Ataque ao Leão

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O Leão é a maior e mais discreta montanha da Serra do Marumbi, apesar de muitos a considerarem uma serra em separado. Oito entre dez montanhistas de fim de semana jamais ouviram falar dela, no entanto é 33 metros mais alta e muito próxima ao próprio Olimpo. Seu nome é uma homenagem a Bento Manuel de Leão, companheiro de primeira hora de Joaquim Olympio “Carmeliano” de Miranda na histórica escalada de 21 de agosto de 1879 quando inauguraram o montanhismo brasileiro ao alcançar o que por muito tempo foi considerado o ponto culminante de nossas serras.

Sua conquista é controversa e ainda desperta muitas dúvidas, mas é provável que tenha sido obra do grupo liderado por Joaquim Antonio Coelho que avançou pelo vale do Rio Iporanga com a intenção de alcançar o mais alto cume da serra pela face oposta a seguida pela expedição do Carmeliano. Conquistando seus objetivos ao mesmo tempo e a curta distância confraternizaram-se aos berros e sinais com os braços simbolizando a dupla vitória. De 1912 se tem notícia de uma expedição dos padres da Companhia de Jesus que encontrando as partes do velho anemômetro abandonadas 10 anos antes no cume do Bandeirantes pela expedição de José Nogueira, carregou-as até o cume do Ângelo a curta distância do próprio Leão e de 1941 existem fotos e o relato de Manfredo Kirchner e Irineu Pedro Bonatto que após pernoite no Leão encontram os restos do anemômetro espalhados no cume vizinho.

Confesso que nunca tinha levado o Leão a sério apesar de já tê-lo avistado inúmeras vezes do Olimpo e até do Pelado, mas com as provocações do Johny e depois também do Natan fui finalmente mordido pela curiosidade de apreciar a paisagem que se avista do alto dos seus 1572 metros de altitude. Maior ainda era minha vontade de vislumbrar o Olimpo do cume do Boa Vista no mesmo ângulo em que o velho Carmeliano o desfrutou no distante inverno de 1879.

Descemos a Serra da Graciosa rompendo a madrugada quente e seca deste final de inverno para deixar o carro no estacionamento de Dna. Izabel pontualmente as 7:00 horas e cruzar o centro de visitantes do IAP com céu claro. Pouco adiante, após passar a ponte pavimentada com trilhos da ferrovia, na Estrada das Prainhas, entramos no mato a esquerda pela Trilha do Guarda em direção a Estação Eng. Lange.

A Trilha do Guarda é de fato um pouco mais curta e rápida que a estrada, mas os reais ganhos são de outra natureza. A não ser que tenha cuspido na cruz ou espancado a mãe, ninguém merece o desprazer de fazer todo este trajeto por aquela estrada monótona e sem graça. Esta antiga trilha segue por terreno úmido e elevado, aprisionada entre os leitos de dois riachos que alegram a frondosa floresta com o borbulhar da água escorrendo por entre as pedras. Cruza o majestoso bosque a sombra de árvores imensas, dentre as quais a própria Mãe da Floresta e termina na última curva antes da Estação, junto ao segundo poste para quem desce.

Na Estação Marumbi registramos o grupo: Pedro Hauck 32 anos, Paulo Marinho 46 e Julio Fiori 56, telefone para avisar a viúva, lanterna e pilhas reservas. Juntamente com outros farofeiros avisamos que iríamos subir pela Trilha Frontal do Olimpo, mas como também não nos foi perguntado, nada declaramos sobre a descida. Esta trilha é muito boa apesar de não estar pedagiada, tem sinalização padrão FIFA, mão dupla, acostamento e degraus que garantem total acessibilidade em toda sua extensão.

Mas o dia já começava demasiado quente e o sol fritava as orelhas ao chegar no último terço da montanha onde paramos a beira do riacho para refrescar o couro e tomar o café da manhã. Gastamos uma boa meia hora morgando naquele lugar e a contra gosto reaprumamos o esqueleto para continuar a subida.

Vinha de uma sequencia estúpida de fins de semana sem praticamente nenhum descanso e os joelhos já sinalizavam com o pisca alerta. Depois de subir o Morro do Sacy pela picada do Jamil Cachorrão e no mesmo dia descer pela crista oposta até o Disco Porto, enfrentei outro ataque ao Pico X debaixo de garoa gelada e na descida do 1º de Maio até a Ponte dos Padres sofri horrores no barro escorregadio deixado pelo Vinicius, Johny e Jurandir que desceram correndo pela encosta. Só o Natan comportou-se como um bom samaritano e acompanhou o velhinho com as juntas endurecidas pelo tempo por todo o trajeto, mas minha vingança foi igualmente maligna. Com as chaves do carro bem guardadas no bolso, os apressadinhos tiveram que esperar escondidos debaixo da ponte, no frio, por longos 45 minutos até chegarmos para trocarem as roupas encharcadas.

No fim de semana seguinte puxei uma cargueira até o Pico Paraná para pernoitar no cume. Ida e volta com peso nas costas debaixo de um calor terrível e agora novamente fritando ao sol na Frontal do Olimpo com o joelho esquerdo estraçalhado e o tornozelo direito reclamando a cada passo. Isto é o que chamam por aí de programa de índio.

No cume recebemos a companhia de um enxame de borrachudos que tinham a predileção por se concentrar em volta de nossas cabeças, zunindo e voando loucamente. Impossível não engolir meia dúzia a cada mordida no sanduíche tal a densidade de insetos ao redor e diante de tanta pentelhação tratamos logo de cair fora dali enfrentando a crista rumo ao Boa Vista.

O rastro por entre as pedras está bem perceptível, mas é só seguir pela crista sem cair na grota à direita que não tem erro. Para se afastar dos precipícios mergulha por alguns buracos à esquerda e escala a face sudeste da Pedra da Lagartixa. Mole, mole para o Pedro e complicada para o Paulo que tem pouca intimidade com a coisa, mas também este obstáculo ficou para trás e mergulhamos no capinzal não antes de registrar as belíssimas vistas que o pedregulho saliente oferece. A trilha segue costeando dois morros por dentro de um túnel de capim até a encosta encharcada do Boa Vista, subindo pelo brejo até uma depressão ligeiramente abaixo do cume seco e gramado.

O Morro da Boa Vista realmente merece o nome e dali os paredões do Olimpo impressionam pela verticalidade. É fácil imaginar a surpresa e o encantamento dos pioneiros ao alcançarem este cume e ver os perigos que teriam pela frente. Impossível não se deter e demoradamente apreciar os largos horizontes e paredões a pique no caos de pedra em que desabam as montanhas do Marumbi até a planície oceânica. Também do outro lado impressiona a morraria coberta de verde se diluindo contra o planalto.

E o Leão nos esperava do outro lado da grota, ao sul com infinita paciência e começamos a descer pelo gramado seguindo uma diagonal a esquerda até uma rampa de pedra maciça coberta de limo visguento e despencamos dentro do buraco pendurados numa velha corrente enferrujada. Debaixo da matinha nebular, a trilha bem marcada atravessa o selado no rumo sudoeste e depois segue a sul contornando as encostas de um morro a direita até começar a subir forte e direta para o objetivo.

Já nos contrafortes do Leão e bem próximo ao término da mata encontramos uma primeira descida d’água um tanto quanto suspeita, mas a seguir apareceu outra correndo forte e fresca por entre as pedras que aproveitamos para matar a sede e não demorou nada para cruzarmos por uma terceira onde numa fresta estavam escondidas algumas latas de ração do exército totalmente enferrujadas e deterioradas pela umidade.

A mata termina e começamos a nadar de braçada no capinzal recheado de caraguatás rumo as uns pedregulhos salientes onde dois urubus nos observavam com curiosidade. Existe ali um bom rastro a seguir, mas este nem faz falta e é só tocar para cima por entre pedras e espinhos e depois de alguns cocurutos enganadores aparece a pedreira do cume contra o céu azul. Lá ainda existem os restos de uma caixa de cume dos tempos do Stamm. Feita de madeira dura abrigando um recipiente de chapa zincada onde ficava protegido o caderno. Resistiu ao tempo, mas não é eterna e já esta bem próxima do fim. Ao lado, uma tosca tabuleta também de madeira rabiscada “Morro do Leão” sobre as letras gregas alpha e ômega.  

Eram 16:00 horas em ponto com o sol ainda queimando no lombo e largamos o esqueleto sobre as pedras quentes para matar o que restava de comida dentro das mochilas, mas então o Pedro surge com uma surpresa do fundo do baú. Saca uma garrafa de vinho tinto e três taças para brindar seus 15 anos ininterruptos de montanhismo naquele cenário dantesco de morros e matas a perder de vista.

Bebendo vinho mostrou-se curioso pelo percurso da Alpha-Ômega e identifiquei o Morro do Canal, o Carvalho e o Sem Nome onde se acabam os rastros, depois vem a ralação total para se chegar ao Mesa, Alvoradas, Chapeuzinho e o selado entre o Espinhento e o Chapéu e despencar pelo grotão até o cume do Pelado, descer até o campinho onde descansa a asa do avião e seguir para o nordeste pela Freeway e depois da Cascata Dourada mergulhar na mata fechada.

Do campinho ainda víamos um rastro bem marcado descendo ao vale a nossa esquerda onde sobe pelas encostas do Ângelo para finalmente bater aos nossos pés. Haja força de vontade pra se enfiar naquela quiçaça infernal e foi o que nos faltou para visitar o Ângelo ali ao lado, tão perto e muito distante depois que a garrafa de vinho foi aberta. O tempo passa rápido e devolvemos o cume aos urubus para descambar pelo capinzal e repetir todo o itinerário da vinda até a pedra com a corrente.

Maldita pedra visguenta, passado a corrente não havia mais nenhuma touceira de capim pra se agarrar, todas arrancadas durante a descida. A rampa tem 45º de inclinação por uns oitenta centímetros de largura com uma parede a pique do lado esquerdo e uma grota vertical do lado direito que mergulha na copa das árvores. Coberta de musgo úmido e escorregadio, mais liso do que sapo ensaboado e o Pedro superou a corrente subindo alguns metros acima onde se fixou a pedra por invisíveis ventosas na palma de mão. Fui atrás agarrando no seu calcanhar e por fim veio o Paulo escalando por cima de nossas costas, pisando em nossas mãos até atingir terreno seguro. Com dois toques estávamos descansando novamente no cume do Boa Vista e matamos as últimas laranjas.

Então o Paulo destila sua sabedoria de anos assistindo ao Discovery Channel e estendendo o braço rumo ao poente determina que faltavam apenas quatro dedos para o por do sol. Feito as contas ficamos boquiabertos diante de tanta sabedoria e tratamos de nos pirulitar dali antes que algo pior nos acontecesse. Os rastros são evidentes no campo e seguem para o norte com um pequeno desvio a oeste até despencarem num paredão de pedra equipado com outra corrente enferrujada e continuam por dentro da mata seguindo o desnível acentuado do início de um vale que vai se aprofundando até chegar ao Vale dos Ovos.

O Vale dos Ovos é um caos de pedras imensas e gretas profundas que se percorre pelas laterais, cruzado de um lado ao outro em zig-zags com as lanternas ligadas porque o sol já havia superado a distância do último dedo fazia algum tempo e a noite nos brindava com um milhão de pequenas mariposas atraídas pela luz artificial em meio à escuridão total que faziam questão de nos acompanhar na tentativa de mergulhar em nossas bocas, orelhas e narizes.

Mas é depois de receber a Freeway pela esquerda que a trilha toma gosto em nos sacanear e descamba pelo Pau-do-Maneco numa sequencia de barrocas úmidas e podres que parece não ter fim. E dá-lhe pontada nos joelhos, torções nos tornozelos, pés atolados no barro, pedras rolando a trinta centímetros da cabeça, desescaladas sinistras em paredes quase verticais babando água e o eterno Rio Itupava berrando na escuridão abaixo sem nunca mostrar a cara.

A coisa só amansa depois de encontrar a Trilha Frontal do Olimpo nas proximidades da Cachoeira dos Marumbinistas e já começamos a imaginar uma boa desculpa por chegar à noite na sede do parque, mas para nossa surpresa encontramos dois farofas se arrastando de bunda para atravessar o rio e concluímos estar bem dentro do horário normal para a maioria dos seres viventes que freqüentam o local. Não houve perguntas embaraçosas ao dar baixa no cadastro e vazamos pela calçadinha do Antoninho Palmiteiro onde cruzamos com uma jararaca esperta antes da Estação Eng. Lange.

Uma das coisas chatas, entre outras, no Marumbi é que a cabeça sinaliza o fim da amargura em Eng. Lange, mas os pés sabem que vão fritar no macadame antes de chegar ao estacionamento de Dna. Izabel. Com sorte ainda pegamos uma pastelaria aberta em São João da Graciosa lá pelas 22:00 horas.

O Leão é manso, mas escorregar a noite pelo Pau-do-Maneco é sacanagem!

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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