Ekdant 6100 m

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Entre os dias 10 de Maio e 15 de Junho, a Daniela e eu (Paulo), estivemos na India a tentar subir aos cucurutos das montanhas que se deixavam enganar!

Instalámos o campo base no dia 16 de Maio.

Tudo em nosso redor representava uma novidade. Os boulders dispersos, os prados, as montanhas altivas, as numerosas espécies de pássaros, todos conspiravam para formar um quadro de beleza extraordinária.

Gaju, o nosso oficial de enlace, não deixava de nos surpreender. Este sargento da policia de uma zona conturbada da India, magro como um pau, para além de uma vasta cultura sobre a mitologia local – para encanto da Daniela que o bombardeava com perguntas sempre que pousávamos no campo base – revelou uma percepção ecológica e ambiental fora do comum. Reconhecemos tratar-se de um sentimento genuíno, inocente, de uma lógica simples, longe da nossa consciência ocidentalizada e fabricada pelas modas actuais, longe das hipocrisias de auto-proclamados ambientalistas mais interessados em dizer que protegem a natureza do que em actuar no sentido de, efectivamente, a proteger.

Gaju costumava dizer: “Não compreendo como podem as pessoas visitar as montanhas, adorar as montanhas e, ao mesmo tempo, abandonar o seu lixo nas montanhas.”

Durante a sua permanência no campo base, Gaju (na companhia de Indira, o cozinheiro) passou muitas horas a recolher o pouco lixo que ia encontrando aqui e ali.

Apesar de virtualmente esquecido pelos alpinistas, o vale de Sathopanth era visitado por trekkers peregrinos Indianos que subiam de quando em vez, para visitar o lago sagrado de Sathopanth, localizado aos 4400 metros de altitude e a um par de horas do campo base.

Estes trekkers abandonavam por vezes algum lixo, na maioria envoltórios de chocolates, papéis, etc. Realmente era lixo muito ocasional, quase desdenhável relativamente ao que já tínhamos visto noutras montanhas.

Quando contámos a Gaju algumas das historias que testemunhamos nas temporadas anteriores no Paquistão, acerca do abandono intencional de lixo por parte de alpinistas supostamente “esclarecidos”, acerca do abandono planeado das cordas fixas que, todos os anos, são instaladas nas vias normais das montanhas com 8000 m. e acerca de um longo e triste etc, Gaju, olhou-nos perplexo. Na sua lógica simples e despretensiosa rapidamente concluiu: “That people are not climbers!”

No dia seguinte ao da nossa chegada ao campo base realizámos a primeira caminhada de reconhecimento e aclimatação. Queríamos pôr-nos a mexer o quanto antes e era nossa intenção nunca permanecer muito tempo inactivos.

Não tardamos em encontrar a nossa linha de ascensão ao Parvati Parvat com 6257 m. e todavia por escalar. Tratava-se de uma afiada aresta de aparência acessível que conduzia a um elegante esporão de gelo de aspecto mais técnico. A via era ultra-lógica e parecia bastante segura de perigos objectivos. Na verdade, como parte integrante da face norte do Parvati, aquela era… “A LINHA”.

Que surpresas nos iria revelar?

Ventos de oeste empurravam massas enormes de nuvens turbulentas, carregadas de humidade que chocavam contra a grande mole do Chaukamba. Eventualmente conseguiam ultrapassar a barreira de montanhas e prosseguiam o seu caminho deslizando o seu corpo fluido e negro através das vertentes nevadas e dos seracs suspensos. Nessas alturas os relâmpagos não se faziam esperar.

Aos 4750 metros tínhamos instalado o nosso primeiro campo, na esperança de, no dia seguinte, subir um pouco mais, para aclimatar, mesmo com o tempo instável, até o limite de segurança o permitir. Ás três da manhã, com o incremento da tempestade, dissiparam-se as nossas intenções. Durante um segundo, os clarões iluminavam o interior da tenda e os trovões tardavam anoréxicos segundos até se fazerem ouvir.

“Buga, que vem aí a tempestade!”

“Vamos embora! Temos de descer!”

Em poucos minutos calçámos as botas e, de frontal na cabeça, abandonamos o local, enfrentando os elementos que naquele momento exibiam uma demonstração de pujança.

O rasto do dia anterior há muito que tinha desaparecido e descíamos por azimute no meio do nevoeiro e de um nevão, iluminados pela luz fugaz dos relâmpagos. Em pouco tempo estávamos perdidos.

“Merda! Isto não se parece nada com o terreno de subida!”

Realizámos duas ou três novas tentativas de busca mas, nada nos surgia familiar.

Após algum tempo, optámos pela regra numero um dos manuais de sobrevivência: “Quando perdidos, retornar pelos mesmos passos até um ponto do terreno conhecido.”

Voltámos a subir. A copiosa nevada tentava apagar o nosso trilho dos últimos minutos. No momento exacto em que perdemos finalmente o rasto, deparámo-nos com a vertente de contornos familiares.

“Ok, agora já estamos no bom caminho!”

“Vamos para baixooo!”

“Espera, Daniela! Sabes o que me vai apetecer quando chegarmos ao campo base?”

“Não!?”

“Batatas fritas!”

O “ruidinho” electrónico característico do telefone satélite anunciava uma nova mensagem do “weatherman”. O Vítor Baia informava-nos que os dois dias seguintes seriam de muito bom tempo mas, que o mau tempo chegaria de novo, na tarde do terceiro dia.

No dia 21 de Maio voltámos a subir a suave pendente inicial que conduzia ao nosso campo 1. Sentiamo-nos em forma e isso deu-nos confiança para tentar o Parvati Parvat com apenas dois dias disponíveis.

Desta vez não parámos no “Buda camp” (nome com que carinhosamente baptizámos o campo 1) mas continuámos em direcção à aresta.

Inicialmente a neve encontrava-se mais ou menos em condições mas, à medida que as horas passavam a consistência ia-se alterando, para pior. Tecnicamente, o terreno era fácil, entrecortado por ocasionais passos mais inclinados de neve e algumas curtas secções de rocha. No final da aresta, quando já suspirávamos por um local minimamente plano para montar a tenda, ergueu-se uma crista de rocha de aspecto complicado. Entre trepadas e destrepes lá fomos avançando em ziguezague através de blocos equilibrados. A corda servia como segurança efectiva. Se um de nós desse um escorregão, seria travado pelo segundo que, decerto estaria do lado oposto da aresta.

Um “dead-end” bloqueou-nos a passagem. Nada que um curto rapel não pudesse resolver. Ao meio dia chegámos ao colo, onde descobrimos o lugar perfeito para plantar a tenda. Baptizámos o campo de “Budi col” e, imediatamente começamos a derreter neve para hidratar.

Estávamos aos 5450 metros de altitude. Tínhamos realizado quase 1300 metros de desnível e explorado novo terreno, com algumas secções divertidas.

Tenho de curvar bastante o pescoço para ver a Daniela que, por cima de mim, continua a avançar num terreno já bastante inclinado. O céu limpo mas sem lua tornam a noite muito escura. No meio da penumbra, o mundo resume-se ao arco de alcance da luz do frontal. Tudo o que fica para lá desse arco de luz, faz parte de um limbo desconhecido. Num dos momentos em que desliguei o frontal e após a vista se acostumar à escuridão, voltei a ter acesso à dimensão exterior. Nesse momento apercebi-me da nossa situação. “Olha! Não queres que te substitua?” Durante a escalada do esporão de gelo íamo-nos revezando na função de líder da cordada. Agora, a inclinação incrementava, a Daniela estava acima de mim e, todo o material de segurança disponível era eu quem o tinha. Unia-nos uma corda passada… em nada!

A consistência da neve e do gelo ditavam as técnicas a utilizar, por vezes em piolet tracção, outras vezes a “quatro patas”.

Alcançámos o final do esporão ao amanhecer. Agora tínhamos uma visão periférica sobre a cordilheira de Garwhal e colossos como o Kamet, Nanda Devi e o Chaukamba, sobressaíam, exibindo o seu brilho matinal, orgulhosos da sua supremacia.

O terreno parecia mais fácil mas, as atenções redobraram uma vez que à nossa esquerda e para sul precipitava-se uma grande vertente de neve de aspecto instável.

Lá embaixo, um vale verde e luxuriante marcava a entrada do vale do glaciar de Panpatia.

Era uma visão tranquilizadora, apesar da distância a que nos encontrávamos.

As botas enterram-se quase por completo, mas não é difícil andar, desde que consigamos manter o ritmo lento e a neve não mude para pior.

Passou mais uma hora e agora estamos bem perto do cume… de um cume. Ainda não se trata do cume do Parvati Parvat. Chegámos ao cimo do chamado ante-cume, um “mamelão” situado aos 6150 metros mas, longe do cume verdadeiro.

Entre nós e o cimo real da montanha ergue-se uma afiada aresta que se dirige a um novo ante-cume e só depois, uma nova aresta, protegida por algumas cornijas instáveis, conduz ao topo do Parvati. É uma estranha e desconcertante descoberta. Uma súbita formação geológica erguia-se, assim de repente, ante os nossos olhos. “Isto não vêm no mapa!” Nem sequer em nenhuma referência nos obsessivos estudos anteriores à expedição.

Afinal, o ante-cume verdadeiro encontrava-se ainda mais acima.

Era evidente que as anteriores tentativas não tinham passado deste mesmo ponto onde agora nos encontrávamos. Confirmámos isso dias depois, já no campo base.

Há alguns anos, uma equipa de militares Indianos alegou ter alcançado o cume do Parvati Parvat. Mais tarde descobriu-se que tinham mentido e a sua ascensão foi desconsiderada. Na verdade, haviam chegado a este mesmo ponto que apelidámos de “mamelão”.

Em 2008, Raja, o dono da agência que contratámos fez uma tentativa ligeira ao Parvati, alcançando, também ele o “mamelão”. Na altura considerou que tinha alcançado o “fore-summit” (ante-cume) da montanha.

Agora, descobrimos que afinal, o “mamelão” nem sequer constituia o “fore-summit”. Este cume secundário constituia uma protuberância anterior ao ante-cume.

Chaukamba ao amanhecer.

O pior não foi descobrir esta verdade absoluta. O pior foi descobrir que também nós, teriamos de renunciar e voltar para trás. Eram as oito da manhâ. Na cordilheira de Garwhal oito da manhâ corresponde a uma hora tardia, como viemos a constatar posteriormente, a duras penas.

Se decidíssemos continuar para cima iríamos arriscar-nos a realizar uma descida tarde e a más horas, exponencialmente perigosa.

Na nossa mente antecipavam-se imagens de uma descida épica, com dezenas de rapeis, num esporão de neve apodrecida pelo sol da tarde.

A prudência ordenou a retirada.

A poucos minutos de iniciar a descida, seguindo os nossos próprios passos veio-nos à memória aquele cume ligeiramente mais baixo, pelo qual passáramos na subida.

Horas antes, ultrapassadas as maiores dificuldades técnicas da via recém inaugurada, passáramos a uns trinta metros daquele cimo, contornando a sua vertente sul e descendo mais de uma centena de metros até alcançar o planalto superior que conduz ao Parvati Parvat.

As nossas energias estavam canalizadas para o Parvati e, nem sequer considerámos a hipótese de escalar aquela montanha esquecida.

Mas agora… e se?…

Após descansar para beber e comer algo, voltámos a colocar as mochilas ás costas.

Passo a passo, piolet a piolet, escalámos a vertente em direcção ao pico desconhecido.

O novo objectivo iluminou-nos o espirito e um renovado alento conduzia-nos até ao cume daquela montanha que julgávamos virgem.

Ultrapassamos os últimos metros imaculados e, pouco depois, ali estávamos num “cucuruto” de neve, isolado, selvagem e esquecido do mundo, a mais de 6000 metros de altitude.

Detivemo-nos um pouco naquele ponto, para saborear o momento.

“Será virgem? Seremos os primeiros seres humanos a pisar este cume?”

A própria pergunta conduzia a conceitos semânticos que conferiam um significado especial à própria aventura. Fosse ou não fosse um pico virgem (mais tarde descobrimos que a nossa, fora afinal a segunda ascensão da montanha), a sua condição queria dizer que esta parte dos Himalaias se encontrava reconhecidamente inexplorada.

Para nós, era o realizar de um sonho. Uma ascensão remota, numa região isolada. O Parvati não se tinha deixado vencer mas, o Ekdant com os seus nobres 6100 metros era “nosso”. Com o acréscimo de termos aberto uma via elegante e lógica.

Sim, estavamos contentes!

Felizmente, a descida não teve uns contornos tão épicos como imagináramos.

A secção mais apreensiva, o final do esporão norte, mais técnico, tinha-se despojado de muita da neve acumulada e revelava um gelo azul e de alta qualidade.

Com uma única corda de 50 metros apenas podíamos realizar rapeis com 25 metros cada. No entanto, o percalço da “corda curta” foi compensado com instalações de rapel “à bomba” através de pontes de gelo (“Abalakov”).

Vivam os “Abalakovs”!

Descemos a um ritmo lento mas, sempre atentos a cada uma das acções: reunião instalada, auto-segurança, corda colocada no descensor, nós de segurança nas pontas das corda, descida. Sequências que se repetiam uma e outra vez. O clima ajudava e não iríamos precipitar nada. Cada manobra era concretizada com uma concentração hipnotizante.

Passámos o seguinte dia a destrepar a nossa via, a abrir uma trincheira colossal na neve e comigo a blasfemar violentamente de cada vez que me enterrava até ao peito (literalmente!).

Eventualmente, chegámos ao campo base, onde nos esperavam sorridentes Gaju e Indira que nos cumprimentaram de uma forma casual, como se entretanto nada se tivesse passado.

Ainda a atirar as botas mal cheirosas para longe, só me ocorreu dizer:

“Indira! Potato French chips!”

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Sobre o autor

Daniela Teixeira e Paulo Roxo é uma dupla portuguesa que pratica escalada (rocha, gelo e mista) e alpinismo. O que mais gostam? Explorar, abrir vias! A Daniela tem cerca de 10 anos de experiência nestas andanças e o Paulo cerca de 25. A sua melhor aventura juntos foi em 2010, onde na cordilheira de Garhwal (India - Himalaias), abriram uma via nova em estilo alpino puro na face norte da montanha Ekdante (6100m) e escalaram uma montanha virgem que nomearam de Kartik (5115m), também em estilo alpino puro. Daniela foi a primeira e única portuguesa a escalar um 8000 (Cho Oyu). O Paulo é o português com mais vias abertas (mais de 600 vias abertas, entre rocha, gelo e mistas). Daniela é geóloga e Paulo faz trabalhos verticais. Eles compartilham suas experiências do velho mundo e dos Himalaias no AltaMontanha.com desde 2008. Ambos também editam o blog Rocha Podre, Pedra Dura (rppd.blogspot.com.br)

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