No início da primavera de 1961 começou a circular pela cidade a notícia do desaparecimento de um pequeno avião de passageiros durante tentativa de cruzar a Serra do Mar tomada por característico mau tempo. Nesta época ainda não haviam radares para orientação de voo no cone sul do Brasil e o Corpo de Bombeiros começou a mobilização de montanhistas para as buscas visuais apenas depois do tempo dar sinais de melhora. A área de buscas se concentrariam nas canhadas da Graciosa, do Itupava e do Arraial com muitos quilômetros de mata e centenas de morros e montanhas a observar.
Após contato do Capitão Adel Kugler, o Henrique (Vitamina) Paulo Schmidlin tratou de convocar um time de muita experiência para a tarefa. A primeira investida partiu num domingo, 23/09, com a missão de estabelecer um acampamento avançado nas proximidades do alto da Graciosa, mas a chuva impediu qualquer tentativa de busca.
O desaparecimento de um avião com 3 conhecidos empresários deixou toda a pequena cidade de Curitiba ansiosa por notícias e os repórteres dos jornais seguiam as equipes de buscas como moscas. Na manhã seguinte o Bernardo (Sabão) Seifert, Dudu e outros se dirigem para o Marumbi em litorina especialmente requisitada enquanto o Ralph Hauer, Ribeiro e Junqueira descem às Prainhas para examinar os morros próximos. O Vitamina acompanhado por Waldemar (Gavião) Bücker, Fernando (Cipó) Andrezjewsi, Ronaldo (Bigode) Cruz, Cap. Adel e alguns soldados perseguidos por repórteres dos jornais investem contra o Morro Mãe Catira, subindo pelo Rio do Corvo ainda debaixo de chuva. Na subida o Gavião toma um afluente errado a direita e investe por uma crista tomada por caraguatás e taquarinhas que deixam os repórteres estropiados. Um deles perdeu até o relógio de pulso.
No início chuva e frio, depois no alto o sol, calor e sede, mas de nada adiantou porque o mar de nuvens impedia qualquer observação das montanhas abaixo e os aviões do Aeroclube apenas passeavam nas alturas enquanto o helicóptero vindo de São Paulo nem ao menos pode decolar. Desceram correndo pelas pedras do rio deixando bombeiros e repórteres a ver navios.
Na terça-feira com tempo abrindo, um piloto do Aeroclube, Erich Siefert comunicou as 10h30 a identificação dos destroços num morrote entre o Morro do Canal e as obras de abertura da rodovia BR 277, muito próximo do Caminho do Arraial, provocando verdadeira corrida de curiosos para o local.
De Curitiba decola o helicóptero H-19 Sikorski apelidado de Pelicano, com piloto e copiloto comandados pelo Coronel Zenedin enquanto o Cap. Adel e o Vitamina, um de cada lado, seguem pendurados meio corpo para fora do aparelho, mas por mais que circulassem nada viram antes do retorno de Erich Siefert que com voos rasantes finalmente indica o local exato do sinistro.
A área era deveras cabulosa e a forte ventania os impede de descer, obrigando-os a circular a procura de local propício para pouso. Depois de muito circularem, finalmente descobrem um campo distante aproximadamente 5 quilômetros do acidente e muito próximo de antiga estrada abandonada, mas o vento ainda reservava algumas emoções e o Pelicano por pouco não capota no processo. Mal aterrissam e o local se enche com bombeiros, repórteres e curiosos que os seguiam em jeeps e motocicletas.
Imediatamente o Cel. Zenedin trata de organizar um acampamento base avançado, montando grandes barracas canadenses de duas lonas e o cozinheiro põe carne na brasa para alimentar o pelotão de famintos. Do nada aparece um tal Dr. Otávio Siqueira se apresentando como representante da família de um dos sinistrados. Depois se descobriu tratar apenas de um charlatão atraído pelo cheiro de churrasco e da glória em aparecer nas manchetes. Começou tumultuando o churrasco com seus palpites inapropriados.
A noite cai rápida sobre a serra e numa grande barraca se acomodam o Cap. Adel acompanhado pelo Vita, Cipó, Dirceu Venâncio e o próprio Dr. Siqueira que não tarda a aprontar. De madrugada um gambá invade a barraca e na tentativa de expulsá-lo, o Dr. Siqueira acerta um murro no Dirceu. Despertos iniciam longo colóquio sobre aventuras mirabolantes, caçadas e assombrações que se estendem até o amanhecer.
Numa época sem mapas nem GPS, as manobras para encontrar o local de pouso acabaram por desorientar o Cap. Adel e o Vita que guardaram de memória apenas o rumo aproximado dos destroços, tratando então com o helicóptero para se encontrarem a meio caminho para lhes indicarem a posição exata a seguir. Ao amanhecer se dividem em grupos de trabalho. Ao Vita, Cap. Adel, Cel. Zenedin, Dr. Siqueira e o irmão de um dos desaparecidos coube capitanear a expedição adentrando a mata virgem, o Cipó e o Dirceu acompanhados por bombeiros e repórteres estavam encarregados de abrir a picada e um terceiro pelotão de soldados carregariam o material pesado para o resgate.
Próximo ao meio dia subiam uma encosta tomada por taquaripocas e bambus que em pouco tempo dispersou todo o pessoal. O grupo do Dirceu com os jornalistas acabou por se perder e retornaram estropiados. O Pelicano pairava nas alturas emitindo sinais ininteligíveis e da grota subiam berros pedindo socorro. Desceram rápido apenas para encontrar o Dr. Siqueira completamente perdido e desorientado no meio do mato. Fim da aventura para o Dr. Charlatão. Da copa das árvores o Cipó conseguiu contato visual com o helicóptero que indicou o rumo e rapidamente retornam a picada para encontrar os destroços da aeronave 50 metros à frente.
O CESSNA 172A bateu uma das asas contra a copa de uma árvore e rodopiou no ar, estilingando seus ocupantes para fora da fuselagem ainda antes de se chocar com o solo. Motor e cauda pareciam intactos, mas toda a equipagem se espalhara desordenadamente ao redor e debaixo da asa, parcialmente encoberto, encontraram o primeiro corpo. Depois, vasculhando mais a frente, distante uns 80 metros descansava o segundo cadáver. Ambos, Ivan Carlos Cruz proprietário e piloto do avião e o empresário Azeu Zitelle, aparentemente intactos e ainda sem a rigidez e o mal cheiro característicos, apesar dos 6 dias na chuva e no frio, mas já tomados por vermes necrófilos que se esgueiravam pela boca e narinas. Mas da terceira vítima, José Orlando Massi, nem o menor sinal.
Escurecia rapidamente enquanto o Cel. Zenedin comandava o reconhecimento da área, recolhendo as peças dispersas em sacos para transporte enquanto o Cabo Cruz abria uma grande clareira, derrubando árvores enormes para as tentativas de pouso, mas o tempo ficava escasso e coube ao Pelicano lançar das alturas o material e os suprimentos para o pernoite forçado ao lado dos destroços enquanto o médico e Major Heitor Moreira examinava os cadáveres com luvas de borracha e os acondicionava em sacos pretos. Calculou que o Azeu Zitelle morreu no mesmo dia do acidente e o piloto, Ivan Carlos Cruz sobreviveu até 12 ou 18 horas antes de chegarem ao local.
Do helicóptero receberam água mineral com gás, pão, sardinhas, presuntada e 2 lonas para barraca que o Cabo Cruz rapidamente se encarregou de montar, mas nada das lanternas. Revistando os destroços encontram a bateria danificada e seca, além de 3 litros de whiskey White Horse. Na falta de água destilada colocam água mineral com gás e a coisa ferve e espuma, mas funciona e ao juntarem os polos saltam faíscas para todos os lados com o terreno ainda cheirando gasolina. Espantado, o Cel. Zenedin confisca os fósforos, isqueiros e tudo mais que produzisse faíscas. Depois arrancam alguns fios, o farolete da asa e pronto, fez-se a luz.
Na barraca para 3 couberam os 5, quatro lado a lado sem poder se mexer e o Cabo Cruz de atravessado nos fundos. A comida foi rapidamente consumida e um dos litros de whiskey evaporou com a mesma rapidez.
Eram altas horas da madrugada na escuridão da Serra do Mar com 2 cadáveres ensacados na porta da barraca quando foram despertados por movimentos e ruídos muito estranhos. Algo do lado externo arranhava a lona da barraca em movimentos repetitivos. Quase despertos e quase sóbrios, ficaram quietos e atentos. A todos pareceu que uma mão tocava pesadamente a lona a meia altura e descia arranhando com os dedos até tocar o solo.
A coisa se repetia a intervalos e alguém precisava fazer algo a respeito. Diante da falta de voluntários se impôs a hierarquia militar. O civil não estava sujeito a ordens e o Coronel designou a honrosa tarefa para o Major que a transferiu ao Capitão, mas como sempre sobrou para o Cabo Cruz que de revólver em punho, corajosamente, se prontificou para matar assombração a tiros.
Minutos tensos de espera dentro da barraca com ouvidos muito atentos até que o Cabo afastou lentamente o pano da porta e entrou com um sorriso de sarcasmo no rosto. Era apenas um daqueles sapos enormes que insistentemente tentava pular por sobre a barraca, escorregando pela lona até embaixo para em seguida tomar força e tentar novamente, mas isto todos sabiam e ninguém ali acreditava em assombrações.
Até que dormiram relativamente bem apesar das sucessivas lufadas de odor putrefato que o vento trazia do alto do morro. Apenas o mistério do desaparecimento da terceira vítima os incomodava. Na manhã seguinte o precário acampamento se encheu com o pessoal de busca, vieram voluntários da polícia militar, exército, aeronáutica e mateiros de todos os matizes, revirando cada palmo do entorno sob violento aguaceiro. Rapidamente tudo num raio de centenas de metros foi pisado e amassado, mas nem uma só pista foi encontrada e o mistério só aumentava.
O lugar começou a fervilhar de gente e o Vita tratou de esconder o outro litro de whiskey no interior de um xaxim. Chegaram cães farejadores de São Paulo e o exército se esforçava na construção de pontes provisórias sobre os riachos com a estrada tomada de lama até a altura dos joelhos. Um trator de esteira estava encalhado com lama acima das lagartas enquanto construíam ranchos de bambus e o acampamento agora já se parecia com uma verdadeira aldeia.
No início de outubro o tempo melhora e o lugar é invadido por caçadores tocando trombetas, apitos e tiros para o alto. Com céu azul o helicóptero volta a realizar missões de reconhecimento com o Vita e o Cap. Adel pendurados nas laterais examinando cada ponto onde houvesse concentração de urubus. Cada voo de urubu representava uma nova missão e os jeeps 4×4 já conseguiam acessar o acampamento.
Finalmente o mistério do cheiro putrefato foi resolvido com a descoberta de que vinham dos bambus no alto da montanha. A noite explodiam gomos liberando o mau odor que tanto intrigava os voluntários, mas o mistério principal continuava sem nenhuma perspectiva de solução. O revezamento dos militares era constante e nova turma da aeronáutica iniciou a montagem do acampamento bem distante dos demais, perigosamente próximo do xaxim com a garrafa de whiskey, o que obrigou o Vita a correr debaixo dum aguaceiro a procura de local seguro entre as pedras dum riacho.
Aparece um Coronel da aeronáutica trajado a rigor para a ocasião. Vestindo botas de cano longo e bombachas, chapéu de explorador da África e luvas. De estatura mediana e já um tanto obeso, fazia uma figura ímpar com seus 2 facões quase arrastando no chão, binóculos pendurados ao pescoço, metralhadora nas mãos e revólver na cinta. Diante do aparente fracasso dos métodos convencionais, a noite patrocinava sessões espíritas em sua barraca até que seus pedidos foram atendidos com a materialização de assombrações. Pularam todos para fora e descarregaram as pistolas 45 na barraca, causando rebuliço indescritível. Na manhã seguinte, todo paramentado, se embrenha no mato para surgir logo depois todo estropiado. Imediatamente descobriu que a mata atlântica não era a savana africana.
A família já desesperançada, após 10 dias de buscas infrutíferas, inicia a contratação de videntes e feiticeiros que rapidamente surgem com boas notícias. Afirmam que o desaparecido continua vivo e caminha pela mata calçando sapatos sociais de bico fino, do tipo italiano. Em Curitiba a comoção foi enorme apesar do descrédito daqueles que estavam embrenhados na mata e bem conheciam as dificuldades.
Um único córrego corria em direção ao planalto enquanto todos os outros desciam para o litoral e justamente neste o Vita encontra um dos feiticeiros examinando as pedras. Certamente tinha poderes mediúnicos, não para encontrar pistas do desparecido, mas já perigosamente próximo da preciosa garrafa de whiskey que precisou de resgate imediato.
Enquanto as buscas se afastavam cada vez mais dos destroços começa a circular a notícia de que encontraram a terceira vítima, José Orlando Massi, bem próxima do avião. O cadáver em adiantado estado de putefração descansava na base de um precipício de 30 metros distante não mais que oitenta metros do local de impacto. Constatou-se que o óbito ocorreu no mesmo dia do acidente ou logo depois e para escapar da grota, o corpo precisou ser inçado pelo helicóptero, só chegando a Curitiba no dia 3 de outubro.
Especulou-se muito sobre o que de fato teria ocorrido naquela ocasião fatídica. A pequena aeronave avança pela canhada do Arraial debaixo de violenta tempestade, sem instrumentos de geolocalização e talvez também com o altímetro descalibrado quando bate uma das asas numa árvore enorme, gira descontroladamente, arremessando para fora os 3 ocupantes antes de cair sobre o piloto que sobrevive agonizando por 4 ou 5 dias. O segundo passageiro morre imediatamente ao se chocar frontalmente com o solo e o terceiro sobrevive, mas míope que era, perde seus óculos fundo de garrafa no impacto e desorientado vaga ou se arrasta debaixo da chuva até despencar no precipício, vazando a copa das árvores abaixo e lá permanecendo oculto por 13 dias.
O destino se mostrou implacável com José Orlando Massi, perseguindo-o até mesmo depois de ter escapado da morte por verdadeiro milagre. No final, somente a garrafa de whiskey White Horse escapou, sã e salva, das garras da Serra do Mar.
História verídica, em tradução livre, extraída dos “Diários do Vita”
2 Comentários
Interessante encontrar uma foto do jovem Vitamina, provavelmente repousando de bons goles de wisky. E parabéns pelo relato preciso de Julio Fiori. Nem tanto tempo faz do início da década de 60 e parece uma época de antigamente.
Maravilha de narrativa!