Estamos em La Paz e no dia seguinte voaremos para Cuzco, de onde começaremos a Trilha Inca. Aproveitamos a tarde e vamos direto de carro até Chacaltaya, a mais alta pista de esqui do mundo. Começo a caminhar e me sinto muito mal, o fôlego escasso, a visão escura e a cabeça latejando. Na volta, chego a desmaiar e só me recobro depois de uma dose de oxigênio.
Estamos retornando do
Kilimanjaro na Tanzânia, depois de uma aclimatação gradual que nos fez chegar ao cume em boa condição. É uma montanha popular, há sempre uma galera nas suas encostas. Entre outros, fomos acompanhados por um jogador de futebol americano, jovem, alto e forte. Para nossa surpresa, passamos por ele carregado por dois companheiros, acometido de náusea, febre e vertigem.
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O Aconcagua. Fonte Wikipedia.
Subo lentamente a encosta nevada do Aconcágua, mas não me sinto bem. Enxergo às vezes estranhos vultos, sobrevoando minha ascensão, tornada lenta pela fadiga e pelo enjoo. De repente, meu boné some, ele cai lá em baixo na brancura da encosta. Sou invadido por tristeza e desânimo, olho para ele como se fosse uma perda fatal que me deprime e desmoraliza. Perco completamente a vontade de prosseguir, mas continuo a duras penas mesmo assim.
O que há em comum com todos estes relatos é o fato de que se passam na altitude, entre 4.500 e 5.500m. São exemplos benignos, até mesmo banais, dos males que nos afligem quando trocamos a comodidade das terras baixas pelo desconforto do ar rarefeito das montanhas.
Mas há casos terríveis, como o do montanhista que, sentindo-se mal ao escalar, resolveu acampar ao invés de descer – e acordou morto. E dos exploradores que acabaram mutilados ao não saberem combater a confusão metal que os atingiu. Ou a comentadíssima morte por edema cerebral de Scott Fischer na tragédia de 1996 no Everest (e também a de seu concorrente Rob Hall). Ou ainda os casos de hemorragia, apagão, trombose, desidratação, pneumonia, infecção, enfarto. Achei que seria interessante explicar, ainda que de forma leiga, o funcionamento do mal de altitude.
Foi o montanhista Charles Houston, ao longo das expedições ao K2 entre as décadas de 30 e 50, quem primeiro estudou os efeitos da altitude. Ele recolheu dados minuciosos em câmaras de despressurização. Acreditava-se ser impossível chegar ao topo do Everest sem oxigênio suplementar – o que foi refutado pela histórica ascensão de Messner e Habeler em 1978.
Os trabalhos de Houston foram continuados pelo lendário escalador Tom Hornbein. Junto com Willi Unsoeld, realizou nos anos 60 a primeira travessia no Everest, subindo pela crista oeste e descendo pelo colo sul. Continuava vivo enquanto escrevo este artigo.
O assim chamado mal da montanha (ou AMS – acute mountain sickness) é uma doença que costuma afetar viajantes a partir de 2.400m acima do nível do mar. Ela é basicamente causada pelo hipoxemia, ou seja, carência de oxigênio. Vou explicar porque isto acontece.
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Gráfico Pressão x Altitude
Se você mergulhar, sabe que a pressão sobre seu corpo aumentará, devido à coluna d´água acima, tanto mais quanto mais fundo estiver. O inverso ocorre quando você sobe, pois a coluna de ar sobre você torna-se menor, ou seja, cai a pressão sobre seu corpo. Veja no gráfico ao lado que, a 2.500m a pressão é de ¾ daquela ao nível do mar, aos 5.000m é de pouco mais da metade e, na altitude do Everest, cai para apenas um terço.
Qualquer que seja a altitude, o ar contém 20% de oxigênio, o combustível de nosso corpo. À medida que subimos, a quantidade de moléculas de O² num mesmo volume de ar irá diminuir, pois há cada vez menos pressão para aglutiná-las. Ou seja, um ar vazio. Assim, quando um montanhista aspirar o ar, sua admissão de oxigênio será tanto menor quanto mais alto ele estiver.
Veja na tabela que, a 3.000m, ele disporá de 95% do oxigênio a nível do mar, mas na altitude do
Everest, pouco mais de 30%. É por isto que se considera que as perturbações se iniciam a 2.400m, quando começa a existir um déficit do gás. A deterioração do corpo humano a partir de 5.200m torna-se inevitável. Não há habitações permanentes acima deste nível.
Vou fazer duas ressalvas. Existe uma proteína que oxigena o sangue – é a hemoglobina. Na falta de oxigênio, o corpo tende a produzir mais dela, tornando o sangue mais espesso e oxigenado. Assim, se seu organismo for privilegiado, você sentirá menos os efeitos da altitude.
A segunda ressalva é ligada à latitude. No Equador a camada atmosférica é máxima, com cerca de 16 km. Na latitude de 90 dos polos, ela se reduz a meros 9 km. Portanto, nos trópicos a mesma altitude contém mais pressão e, portanto, mais oxigênio do que nos polos. É muito possível que você se sinta pior nos cerca de 5.000m do Monte Vinson na Antártica do que aos quase 7.000m do Huascarán no Peru.
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Gráfico da Altura da Troposfera vs. Latitude – Fonte: Divulgação
Os sintomas descritos acima ocorrem exatamente pela ausência de oxigênio pleno no corpo: inchaço e fadiga, náusea e tontura, inapetência, insônia e disritmia. Nas altitudes moderadas, podem em geral ser revertidos se o montanhista simplesmente descer. A maior pressão no local mais baixo irá recompor sua saturação de oxigênio.
Mas, em altitudes ou condições extremas – por exemplo, acima de 6.000m, com esforços excessivos, ingestão de álcool ou desidratação – o mal da montanha poderá evoluir para edemas potencialmente fatais. Vou descrever a seguir o mecanismo dos dois edemas conhecidos. Às vezes eles regridem em até dois dias de repouso em baixo.
Edemas resultam da infiltração de líquido nos tecidos. O primeiro dos edemas acontece no pulmão (o nome técnico é HAPE). O oxigênio que chega ao sangue provém do pulmão, cujos alvéolos operam sua passagem para o sangue. Este sangue enriquecido é bombeado para o coração e alimenta o corpo.
Os vasos sanguíneos reconhecem quando há pouco oxigênio e reagem contraindo-se, de forma a impedir que o sangue empobrecido chegue ao coração. Esta constrição espreme o sangue para dentro do pulmão, causando seu edema. Os sintomas são a tosse, a perda do fôlego e a febre.
O segundo edema ocorre no cérebro (é chamado HACE). Aparentemente, o baixo nível de oxigênio aumenta de forma compensatória o fluxo sanguíneo para o cérebro, pois o corpo entende que desta forma irá abastecê-lo – o mecanismo é curiosamente inverso do anterior.
Este fluxo é aumentado pela vasodilatação, que ocasiona vazamento para os tecidos do cérebro – note que é o contrário da vasoconstrição no pulmão. Os sintomas são terríveis: dor de cabeça, vômito, letargia, desequilíbrio e, finalmente, coma. De forma mais fulminante que o pulmonar, o edema cerebral pode ser letal.
Como evitar o mal da altitude? O conselho mais unânime é controlar sua ascensão na montanha, seja pela aclimatação prévia, seja pela moderação dos esforços. Os montanhistas prudentes costumam subir e, em seguida, dar meia volta e dormir em altitudes menores.
O processo é repetido tediosamente à medida que avançam: é o método climb-high, sleep-low. Assim, você pode subir de 3.000m para 4.000m num só dia, mas deve descer e dormir digamos a 3.300m. Você irá sucessivamente esticando os limites, por exemplo, dormindo a 4.500m após chegar a 6.500m, com algum retorno eventual ao acampamento base.
Se a aclimatação a 3.000m pode levar apenas dois dias, para 5.000m é recomendável até uma semana, e para 7.000m, mais de uma. Mas isto irá depender de sua capacidade e forma de aclimatação. Mas, além de certa altitude, a aclimatação é impossível. Em condições extremas, um alpinista normalmente perde 4 a 5 kg, não só de gordura, mas também de músculo.
O processo climb-high, sleep-low é lento e oneroso e pode ser abreviado tanto pelo uso de oxigênio complementar, cujo efeito equivale a baixar a altitude, como pela prática do chamado estilo alpino, subindo rápido e leve até o cume sem bivaque intermediário, desde que você tenha o condicionamento necessário.
Algumas vezes câmeras hiperbáricas são usadas, quando descidas rápidas mostram-se impraticáveis – lembro-me quando um grupo de escandinavos ia testá-las no cume do
Illimani (ver a câmara inventada por Igor Gamow nos anos 80).
E também medicamentos, como o diurético universalmente usado Diamox ou ibuprofeno. Existem outros, específicos para os casos de HAPE e HACE, como a dexametazona. Até Viagra já foi usado, mas talvez com outras intenções.
Acho curiosa a opinião de que pessoas idosas sejam mais imunes à altitude – bem como a suspeita de que isto realmente só ocorre porque tendem a possuir mais bom senso e avançar mais lentamente, não cedendo ao perigo dos impulsos traiçoeiros.
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3 Comentários
Me diverti muito lendo seu relato, muito informativo e divertido, parabéns.
Até que enfim comecei a entender as causas e o processo. Além de engenheiro e administrador você se esqueceu de dizer que é professor. Muito obrigado!
Até que enfim comecei a entender as causas e o processo. Além de engenheiro e administrador você se esqueceu de dizer que é professor. Muito obrigado!