CUME no Picadão do Cristóvão

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Sexta feira, 13/05/2022, foi noite de festa para o montanhismo paranaense. Depois de 2 anos paralisados por medidas autoritárias, e quiçá inócuas, no combate ao surto infeccioso de Coronavirus, novamente montanhistas de todas as cores e gerações retornam ao Restaurante Cascatinha para reverenciar os mortos, comemorar a vida, a chegada do inverno e a abertura da temporada de montanhismo no tradicional jantar de confraternização promovido por Henrique (Vitamina) Paulo Schmidlin desde o longínquo ano de 1972.

CUME no 50º Jantar da Montanha.

Os membros do Clube União Marumbinismo e Escalada – CUME, que iniciaram as atividades em meio ao caos sem jamais ceder ao terrorismo midiático – compareceram em peso ao evento degustativo da boa e tradicional cozinha italiana de Santa Felicidade confraternizando com outros adeptos, ativos e aposentados, da cultura montanhista do Estado do Paraná que remonta ao ano de 1870, quando se iniciou os preparativos para a conquista do Pico Marumbi.

Ansiosos para reencontrar o frio da estação, antevendo chuvas contínuas e geladas, deixaram o restaurante antes da meia noite para já na mesma madrugada embarcarem numa van alugada com destino a Bairro Alto, no município de Antonina, mas o tempo se manteve firme e ensolarado pelos dois dias seguintes contrariando todas as previsões meteorológicas e proporcionando uma caminhada memorável por paisagens inéditas.

Sítio Lírio do Vale

Pelo CUME seguiram Júlio Cesar Fiori, Leandro (Bolívia) Pereira da Silva, Marcelo Correia, Natan Fabrício Loureiro de Lima, Tayná Fernanda Vieira e Vera Lúcia de Oliveira Podgurski acompanhados dos convidados Lucas Emanuel Correia Rocha Zerbinati, Paulo Augusto Farina e Thomas Micheletti Ben-Farina de Rolândia (Pr), Alexandre Aparecido Almeida e Derlan Tannouri Quinhone de Guarapuava (Pr).

Aqueduto

Pouco passava das 10h00 quando iniciamos o percurso a partir do sítio Lírios do Vale pela já conhecida Trilha da Conceição, cruzando duas vezes por entre os pilares do aqueduto da velha e desativada Usina Hidroelétrica de Cotia, passando batido pelas entradas da Cachoeira do Saci e depois da Piscina dos Elefantes para uma breve parada no cruzamento com as antigas canalizações, onde jorra uma bica d’água refrescante.

Execução da tubulação na década de 1940 – Foto de Osíris Curial

Tudo já conhecido do CUME em expedição anterior, mas agora abandonaríamos a Trilha da Conceição e não seguiríamos por cima das tubulações para a represa do Rio Saci. Nosso destino estava na direção oposta seguindo pela lateral das enormes tubulações até a também assoreada represa do Rio Cotia onde fizemos nova pausa antes de penetrar em território, também a mim, totalmente desconhecido.

Barragem no Rio Cotia

Avançamos acompanhando ruínas de antigos alicerces para tubulações de aço em direção ao Rio Conceição, seguindo as pegadas de casco fendido dos veados catingueiros e dos caules de bromélias roídos pelos bugios, com um olho na carta topográfica, outro na bussola e um terceiro no GPS onde registrávamos o percurso até cruzarmos com os cabos de alta tensão. Para nosso espanto, e sorte, encontramos toda a extensão abaixo dos cabos de alta tensão recentemente roçado e limpo, praticamente nos convidando a subir em desafio as dezenas (ou até centenas) de jararacas e armadeiras que tem seu habitat em meio ao extenso bananal nativo que floresce debaixo das linhas de energia.

Debaixo das Linhas de Alta Tensão

Debaixo das Linhas de Alta Tensão

Oportunidade inédita para aqueles que desconheciam as bananeiras selvagens experimentarem seus frutos doces e recheados de sementes, também se deliciando com suculentos chuchus ainda nos estágios iniciais de desenvolvimento. Mas o preço a pagar foi o enfrentamento de encostas íngremes seguidas por depressões profundas numa sequência interminável de morros cobertos por brotos e caules de bananeira cortados, barro e muito broto de taquara, cortantes como navalhas.

Horas nesta rotina enfadonha e cansativa até breve consulta na carta para escapar pela esquerda, arregaçando mato no peito por 150 metros recheados de bambus e trepadeiras para sairmos retaliados novamente na Trilha da Conceição. Todo o esforço rendeu 300 metros verticais no acumulado da altimetria desde o início da sofrida caminhada por debaixo das linhas de alta tensão. Caminhar por trilha melhora a performance e rapidamente encontramos novamente as linhas de alta tensão para mais adiante atravessar a vau o Rio do Ferraria, pouco abaixo da Cachoeira dos Cabos e mais uma vez desembainhar os facões.

Cachoeira dos Cabos na década de 1960

Adiante a trilha havia sumido quase por completo com os anos de abandono, mas permanecendo vívida e clara na minha memória. O Paulo Farina de facão em punho avançava despreocupado até travar, estarrecido e admirado com a súbita visão da estreita ponte metálica cruzando por sobre a profunda grota onde corre o bravio Rio Conceição, cautelosamente atravessada por todos com visível encanto. Do outro lado mais facão e esforço contornando a encosta até surgir a misteriosa porta gradeada protegendo a entrada do túnel com suas mensagens desencorajadoras.

Estreita ponte sobre o Rio Conceição

Porta da Janela da Conceição

Abrindo as portas penetramos na escuridão total com os pés mergulhados em água até os tornozelos. Noutra ocasião encontrei a entrada do túnel recheada de pegadas de onça e não avancei mais apenas para não perturbar o bicho, medo jamais! Mas desta vez estava tudo limpo com exceção do alvoroço dos morcegos voando rasantes sobre nossas cabeças. Avançamos até um trecho seco e plano para preparamos o bivaque com os mais afoitos seguindo pelos 1.500 metros de profundidade, no amago da crista do Guaricana, até o final do túnel para ver em loco a surreal comporta que protege o túnel principal da Usina Parigot de Souza (Capivari-Cachoeira).

Comporta blindada

Inacreditável, mas enquanto uns visitavam a comporta no final do túnel e outros se preparavam para o pernoite, o Marcelo Correia montou uma churrasqueira colocando as linguiças para assar. A Janela da Conceição se encheu de perfume e fumaça colocando os últimos morcegos para correr, indignados com a invasão. Mais uma vez minha marmita de carne seca com arroz voltava intocada para casa. Comemos pão com linguiça até nos empanturrarmos e todos dormiram de barriga cheia. Não vi a onça passar por mim durante o sono, mas do fundo do túnel vinham roncos e rugidos que sugeriam a presença de uns quatro ou até cinco felinos satisfeitos.

 

Linguiçada no túnel

As 5h30 começaram a disparar alarmes, mas foi difícil sair do cafofo antes das 6h30 para o desjejum e a claridade do alvorecer já iluminava a boca do túnel quando fechamos as portas e retornamos a caminhar pela Trilha da Conceição em direção ao encontro da Picada do Cristóvão. Nada indica o local deste encontro, mas minha memória novamente funcionou a contento. Por entre o intrincado e feroz taquaral uma única e altiva arvore se ergue ereta a frente da mata fechada. Alguns minutos e muita suadeira batendo facão e Bingo! Encontramos a milenar trilha subindo a serra.

Picada do Cristóvão

É sem dúvida a mais bonita trilha ainda intacta e selvagem transpondo a Serra do Ibitiraquire. Por esta trilha passaram Reinhard Maack, Rudolf Stamm e Alfred Mysing após conquistarem o majestoso Pico do Paraná e tantas outras lendas do montanhismo como Waldemar (Gavião) Bücken, Nobor Imaguire e os irmãos Curial retornando de suas aventuras pelo sertão inculto e mesmo antes deles, milhares de tropas de mulas carregadas com mercadorias preciosas para a época que sucederam a legiões de Índios descendo no verão em busca dos peixes e mariscos para retornar no inverno na cata do pinhão que inundava o planalto.

Janela do Ibitirati

Janela do Ferraria

A Picada do Cristóvão sobe a serra em curvas sinuosas e aclives suaves com seu piso todo calçado de pedras encobertas por luxuriante vegetação rasteira e florida na primavera. Avança certeira por entre magnífico bosque de imensas arvores seculares que se abrem em grandiosas janelas para primeiro emoldurar o Pico Paraná, o Ibitirati e o Saci para logo em seguida destacar as íngremes paredes do Ferraria que se erguem em forma de pirâmide a nossa frente. Caminhada limpa e tranquila na boa companhia de profundas pegadas frescas de onça pintada na terra úmida. Pelas dimensões e profundidade não tinha menos de 120 quilos.

Pegadas da pintada

A mata é fértil, cheia de vida e intocada. Cruzamos por várias trilhas de catetos antes de parar para descansar junto as margens do Rio do Ferraria, agora quase no alto da serra. Escondida no mato reencontramos nossa barrica de sobrevivência ainda guardando uma garrafa de Coca-Cola e um pacote longa vida de vinho branco que consumimos com gosto depois de três anos estocados. Daqui em diante o Natan passaria por sherpa carregando a enorme barrica plástica por cima da mochila cargueira, rezando para não reencontrar o taquaral fechado quando andássemos novamente por debaixo das linhas de alta tensão.

Rio do Ferraria no alto da Serra

Adiante do Rio do Ferraria começamos a acompanhar as pegadas com três enormes dedos de uma anta solitária e a sorte novamente nos sorriu quando encontramos uma avenida no intrincado capoeiral arrasado pelo pisotear furioso de nossa amiga anta. Aos 1.200 metros de altitude, junto a torre de energia, cruzamos pelo portão de ferro e iniciamos a descida da serra em direção ao planalto ainda distante. Passamos pela entrada do Ferreiro e depois do Guaricana, ambas bem demarcadas. Em algum ponto a nossa esquerda foi encontrado o famigerado avião do dinheiro com seus dois esqueletos na boléia e nenhum dinheiro no bagageiro.

Amarílis da Serra

Descansamos animados degustando limões maduros junto ao cruzo do segundo rio e passamos pela porteira para penetrar na floresta de pinnus até o encontro da estrada. A sombra dos pinnus seguimos por entre enormes bulbos de cogumelos alucinógenos de um vermelho vivo salpicado de verrugas brancas até chegar no domínio dos pinheirais quando o chão se encheu de pinhões maduros roídos por cuícas, preás, serelepes e outros pequenos animais. Muitas pinhas ainda intactas e todo o grupo aprendeu a pular cercas para adentrar no sítio Rio das Pedras onde encontraríamos a van depois de consumir alguns pastéis regados a Coca-Cola gelada.

Fim da Picada

Quem pediu pastel de queijo com carne recebeu pastel de carne sem queijo pelo mesmo preço e consumiu sem piar. Devidamente embarcados, alguns só ressuscitaram com os solavancos da estrada esburacada para novamente mergulhar no sono profundo quando se chegou ao asfalto. Descanso para todos menos para os viajantes que só reencontraram a cama e o banho quente depois de mais cinco horas de viagem até Rolândia e Guarapuava.

 

 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

1 comentário

  1. Paulo Augusto Farina em

    Excelente relato, Grande Fiori! Agradeço o convite para o Jantar e para esta memorável empreitada! Sem dúvida, conhecer este belíssimo caminho histórico e pernoitar no interior de uma das obras de Engenharia mais espetaculares de nossa Serra foi uma baita experiência! A parceria e a amizade do pessoal do CUME deixará esta jornada de 29 km e 1.744 metros de altimetria imortalizada em nossas memórias. Fraterno Abraço do Norte do Paraná!

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