliar se devemos prosseguir!” Nesta hora tive que travar uma batalha comigo mesmo para responder que esta alternativa estava fora de cogitação. Argumentei que chegar até ali nunca é uma tarefa fácil, e que retornando, estaríamos novamente correndo o risco eminente de perder a conquista para qualquer fura-zóio. Busquei forças do além, e completei dizendo que prosseguiríamos nem que fosse debaixo de tempestade, e para não ver nada do cume. A missão agora era chegar lá, deixar o livro de registro, tirar uma foto, e voltar.

Cadu e seu bivaque artesanal.

Neste meio tempo Cadu voltou. Mas ao invés de colocar a mochila nas costas, foi procurar uma dita capa que havia extraviado. Como já passava das 8, e eu estava de saco cheio, apenas avisei que não iria esperar ninguém por mais nenhum segundo naquela chuva, e já fui me enfiando na picada.

De bermuda com sempre, minhas pernas já estavam dilaceradas pelo vara-mato do dia anterior. Então cada galho que esbarrava, parecia uma navalha. Claro que isso piorou muito depois que continuamos a navegação do ponto onde paramos no dia anterior. Seguia na frente varando mato e fazendo a navegação, quando a chuva engrossou. Num surto de raiva e revolta, parei subitamente, olhei pra cima, e proferi aos berros: “ISSO É TUDO QUE TEM PRA HOJE? É SÓ ISSO MESMO? QUERO MAIS, MUITO MAIS! CADÊ AS PORRAS DOS RAIOS? NADA DESSA MERDA IRÁ ME PARAR!”

Os amigos se olharam assustados, mas nada disseram. Simplesmente continuamos. Inacreditavelmente, cerca de 20 minutos depois, a chuva simplesmente parou. Mais uns 10 minutos, e já havia aberturas de sol e céu azul. Em menos de uma hora, o céu estava completamente limpo e ensolarado, seguido de um forte vendaval que sacudia toda a floresta, e derrubava toda a água das folhas. Em pouco tempo o cenário se transformou completamente. Os amigos ficaram até impressionados, mas certamente alguém lá em cima ficou mesmo foi com pena da miserável criatura indefesa.

A progressão passou a evoluir muito bem. Como havia previsto, a vegetação era de bosque. Apenas em alguns pontos específicos, piorava. Procurava contornar os obstáculos, sempre buscando pelas melhores passagens. Os amigos vinham logo atrás, quebrando matinhos, cortando o mínimo, e fazendo pequenas marcas em árvores com o facão.

Após cruzar um terreno pantanoso, começamos a subir uma pequena encosta, até que interceptar um rio mais encorpado. Era bem diferente dos diversos córregos que cruzamos. Batizamos de rio de Catita. Era belo e agradável, com pouca água correndo entre rochas cobertas de musgos centenários. O cenário lembrava muito o Rio do Meio, na Serra da Farinha seca. Notei que a subida pelo leito estava no azimute correto. Então não perdemos a prazerosa oportunidade de seguir por tão belo recanto. Em menos de quinze minutos, subimos cerca de duzentos metros, e chegamos na nascente. Certamente ali seria a último ponto de água.

O encantador Rio Catita.

Continuamos subindo pelo belo bosque, e dentro do pequeno vale, até atingir o divisor de águas entre Tangará e Agudo Catita. Nossa conquista estava cada vez mais próxima, e as copas das árvores balançam cada vez mais forte, como se estivessem comemorando nossa chegada.

Num cocuruto, abriu-se uma janela entre a vegetação. Eufórico, gritei aos amigos que viessem ver o que estava vendo. Ao chegarem, observamos abismados, os abismos dos agudos da Cotia e Cuíca. A reação foi espontânea e inusitada. Um olhou pro outro, e começamos a berrar forte e alto, feito uns loucos. Foi uma comemoração pitoresca e inesquecível, que superou até mesmo a comemoração do cume. Afinal, ali tivemos o primeiro e inédito contato visual, pertinente ao Agudo Catita. Foi sem dúvida um momento marcante em nossa epopeia.

Deste mesmo lugar ainda vimos, uns 250 metros à frente (e 60 de desnível), a própria pirâmide do Agudo Catita. Como não poderia ser diferente, era formada por vegetação transitória entre floresta e campo. Nossa boa sorte acabou! Trata-se de uma trama densa de arbustos rudes, duros, retorcidos, na altura do peito, emergindo numa rampa com inclinação média de 45 graus, que odeia montanhistas, e faz de tudo para evitar sua progressão. Resumindo: Fodeu!

Antes de começar subir forte, levando quiçaça brava no peito, ainda descemos um pouco e encontramos um último filete de água, correndo tímida. Depois disso, adeus moleza. Nem a adrenalina da conquista, já ao alcance dos olhos, amenizava a dor que sentia nas canelas destruídas. Por vezes, o único alívio era berrar alto de dor e raiva, proferindo uma avalanche de palavrões. Costumeiramente, este tem sido o alto custo final que as montanhas virgens tem cobrado para nos entregar o cume.

Levamos intermináveis 45 minutos para vencer este inferno. Mas de novo a vegetação medonha fracassou na tentativa de nos impedir. Eram 12:42 quando liberei o grito de vitória cume no Agudo Catita, denunciando aos amigos que vinham logo atrás, que o desafio estava vencido.

Enquanto vinham, fui abrindo uma clareira para nos acomodar. Assim que chegaram comemoramos a conquista euforicamente, aliviados pela sensação do dever cumprido, e meta atingida. Finalmente tínhamos, sob nossos pés, o Agudo Catita, ou o 5º Agudo, ou ainda a montanha secreta.

Os camaradas tomavam um fôlego quando decidi abrir um caminho que levasse até um mirante. A vegetação de cume ficava acima da cabeça, e não permitia ter o visual contemplativo incrível que sabíamos existir.

Inédito visual dos Agudos, a partir do mirante do Agudo Catita.

Segui a nordeste da clareira, por uns 25 metros. Tive que fazer contorcionismo para me desvencilhar da densa multidão de arbustos que tentavam a todo custo me impedir, rangendo seus troncos ao ritmo do tremendo vendaval que se instalou nas últimas horas. Eis então cheguei num beiral. Pude apreciar entre os galhos, o espetacular e inédito cenário que se descortinava. Com o facão, dei uma boa limpada para desnudá-lo totalmente. A visão dos agudos, era espetacular. Não resisti e fiz as primeiras fotos, e então retornei para chamar os camaradas. Diante da paisagem, novamente berramos de euforia até ficar roucos.

Ali passamos mais um bom tempo antes de retornar a clareira para blindar a conquista no mais alto estilo. Bebemos hidromel em taça, e degustamos os finos bombons levados pelo camarada Galápagos. Ao mesmo tempo, fiz o primeiro relato no livro de cume personalizado que levei. Os amigos assinaram no final. Já eu, ironicamente, acabei esquecendo.

Raffael Galápagos, e nosso convescote no cume do Agudo Catita.

A abertura final da pirâmide do cume, acabou tomando mais tempo que o esperado. Já era mais de 13:30 e tínhamos que retornar. Numa última ação, Raffael usou um cordelete para fazer uma alça no tubo de PVC verde militar onde ficaria o livro de cume, e o pendurou num arbusto. Mais algumas fotos, e ensacamos as tralhas pra iniciar o retorno. Eram 13:48 quando dissemos até logo pro Agudo Catita.

Comemorando nossa conquista em auto estilo.

No início da descida, ainda nos campos, perdemos o rasto uma vez. Rapidamente reencontramos. Adentrando a mata, as marcas estavam bem mais visíveis, e evoluímos rápido. Chegando na nascente do Rio Catita, descemos cautelosos até encontrar a fita azul indicando saída à direita. Depois disso, hora ou outra perdíamos o rasto fresco. Mas em seguida já reencontrávamos, e o avanço foi satisfatório. Levamos 1h40min para voltar ao Bivaque Remanso. Fizemos breve pausa de cinco minutos antes de continuar, agora só por trilhas consagradas.

Iniciando o retorno. Até breve Catita.

A nova meta era avançar o máximo possível antes de anoitecer. Queríamos chegar pelo menos ao recém batizado – Rio do Cruzo – sem precisar lanternas. A caminhada fluiu bem e rápida, sem maiores novidades. Passamos o Dique de Diabásio, e fizemos a tradicional pausa no Salto Mãe Catira para finalizar a pouca comida que restava. Eram 16:40, e tínhamos pouco mais de uma hora de luz.

A meta de atravessar o Rio do Cruzo sem lanternas, foi alcançada. No outro lado, aproveitamos para sacar as lanternas. Agora seria só administrar bem a caminhada, que em uma hora estaríamos no Marco 22. No final, ainda dei um último gás e tirei uma certa distância dos amigos.

Eram 19:10 quando atingi o Marco 22. Sentei na escada de pedra para descansar. Os carros que subiam a Graciosa jogavam a luz dos faróis direto na minha cara, depois de uma curva. A maioria não entendia o que aquela criatura fazia ali aquelas horas, sentado no chão, na escuridão, no frio, apenas de bermuda e camiseta. Fugindo a regra, uns poucos sabiam muito o que significavam estes seres esquisitos e fedorentos: “Só podem estar aprontando alguma travessura das grandes na serra”. Foi o que aconteceu com um carro que passou, e o maluco não resistiu em colocar a cabeça pra fora e gritar: “Aí sim hein!!!”. Este obviamente este já esteve nesta mesma situação, pensei. Já no dia seguinte, tive minha dedução confirmada.

Cerca de 15 minutos depois, o Cadu emergiu da selva, sozinho. Comentei que não foi boa ideia deixar Rafael pra trás. Se o cara não aparecesse, teríamos que entrar novamente na trilha para encontra-lo. Nem foi preciso! Galápagos é bugio velho da região, e em pouco tempo brotou para completar o time.

Equipe reunida, agora seria só seguir rumo a Casa Garber e finalizar a trip. A noite estava bem gelada, e para esquentar, estiquei o passo. Ao chegar no carro às 20hrs, ainda levei um pito do caseiro, pelo atraso de duas horas. Nem dei ouvidos para a ingenuidade do cidadão. Numa empreitada deste calibre, duas horinhas de atraso, é o mesmo que nada. O que importava era que, com a chegada dos amigos, estava finalizada a aventura, e com pleno sucesso. Enfim estava conquistado o 5º Agudo da Serra do Mar do PR – O Agudo Catita.

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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

3 Comentários

  1. Grande Elcio: Parabéns pela empreitada! Fenômeno inexplicável e muito interessante estes cumes e sub-cumes que aguardam, pacientemente, pela nossa chegada! Vivenciei situação semelhante na conquista da Serra Chata (Sapopema, 2015) e por ocasião da abertura da Travessia Portal-Serra Grande (Ortigueira, 2020). Seria predestinação? Fraterno Abraço do Norte do Paraná!

    • Grande Farina… Obrigado camarada! Na verdade, acho que tem a ver espirito aventureiro e desbravador, misturado com uma dose meio exagerada de curiosidade, e amor pela quiçaça. Tal combinação, um tanto rara diga-se, faz com que ainda existam coisas a serem conquistadas em pleno século 21. Abraço fera!

  2. Grande empreitada serrana, sem dúvida. Parabéns aos Montanhistas envolvidos!
    Todavia acho que devemos sempre ter cuidado ao nos arvorar à condição de “conquistadores” do que quer que seja. Essa mentalidade, ainda que possa gerar algum estimulo competitivo ou enaltecer o espírito desbravador, próprio do Montanhismo, acaba por soar excessivamente narcisista e auto afirmativa, contrastando com a humildade que o Montanhismo também deveria inspirar frente à magnitude da natureza.

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