Alpha – Ômega parte 1

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A cadeia de montanhas do Marumbi desde os primórdios da ocupação européia na baia de Paranaguá, em meados do século XVI, sempre ocupou lugar de destaque no imaginário das populações locais, mas foi somente no final do século XIX com o início da construção da ferrovia Paranaguá-Curitiba e a chegada dos engenheiros europeus contaminados pela febre do alpinismo que a montanha foi realmente conquistada. Coube ao farmacêutico José Olimpyo de Miranda, o Carmeliano, planejar e executar a primeira expedição conhecida que em 1879 galgou o cume vindo de Morretes, no litoral, pelo centenário Caminho do Itupava adentrando o Rio Taquaral até o Morro da Boa Vista e finalmente alcançar o Monte Olimpo, nome concedido em homenagem a sua ousadia. Mais tarde descobriu-se que de fato o ponto culminante da cadeia pertencia a uma elevação próxima, o Leão, batizado em homenagem a Bento Manuel Leão companheiro de primeira hora do Carmeliano na conquista do Marumbi.

Com as facilidades de acesso oferecidas pela ferrovia e a crescente influencia dos imigrantes europeus, o Marumbi se tornou passeio de final de semana para as famílias curitibanas. Mas foi de fato nos anos da II Guerra Mundial que escalar o Marumbi se tornou uma febre entre as primeiras gerações de italianos e alemães que colonizaram a região de Curitiba. Escalar montanhas tornou-se popular e glorioso a ponto de receber um nome local, o Marumbinismo, que perdurou até a criação do parque e suas inumeráveis restrições a liberdade de movimentação para os novatos ainda não enturmados, ocasionando um lento e gradual esvaziamento do movimento naquela região.
 
Mas o maciço do Marumbi não se restringe apenas ao conjunto de cumes salientes vistos de Morretes, na realidade avança planalto adentro até as proximidades da praça de cobrança do pedágio na BR277. Começa assim pelo Morro do Canal e termina na Esfinge, passando pela Torre do Vigia, Torre Amarela, Ferradura, Carvalho, Sem Nome, Mesa, Alvoradas, Espinhento, Chapéu, Chapeuzinho, Pelado, Bandeirante, Ângelo, Leão, Boa Vista, Facãozinho, Olimpo, Gigante, Torre dos Sinos, Abrolhos e outros cumes menos significativos. 
 
Não existem registros seguros da época exata em que começaram a circular especulações sobre a possibilidade de se abrir uma trilha pela mata atravessando toda a cadeia do Marumbi, do Morro do Canal até a Esfinge, passando pelos cumes principais e muitos a creditam ao histórico marumbinista Paulo Henrique Schimidlin, o Vitamina, que de certo foi muito feliz ao batizá-la com o sugestivo nome de Alfa-Ômega, do princípio ao fim. De imediato a trilha se tornou lendária sem nunca ser materializada ou será que de fato realmente existe rasgando a selva?
 
Histórias, relatos e referências a ela é que não faltam nos círculos bem informados do montanhismo paranaense. Durante os preparativos para o Marumby Trophy’85 o Clube Paranaense de Montanhismo com consultoria de marumbinistas notáveis mobilizou várias equipes em inúmeras incursões para abrir uma extensa picada na região que seguramente atingiu o cume do Mesa, sinalizando-a com fitas vermelhas. Na mesma época o marumbinista Antoninho Palmitero abriu na mata outra picada batizada de Freeway, passando pela Cascata Dourada e até hoje em uso, como parte integrante deste mesmo esforço. A Freeway é basicamente um atalho ligando o Morro Pelado ao Boa Vista que se conecta a trilha Pau do Maneco para no seu extremo atingir a estação ferroviária do Marumbi. 
 
Referências de travessias mais recentes também são comentadas a boca pequena, em círculos fechados só para iniciados, ou estão discretamente presentes na rede. Algumas aparecem apenas em citações veladas, outras em código na impossibilidade de guardar o segredo sem enfrentar a patrulha politicamente correta, mas de comportamento privado agradávelmente incorreto. Existe até mesmo um relato publicado pela revista Vertigem na edição de setembro de 1997 e vez por outra surge algum veterano disposto a romper com o pacto de silencio e discuti-la até em listas de e-mail abertas aos simples mortais deste mundinho pecaminoso.
 
Redescobri-la, se de fato existir, é missão para arqueólogo. Ciência que desde sempre fascinou a humanidade e décadas atrás também forneceu meu instante Indiana Jones ao encontrar os restos da Janela da Conceição seguindo as pistas fornecidas por um caboclo de Morretes. Nada inédito nem muito importante, mas para mim foi emocionante. Primeiro o trabalho de pesquisa, ler mapas, ouvir histórias, montar o quebra-cabeça e formular uma teoria. Depois o trabalho de campo abrindo picadas, conferindo o rumo e estudando os indícios no terreno. Aparece um pedaço de concreto, um cabo de aço e uma ponte encoberta pela vegetação. A picada avança pelo mato bravio abandonado a própria sorte por décadas para finalmente revelar o que restou da ocupação humana no meio da selva.
 
O encontro com os restos do avião Dart Herald da Sadia (Transbrasil) não foi muito diferente. Sua localização no Morro do Carvalho nunca foi segredo e poucos anos atrás o pessoal do Nas Nuvens Montanhismo encontrou partes do trem de pouso da aeronave descansando sobre um cume secundário e marcou as coordenadas no GPS. 
 
O achado no Carvalho não foi fortuito e nem tampouco planejado. Na primeira investida o Johny com alguns amigos avançaram do cume do Vigia para o Ferradura até o grotão no fundo do vale e de lá escalando uma pequena cachoeira estabeleceram uma rota dentro da macega até o Carvalho. Na segunda estava presente juntamente com o Otaviano, o Pedro e o Johny. Choveu ininterruptamente e fez um frio dos diabos. Atingimos o cume do Carvalho em 3 horas e seguimos para o Sem Nome debaixo d’água sem nenhuma referência visual e só podia dar no que deu. De grau em grau, no meio da floresta espessa, a picada perdeu o rumo. 
 
A terceira tentativa foi mais frutífera, com tempo excelente retificamos o rumo e atingimos o divisor de águas no início do vale. Retornei uma hora antes para procurar o avião e sozinho vasculhei todo o cume principal sem encontrar nenhum vestígio. Do alto de uma árvore até que vi o cume secundário a sudeste, mas o avançado da hora, a vegetação fechada e a preguiça me desestimularam em prosseguir. 
 
A trilha tinha avançado demais no coração da morraria para que novas investidas de ataque resultassem em progresso significativo, então na primeira oportunidade partimos com as cargueiras preparadas para um pernoite. Desta feita me acompanharam o Elcio, a Barbara, o Otaviano e a Carol com as coordenadas fornecidas pelo Natan. Depois de caminhar três horas e meia abandonamos as mochilas no chão e partimos para a exploração do cume sudeste vencendo uma vegetação infernal, macega de cume e compactas moitas de taquara até que o Elcio encontrou traços de uma velha trilha e finalmente o trem de pouso descansando numa pequena clareira. Ainda insatisfeitos reiniciamos as buscas pelas inclinadas encostas recobertas pela intricada vegetação e não tardaram a aparecer outros destroços enterrados sob uma grossa camada de folhas secas e raízes. 
 
Alguns pedaços de alumínio da fuselagem descansam entre as árvores e mais abaixo descobrimos toda a turbina partida em dois pedaços precariamente equilibrados na vertente inclinada. Só esta turbina tem mais de três metros de comprimento por um metro e vinte de diâmetro. O que restou do avião está espalhado pela encosta, dividido em fragmentos pela violência do impacto. Sinais de uma tragédia humana que a história registrou enquanto a natureza pacientemente encobriu. 
 
O acidente ocorreu em 03/Nov/1967 vitimando 23 pessoas no impacto e deixando outros 4 feridos que esperaram mais de 27 horas para serem resgatados pelos bombeiros que escalaram a montanha abrindo uma picada. Dos feridos 2 vieram a falecer em hospitais de Curitiba e 2 sobreviveram para contar a história. O curioso é que sobreviveram apenas os que foram arremessados para fora da cabine por não estarem atados as poltronas pelos cintos de segurança no momento do impacto. 
 
A história do resgate é bem mais cabeluda. Foram tempos difíceis em que os recursos humanos e materiais eram muito escassos. O acidente ocorreu as 9:30 horas da manhã com tempo péssimo; chuva e neblina, e os bombeiros foram imediatamente acionados atingindo as encostas do Carvalho pela Estrada dos Mananciais onde iniciaram uma picada. Bateram facão até a exaustão e as 19:00 horas montaram acampamento para o pernoite. Neste mesmo horário, depois de um dia normal de trabalho, alguns poucos montanhistas, Vitamina inclusive, conseguiram se mobilizar e iniciaram a escalada da montanha por outra face. Avançaram noite adentro ouvindo batidas compassadas na fuselagem, gritos de dor e gemidos intensos na medida em que se aproximavam. Chegaram no local do desastre juntamente com a coluna dos militares que reiniciou os trabalhos ao amanhecer. Já havia pouco o que fazer e boa parte dos feridos morreu de hipotermia durante a noite úmida e gelada da Serra do Mar.
 
Comenta-se na região que tudo com algum valor comercial, principalmente alumínio, foi destrinchado e resgatado com o uso de carrinhos de mão e padiolas pela picada aberta pelos bombeiros até a Estrada dos Mananciais, onde seguiu seu destino para reciclagem. Nada se perde, tudo se transforma ou quase isto.
 
Até meados da década de 80, quando a aeronáutica iniciou as operações com os radares aéreos do projeto Sindacta, os acidentes com aviões na Serra do Mar eram demasiadamente freqüentes e seus fragmentos ainda estão espalhados pelas montanhas em lugares de difícil acesso.
 
Duas horas e meia depois retornamos a caminhada descendo as encostas para o fundo do vale, percorremos um perigoso e escuro cânion até encontrar água correndo mansamente sobre um leito de areias brancas e limpas. O lugar era extremamente convidativo para o pernoite e uma rápida exploração nos brindou com uma pequena elevação com terreno ideal para montar o acampamento. O Otaviano e a Carol armaram a barraca, a Barbara montou sua rede de selva entre duas árvores fortes, eu e o Elcio despejamos as tralhas no chão para o bivaque. A comida começou a surgir do fundo das mochilas e mesmo sob os protestos do Elcio, que desejava continuar a caminhar até o anoitecer para depois retornar e dormir no vale, instalamos a cozinha e ligamos o fogareiro.   
 
Tinha minestrone no cardápio. Despejei o macarrão trazido pela Carol numa panela com água fervendo e depois um pacote de feijoada pré-cozida. Alguém se lembrou de trazer sal? Ninguém trouxe o sal! Para sobremesa tínhamos pé-de-moleque, torrone e paçoca que devoramos ouvindo Metálica, SteppenWolf, Raimundos e a banda das Velhas Virgens no celular do Otaviano instalado dentro de um prato de alumínio que serviu de amplificador enquanto a Barbara preparava um chá de gengibre que ficava cada vez mais denso na proporção em que a panela esvaziava.
 
Dormi com a luz da lua vazando pelas brechas da ramagem, mas horas depois acordei banhado em suor. A lua estava encoberta por uma grossa neblina e do alto docel das árvores despencavam grossos pingos de água que se espatifavam sobre a barraca do Otaviano com um som choco enquanto a lona plástica em que se embrulhara o Elcio fazia um barulho igualmente compassado, mas extremamente irritante. Tirei a roupa toda e embrulhei num bag impermeável que usei como travesseiro deixando o sleep bag ligeiramente aberto para diminuir o calor e voltei a adormecer ouvindo o batuque dos pingos d’água.
 
Despertamos com a alvorada e enquanto lavávamos a louça no riacho e preparávamos o desjejum o impaciente do Elcio já tinha se mandado explorar a subida pro Sem Nome. Retornamos alguns metros até o final do cânion onde adentramos numa fenda, à direita, vencendo a elevação e atravessamos um bosque sombrio para depois cruzar outra depressão e alcançar as vertentes da pronunciada aresta que sobe a montanha na direção noroeste. 
 
Com vegetação favorável avançamos até um ombro bem próximo do cume quando desviamos a rota para oeste penetrando numa macega infernal. Vegetação lenhosa, dura e retorcida entrelaçada por taquara fina e resistente que se estende para além do cume. O Elcio e a Barbara ainda seguiram até um afloramento rochoso já na descida para o Mesa, mas mesmo sob protestos dos mais empolgados iniciamos o retorno as 15 horas e no meio do cânion o Otaviano caiu numa greta ficando travado pela mochila cargueira e as pernas balançando no vazio. É uma experiência nada agradável que conheço bem e não pretendo repetir.
 
O Marumbi é uma montanha que tem dono e muitos outros pequenos donos. Um visitante anônimo ou ocasional talvez nem perceba, mas por detrás do aparente desinteresse seus passos são vigiados. Quando as visitas deixam de ser ocasionais certamente haverá hostilidade e um visitante menos anônimo nunca escapará de uma demonstração de territoriedade, mesmo que acompanhado por algum salvo-conduto local. O máximo que o intruso pode almejar é tolerância, desde que respeite a hierarquia que ao arrepio das regras formais estabelece o que cada um pode ou não fazer. 
 
A tragédia da nação já estava desenhada com muita antecedência e mesmo a improvável vitória da oposição não empolgava as cabeças pensantes. Outra vez podíamos escolher entre o ruim e o pior, mas a lei de Murph é irrevogável como a gravidade e as 8:30h já havia cumprido com o dever cívico e só me restava esperar. Depois de passar metade da tarde anterior programando os últimos detalhes coube ao Johny fazer a chamada, começou ligando para o Elcio.
 
– Tudo certo, já foi votar?
– Pois é – mostrou-se reticente – ainda não fui…
– Então corre pra não atrasar – foi atropelando.
– É que, sabe, não vou mais…
– Como não vai? Até ontem estava tudo certo…
– Não vai rolar! Tínhamos tratado de entrar pelo Marumbi e no final você deu pra trás. Vamos ficar três dias no meio do mato sem vista nenhuma, só ralação! Olha o tempo que gastamos abrindo pelo Canal e ainda tem quatro vezes mais. Não vou!
– Cara! O plano foi alterado justamente pra aproveitar o bom tempo e completar esta travessia de vez. Nós vamos e você vai se arrepender se não estiver junto. A previsão do tempo está alucinante e sabe-se lá quando aparecerá nova oportunidade?
– Não quero andar de bobeira naquele mato pra nada. – Começou a ceder espaço. – Como prá nada? Tá viajando?
– Só vou se chegar no Marumbi.
– Tem minha palavra, vamos sair só pelo Marumbi nem que leve cinco dias!
– Mas é sério? Jure que vamos terminar de vez esta porra!
– Se agilize Piá que estamos atrasados. Pegue algumas coisas pelo caminho…
– Puts, que merda, vou ao mercado e passo no Julio.
 
O Johny acompanhado pelo irmão, Lula e pelo Emerson partiram imediatamente apesar de bastante preocupados com a possibilidade de que roêssemos a corda. Para o sucesso desta empreitada há necessidade de muitos braços fortes e corpos decididos no constante revezamento à frente da coluna. Soado o alerta também liguei para o Elcio.
 
– Já está chegando?
– Estou desanimado com esta mudança de plano na última hora e não quero ralar três dias no mato prá morrer na praia.
– Desencana velho! Eles podem até desistir, mas nós vamos até o fim nesta roubada. Dependo de você, tá dentro?
– Já chego aí!
 
Com a meteorologia prevendo bom tempo e nossa determinação para varar quiçaça, toda esta preocupação se demonstraria desnecessária. Seguimos pelo emaranhado de estradinhas de terra com a Solange injuriada e nervosa com a possibilidade de se perder no caminho de volta apesar das inúmeras placas indicando o Caminho Trentino e a BR 277. As 11:00h chegamos na porteira do Seu Zézinho e o tiozinho que cuida do estacionamento nos recebeu com um dedo de prosa. Alegou que nunca subiu no morro, mas anda 9 Km por dia para cuidar do estacionamento e saiu com uma pergunta:
 
– Vocês nem imaginam a minha idade?
Julguei uns 70 anos, mas para ser gentil diminuí 10.
– Cinqüenta e sete – declarou com visível satisfação. 
– Mas forte assim só com uma cachaçinha – completei para diminuir o estrago e o largo sorriso que se abriu revelou o acerto. Na mosca, é pinguço! 
 
O velhinho tem apenas 4 anos mais do que eu, 3 dependendo da margem de erro.
 
Sem mais tempo a perder iniciamos a subida do Morro do Canal com as cargueiras nas costas e o sol fritando os miolos. A porta dos fundos não é ainda considerada parte significativa do império sacro-santo e está liberada para a farofagem desenfreada. Degraus, pontes e correntes afloram quase que naturalmente das rochas mesmo nas inclinações mais insignificantes. O interessante é que nem toda esta parafernália artificialista evita os constantes desvios pelas beiradas. Alguns distantes poucos centímetros da pedra toda equipada com degraus de aço. Com os músculos ainda frios, apesar do corpo quente, a alta temperatura faz o suor escorrer as bicas e vem aquela sensação de que se está fora de forma, muito aquém do que a situação exigirá mais à frente. A mente é atacada pela dúvida, mas a experiência ensinou que basta respirar e caminhar para completar toda e qualquer travessia.
 
Depois de 40 minutos de escalaminhada chegamos ao cume juntamente com um bando barulhento de moçinhas que havia partido sem carga muitas horas antes, descansamos ao sol do meio dia atormentados pelas moscas e por fim as butucas nos puseram para correr. Transferi alguma carga para a mochila do Elcio e tomamos a direção da Torre do Vigia pelos labirintos no cume do Morro do Canal até descer numa bonita e profunda greta. A montanha parecia uma broa partida a faca e o Elcio seguiu para baixo enquanto eu procurava a trilha na direção contrária e minutos depois, no caminho correto, já descíamos um paredão vertical de uns doze metros agarrados a uma corda fixa com os pés entalados numa fissura da rocha. Dalí ao cume do Vigia foi só um instante apesar da confusão de caminhos que se apresentaram e paramos alguns minutos para respirar apreciando a maravilhosa vista da represa com a cidade esparramando-se até o horizonte. É o último mirante aprazível que teremos antes do anoitecer e brindamos isto com suco natural de goiaba.
 
Cruzamos por sobre a pedraria e definitivamente nos embrenhamos no mato descendo suave até o fundo do vale, no riacho. Um gole d’água levemente aromatizado com goiaba para espantar a sede e pouco depois cruzamos pelo cume do Ferradura, descendo abrupto pela encosta oposta. No vale escuro e fresco, paramos para respirar e reidratar com mais calma antes de enfrentar a subida do Carvalho.
 
Retomamos a linha direta e quase vertical estabelecida pelo Johny na primeira incursão, escalando por raízes aéreas e terreno instável precariamente preso às pedras na lateral de uma cachoeira por onde corre um fio d’água cristalina. No crux passamos para o centro da cachoeira escalando um 3º grau com botas de trekking molhadas e cargueiras. Subi os 4 metros da pedra e joguei a perna direita sobre uma bola de terra sustentada por uma raiz na borda oposta para a última passagem em diagonal sobre a cabeceira da cachoeira. Ao largar o apoio ouvi um estalo e o mundo ficou preto. Desci ralando pelas afiadas agulhas de quartzo expostas pela ação da água na superfície da pedra e na passagem o Elcio ainda tentou inutilmente me segurar, indo descansar os ossos na primeira saliência abaixo, de cabeça para baixo, soterrado por um cobertor de lodo e precariamente entalado numa pequena saliência da pedra que me sustentava para não despencar outro tanto. Esperei imóvel até recuperar o fôlego e o Elcio descer para me ajudar a levantar enquanto via a água tingida de vermelho correr pelo degrau seguinte.
 
Estava coberto de lodo e o sangue brotava abundante daquela sujeira. O Elcio ficou muito abalado e enquanto lavava as feridas e procurava por alguma fratura, ele propôs que voltássemos. De alguma forma toda aquela adrenalina bloqueava a dor, mas esta proposta do Elcio me fez perceber que a coisa tinha sido séria, muito séria mesmo. Aos poucos a água foi mostrando o real estrago, nenhuma fratura, mas tinha extensas esfoladuras nos dois joelhos e no cotovelo esquerdo. No cotovelo direito tinha um corte de aproximadamente 1,5 cm que chegava ao osso e jorrava sangue. Julguei que ainda poderia suportar o tranco e parti para cima enquanto o corpo estava quente e a adrenalina alta, mas perdi o chapéu e o Elcio voltou buscá-lo no fundo da grota.
 
Pelo cume do Morro do Carvalho passamos batido sem nos desviar para ver os restos do avião e no vale que antecede o Sem Nome fui direto até a praiazinha com areias brancas lavar corretamente as feridas e fazer uma avaliação melhor. Tomei um banho completo e lavei também as roupas. Da extensa esfoladura no joelho esquerdo vertia um líquido espesso e ardia até com a respiração enquanto do corte no cotovelo ainda corria um pouco de sangue e apenas latejava, mas já não se via o branco do osso. Comemos e nos reidratamos com toda a calma sentados no barranco.
 
Retornamos as gretas, subimos pelas barrancas e cruzamos o bosque para depois de nova depressão galgar a aresta sul em direção ao cume do Sem Nome que atingimos sem nenhuma dificuldade para descer pela encosta leste recém aberta pelo grupo a frente. Muitas pontas de bambu que insistiam em ralar na ferida do joelho causando dor atroz. Vencida uma pequena colina já ouvíamos a conversa animada no fundo da grota e rapidamente nos juntamos ao pelotão de vanguarda que descansava no início da subida. Levaram duas horas para abrir a picada que percorremos em poucos minutos e se divertiam com a invertida do Lula, que distraído, pegou uma garrafa pet com cachaça da mochila do Emerson e deu um golão pensando que era água. Enquanto uma parte descia queimando a outra era expelida num spray que lavou o mato. Na hora nem pensei que poderia usar este líquido corrosivo para desinfetar as feridas.
 
Sobrecarregados com água para o pernoite partimos por entre moitas de taquara e cipó unha-de-gato até encontrar as pedreiras quando passamos a nos esgueirar por entre frestas e gretas medonhas. Buracos de dez a quinze metros que sumiam nas profundezas entre rochas colossais. Alguns expostos, mas muitos disfarçados por debaixo de um manto ralo de folhas mortas e raízes. Subindo sempre, encontramos a escuridão da noite dentro do mato neste mundo dantesco de pedra com troncos podres e retorcidos.  Todos ligaram suas headlamp menos eu que só tinha lanterna de mão e precisava delas para não desaparecer para sempre numa greta, então desliguei das dores e colei no rastro do Elcio tentando me orientar pelas sobras de luz. O grupo dispersou-se por entre o labirinto caótico e próximo das 22:00 horas escalamos uma última pedra para emergir da mata sob o brilho das estrelas e ver as luzes da cidade esparramando-se a noroeste por detrás do negrume das matas e da represa. 
 
Pouco depois emergiu também o Emerson e o Johny que estabeleceram acirrada discussão para descobrir se estávamos na pedra ocidental ou na oriental do cume. Encontrado o consenso foi a vez de o Elcio dar dois passos em frente na quiçaça e notar uma certa instabilidade no que foi seguido pelo Emerson que assustado deu um pulo para trás. Estavam caminhando na copa das árvores, sobre o vazio, sustentados apenas pela trama espessa de galhos e taquaras. Deu-se nova e acalorada discussão entre o Elcio e o Emerson para estabelecer se era possível atingir o solo por ali até que o Elcio resolveu a questão deslizando pela fresta e encontrando chão firme uns três metros abaixo. Seguimos para a pedra oriental na face oposta do cume e passamos por uma depressão que julgamos ideal para o pernoite e ali abandonamos as mochilas. 
 
No alto da segunda pedra encontramos uma caranguejeira pouco menor que um punho fechado aspergindo seus pelos abdominais para tentar nos espantar dali, mas como falhou neste intento foi ela que sumiu no taquaral. A visão noturna de 360º era espetacular e o Emerson ficou por ali enquanto descemos para preparar o jantar. Com o corpo esfriando voltaram as dores e tomei alguns comprimidos antes de ligar o fogareiro. Começou a comilança; sopa, feijoada, macarrão e suco em pó.
 
Continua na segunda parte…
 
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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