Escalando o Ama Dablan – Nepal

0

No mesmo dia decidimos descer pra Pangboche e descansar por lá. O Raj me levaria pro acampamento base e o Ryan queria subir junto apenas pra ver como era. No dia 20 de outubro saímos de Pangboche em direção ao acampamento base do Ama Dablam. Chegamos por lá e fui apresentada à equipe de sherpas, incluindo Lhakpa o líder, e Karma o cozinheiro. Conheci também Stojan, um esloveno que era o líder do permisso, além de dois alemães do grupo deles, o Christopher – que tinha perdido os dedos de ambas as mãos no Dhaulagiri fazia alguns anos e não falava uma palavra de inglês – além do Zepp, outro simpático alemão com vocabulário anglo saxão extremamente limitado. Dos 14 do nosso permisso, ainda estavam por lá o alemão Andy e outro esloveno, o Darko, que não iria escalar por estar com problemas intestinais desde o começo do trekking. Todos eles estavam na faixa dos 50-60 anos.

:: Leia a parte anterior

De cara já vi um dos espanhóis que estava no mesmo hotel que eu antes de sairmos pra Lukla, e corri pra me apresentar e ver como estava fluindo a escalada. Era o Alfonso, e em pouco tempo se juntou a nós seu parceiro Dani, ambos do sul da Espanha. Em meia hora de conversa já fiquei sabendo de várias coisas que estavam rolando: os sherpas tinham acabado de terminar de fixar a via, os dois também estavam sem guia, sem climbing sherpa e sem porteador e sofrendo alguma hostilidade por conta disso. Existia um "comércio" de espaço em barracas vazias no acampamento 2, uma mulher já tinha se acidentado entre o C1 e C2 e outro se machucou enquanto aprendia a usar jumar num boulder do campo base… entre outras coisas que fui presenciando mais pra frente. A partir desse momento, sendo um time de uma pessoa só, eu tinha que coletar o máximo de informação possível pra tocar a escalada.

Desde que o Ryan me falou que não iria ao Ama Dablam, não hesitei por um segundo em escalar sem parceiro, já que teria que apelar pras cordas fixas. Meus maiores medos eram na verdade passar frio já que meu equipamento não é top de linha, ter algum problema de altitude na parte alta da montanha e… os clientes inexperientes que possivelmente poderiam colocar em risco a segurança de outras pessoas. De resto, me sentia totalmente tranquila em termos técnicos e físicos, já que nunca me senti tão bem aclimatada e forte. Como adepta do estilo alpino, procuro ser sempre auto-suficiente na montanha e não espero ajuda de ninguém, portanto teria que estar preparada pra lidar sozinha com qualquer coisa que acontecesse.

Meu plano era descansar um primeiro dia no acampamento base, e subir em uma tacada pro cume, parando no acampamento avançado, no C1 e no C3. O plano era esse porque eu ia subir carregando minhas próprias coisas, portanto precisaria dividir o esforço dos primeiros dias. Quanto à pular o C2, decidi assim porque se você não tem climbing sherpa ou não está com alguma agência grande, você não tem "prioridade" pra escalar, ou seja, os sherpas não respeitam seu lugar na fila pra subir ou pra rapelar por exemplo, e menos ainda colaboram com espaço em acampamentos, principalmente no C2 onde eu já tinham me informado que não tinha mais espaço pra montar barraca. O C1 também estava lotado, o porém é que em ambos, a maior parte das barracas passa a maior parte das noites vazias. Para utilizá-las, se você escala independente como eu estava fazendo, tem de pagar "por fora". Pros espanhóis ofereceram uma barraca no C3 por 150 dólares e pra mim no C2 por 100 dólares. Parece absurdo, mas é assim que funciona a indústria de "escalada" no Ama Dablam (e talvez no Himalaia inteiro).

Os espanhóis já tinham feito dois porteios pro C1 e iam subir pro cume 1 dia antes de mim. Combinamos que eu ia usar a barraca deles no C1, e eu levaria a minha, uma ultra leve, pra usar no C3, e depois desceria as duas.

Nesse meu primeiro dia no acampamento base dei uma volta observando o circo de expedições, equipamentos novinhos e exageros em geral. Me questionei por inúmeras vezes se deveria me arrepender de estar lá e ter escolhido uma montanha tão popular. A atmosfera dava a impressão de que a montanha tinha dono e que se alguém quisesse escalar num estilo puro que escolhesse outro lugar. Não me sentia bem vinda nem pelos sherpas do meu acampamento base. Nesse ponto, graças à fofoca incessante dos sherpas via rádio, metade do campo base já tinha escutado que eu ia subir sozinha e com exceção de um ou outro, a maioria das pessoas literalmente me pentelhavam, e principalmente os sherpas pareciam indignados comigo (e também com o Dani e Alfonso, éramos os únicos escaladores independentes em todo o campo base) por nossa recusa em utilizar sherpa, como se isso fosse um crime ou uma maneira subversiva de escalar. Esse tipo de clima é o que reina, infelizmente, e o que define a escalada nesta região. Que de novo, não dá pra chamar de "escalada" e sim de turismo ou negócio milionário. Se repetia aqui a hostilidade que presenciei no Island Peak. Inclusive não fizemos a cerimônia Puja pois é paga e obviamente nós três ali éramos de longe, os menos "privilegiados financeiramente"… digamos assim. Triste, no mínimo, presenciar no que se tornou o montanhismo nesta região do mundo. Nesse mesmo dia o Román chegou com seu grupo, também indignado com algumas coisas que aconteceram no Island Peak. Eis aí a velada máfia sherpa.

Tudo isso só me deu mais vontade de terminar logo com a escalada. Parti no dia seguinte com uns 26 kg em direção ao acampamento avançado. 10 minutos antes que eu saísse do acampamento base veio o helicóptero com o resgatista e o corpo do americano que tinha caído entre o C1 e C2, aparentemente porque as cordas se romperam. As pessoas vendo a cena ficaram um pouco em choque mas eu tinha minhas dúvidas quanto ao motivo, visto a obscena falta de experiência e capacidade dos clientes que estavam ali (tinha gente aprendendo a jumarear ali no campo base mesmo). Preferi esperar pra ver as cordas com meus próprios olhos e fazer meu próprio julgamento se as cordas estavam boas ou não.

Román e dois clientes subiram com pouco peso e muito mais rápido que eu, obviamente,  e me deixaram usar a barraca que montaram no ABC antes de descerem. Esse dia foi difícil pois subi de 4600 m pra 5400 m igualando meu porteio mais alto da Blanca. Demorei 4h30. Porém, fui com o pensamento de vencer uma batalha por dia, ir juntando informações e sentindo meu corpo. Dormi com uma leve dor de cabeça mas acordei bem. Teria outra batalha pra vencer: portear os 26kg pro C1, a 5800m, ou seja, quase um Kilimanjaro! Seria meu maior porteio desde então, e me concentrei com um bom ritmo de passadas porém bem lenta, chegando ao C1 em 3h30. Felizmente achei uma única plataformazinha livre bem pequena porém do tamanho exato da minha barraca, perto da barraca dos meninos. Em julho fiz um porteio bem mais pesado e fiquei com uma lesão nas costas por 1 mês e meio, e senti de novo essa dor nesse dia, então resolvi fazer um dia de "descanso" no C1, e explorar um pouco a via pro C2 no dia seguinte pra ver o estado das cordas.

Em teoria os espanhóis teriam ido pro cume nesse dia, mas qual não foi minha surpresa quando vi o Alfonso passando pelo portal que dá acesso à rota pro C2! Corri pra perto dele e perguntei se ele tinha feito cume, e me disse que na verdade fizeram um porteio pro C2, iam fazer um dia de descanso e depois subiriam pro C2, fariam um bivaque e de lá pro cume. Um dos motivos era que o Alfonso estava com a mesma dor de cabeça que eu porém já a vários dias, mas não queriam mais ficar subindo e descendo do C1. Como conselho e sendo a mais experiente em alta montanha, disse que descer pro acampamento base não ia ajudar em nada a melhorar a dor de cabeça, e talvez fosse melhor subir logo pro cume, já que ele não tinha nenhum outro sintoma, e que independente da decisão deles eu subiria no outro dia. Em 15 minutos decidimos subir juntos. Eu tinha levado um gás extra pra eles e bastante comida pra volta, e pelo problema de barracas, concordei com o bivaque no C2 pois fazer acampamento no C3 seria realmente perigoso por conta da exposição ao serac.

Nosso dia de descanso foi à base de Nação Zumbi, Manu Chao e Slightly Stoopid, comidinhas que ganhamos de uns sherpas que estavam descendo (os meninos tiveram 3 botijões de gás, um bastão de trekking e quase toda a comida roubada no C1), umas tentativas de caçar corvos (piada interna) e falatório de muita bobagem. Nosso grupinho estava bem entrosado e por rádio consegui a informação de que o tempo estaria bom no nosso dia do cume e que teríamos a companhia dos alemães e eslovenos do meu permisso. Pelas nossas contas e pelo que os meninos viram no C2, realmente não sobraria barraca vazia pra nós, e já fomos nos preparando psicologicamente pro bivaque a 6000 m, na ida e na volta do cume. No final do dia chegaram os 2 alemães, Zepp e Christopher, e o esloveno Stojan, com os sherpas Lhakpa e Tenzing.

Às 9 da manhã do dia seguinte saímos em direção ao C2. Os meninos foram bem leves pois já tinham levado tudo pra lá, e eu fui mais pesada pois era minha primeira viagem ao C2. Este definitivamente é um dos trechos mais bonitos da escalada, sendo feito quase totalmente em rocha e algumas arestas de neve expostas. E a escalada não é fácil! Logo depois da primeiras travessias existem algumas diedros bem fáceis que tentei escalar em livre (muito mais fácil que se puxar pela corda fixa, aliás impressionante como os sherpas não sabem escalar), mais travessias, um diedrinho curto mas difícil de quinto grau, mais algumas arestas de neve e finalmente a tal de Yellow Tower, uma pequena parede muito bonita que também tentei escalar em livre na medida do possível, só pelo prazer de realmente escalar alguma coisa. Em 3 h e pouco chegamos ao C2, onde nos sentamos em meio às inúmeras barracas esperando chegar a noite.

Vale dizer que o C2 é uma vergonha por diversos motivos. Primeiro, é um depósito de lixo. Existe uma taxa que se paga em forma de depósito pra se trazer todo o lixo da montanha – e se voce não traz de volta, o governo não te devolve o dinheiro. Essa taxa é em teoria, e na prática ela obviamente não funciona. Além de lixo, botijas de gás vazias e restos de comida, tudo ao redor das barracas, se misturam à essa bagunça as fezes das pessoas que dormem por ali. Dá pra sentir o cheiro antes de chegar no acampamento. Claro que o C2 é pequeno, exposto e amontoado, mas obviamente as pessoas que passam por ali não fazem a mínima questão do mínimo respeito à montanha e às outras pessoas. O cenário piora se levamos em conta que a maior parte das pessoas que escalam o Ama Dablam tem condição social e financeira bem elevada.

Felizmente tivemos sorte nesse dia, e Tenzing, um dos sherpas dos alemães, passou um rádio pro acampamento base e conseguiu com que ficássemos (de graça!) numa das barracas desocupadas do C2. Compartilhamos a janta e às 6 da tarde já estávamos dormindo, com temperatura de -7 centígrados dentro da barraca.

Dia de cume, 2 da manhã: acordamos, derretemos mais um pouco de água e comemos cada um uma barrinha energética. Pouco antes da 3 da manhã já estávamos na via, porém os alemães saíram primeiro e no primeiro grande trecho vertical já travaram a via, o que nos fez perder um pouco de tempo. A saída do campo é uma travessia, e logo em seguida começa um grande trecho vertical em gelo e rocha, bastante técnico. Felizmente, pra nossa paz de espírito, um grupo da Catalunia colocou cordas decentes novas em quase toda a via depois do acidente com o americano, e por isso dava pra confiar e ascender com tranquilidade.

A maior parte da via, antes de chegar ao grande serac da headwall, é um mixto de paredes verticais intercalados com travessias bem expostas. Com o sol nascendo, chegamos às arestas expostas próximas do acampamento 2.7, a mais ou menos 6200 m, onde havia 3 barracas montadas embaixo de um seracs com pingentes de gelo relativamente grandes. Coragem pra dormir por aqui! Novamente os alemães estavam travando a via e dá-lhe esperar quase meia hora pra poder subir. Passado esse acampamento, a via segue com as características citadas acima porém começa a apresentar pequenos trechos bem desafiadores. Alguns deles chegavam facilmente a 90 graus, e pra subir o serac é necessário superar um pequeno teto de neve dura que exige bastante força, mesmo se estivesse ao nível do mar. Além disso, essa é uma das partes mais expostas a perigos objetivos da escalada, já que estamos o tempo inteiro debaixo de seracs. É de verdade assustador, até porque já estamos bem alto e por mais que se queira escalar rápido, o esforço físico é muito alto. Literalmente, é preciso sorte pra passar por esse trecho sem maiores problemas, e se eu estivesse escalando em outra cordilheira, não optaria por me expor numa via como essa. Achei irracional que as empresas estivesses operando esta rota no estado que está, mas como me disseram depois, "it´s a business".

Desde o começo o Alfonso, vindo atrás, vinha me perguntando se estava tudo bem, se eu estava cansada, e sempre falando palavras de motivação. Da minha parte eu também perguntava como ele estava, e em certo momento me disse que teve umas tonturas estranhas, e que eu ficasse de olho nele. Fomos assim checando um ao outro a via inteira.

Superado o platô do acampamento 3, chegamos à única parte horizontal de toda a via. Aqui eu e Alfonso fizemos uma parada pra terminar a água e comer mais um chocolate. Sua dor de cabeça e tontura tinham melhorado e ele parecia mais animado pra continuar a subida. Atravessamos um pequeno bergshrund e iniciamos a escalada da headwall. A primeira metade fica bem à direita do Dablam, o serac gigantesco que se pendura próximo ao cume, porém mesmo estando à direita a via ainda está exposta a qualquer caída de material que ocorra por ali. Por isso, esperamos os alemães se afastarem um pouco pra não corrermos o risco de ficarmos parados esperando eles se moverem, e expostos. Vencida a primeira metade, mais um trechinho bem vertical, e finalmente estamos na parte alta do headwall que dá acesso ao cume.

Obviamente que aí já estamos no limite da exaustão. Essa parte seguia íngrime, a 60-70 graus, e apesar de estar bem cavada com degraus, eram degraus pra pernas de gigantes, o que pra mim sempre é um problema. Pra cada 6-7 passos que eu dava pra subir, descansava exatos 60-70 segundos. Comecei a ficar com muita sede, e estando sem água, não exitei em ir comendo neve pelo caminho, o que, acreditem, me ajudou bastante. Lhakpa passou por nós com Christopher e Zepp, descendo os dois num esquema e com uns nós que eu nunca vi na minha vida… O Alfonso perguntou lá de baixo que horas eu achava que era e disse pra ele que pelo sol já era depois do meio dia. Ele perguntou se eu achava que devíamos seguir e eu disse pra tentarmos (estávamos exaustos e o Dani apesar de ser o mais velho já estava no cume fazia um tempo). Mais uns 40 minutos e finalmente vejo a cabeça do Dani olhando pra baixo e sorrindo. Nessas horas sai energia até do fio de cabelo!

Tocamos pra cima e a chegada foi só alegria. A princípio me joguei no chão de cansaço mas logo levantei pra olhar em volta e ver se eu realmente estava lá, a menos de 200 m dos 7000 m de altitude, na parte mais alta dessa montanha tão bonita com seus braços abraçando o campo base. Estava em absoluta felicidade de ter superado tantos limites de uma só vez. Pensei em duas coisas quando cheguei no cume: a primeira foi o quanto a temporada na Cordilheira Blanca me preparou para esses dois cumes, em termos físicos, técnicos e psicológicos, e sem dúvida, foi fundamental para que eu estivesse ali, admirando o Himalaia de um ponto tão privilegiado. A ficha não caiu da altura, do esforço, de todo o caminho percorrido, mas eu já sabia que isso ia acontecer e procurei nem me preocupar. Eram 14h30 e ainda tínhamos um longo caminho de volta. Fiz uns vídeos, tiramos várias fotos, respiramos um pouco e em 15 minutos estávamos prontos pra iniciar nossa descida.

Aí tivemos mais atrito com os sherpas. O esloveno Stojan também estava no cume com seu sherpa Tenzing, e esse último assim que percebeu que íamos descer colocou seu cliente na corda pra descer antes de nós (os sherpas furam fila o tempo inteiro). O problema é que Stojan, apesar de já ter escalado montanhas de 8 mil, não sabia rapelar. Inacreditável, mas real. E Tenzing, em toda sua arrogância juvenil, não nos deixava passar. Esperamos por quase 1h30 no cume pra dupla descer 3 largos, até que perdi a paciência e desescalei o primeiro largo pra dar uma bronca no moleque e obrigá-los a nos deixar passar. Nisso o Dani passou os dois e foi descendo sozinho, e um tempo depois eu e Alfonso passamos Stojan, que tinha sido abandonado (segundo ele) por seu sherpa, estava exausto e pedindo água, porém nem eu nem o Alfonso tínhamos mais nada. Falei pra ele comer neve e disse que ia atrás do Tenzing.

O Tenzing estava no platô do C3 esperando o Stojan e dei uma bronca nele por deixar um cliente inapto e exausto sozinho na headwall. Ele fez cara de pouco caso (sem comentários!) e ficou lá sentando esperando o Stojan terminar de descer a headwall sozinho. Eu e Alfonso seguimos descendo.

Depois que passamos o acampamento 2.7, paramos numa aresta exposta pra trocar as pilhas das headlamps pois já estava escurecendo. Foi desses momentos que só quem escala conhece: você está cansado, com frio, com fome, sede, quer chegar logo no acampamento… mas por alguns instantes parece entrar num estado de nirvana. Sentamos ali na maior calma do mundo, uma perna pra cada lado da aresta, trocando as pilhas na maior lentidão do mundo, observando a silhueta negra das montanhas deste Himalaia contra um resquício de luz, falando numa voz de quase sussurro, pra não atrapalhar o sono das estrelas, que começavam a pipocar no céu de lua nova.

Até que voce se lembra que ainda tem um zilhão de rapéis pra fazer. E lá fomos nós. Às 20h, chegamos ao C2 sob caída de neve. Conseguimos outra barraca pra dormir, porém menor, e nos amontoamos pra tentar descansar. Não tínhamos mais comida além de barrinhas, e o gás só era suficiente pra 1 litro de água pra cada, então deixamos pra usar pra descida do dia seguinte. O Dani no alto de seus 42 anos deu um banho de preparo tanto no Alfonso que tem 34 quanto em mim que tenho 33, e também nessa noite dormiu igual um bebê. Pra nós foi uma das piores noites. Meu corpo não produzia calor pra esquentar o saco de dormir e tive que colocar um handwarmer dentro pra esquentar os pés. Eu estava deitada num declive, o travesseiro era uma pedra e eu não conseguia esticar as pernas. Tinha fome e muita sede, e foi assim que fiquei pelas 10 horas seguintes, sem conseguir pregar o olho e sonhando com a comida que estava no C1, depois de um dia de 17h.

"Acordamos" no dia seguinte e começamos a derreter neve pra descer. Nosso café da manhã foram as barrinhas. Christoper tirava fotos desde sua barraca, e Stojan já tinha chegado do acampamento 2.7, onde passou a noite devido à sua lentidão pra descer. Juntamos tudo e inciamos a descida. Paramos no C1 pra comer comida de verdade e desmontar as barracas, e partimos pro acampamento base. No caminho encontramos Zepp descendo sozinho, com uma expressão um tanto quanto atônita. Não entendi se estava cansado ou o que tinha acontecido, e seguimos descendo. Depois de passar o acampamento avançado, encontramos com o Román subindo pra buscar equipamento do seu grupo, e no fim da conversa veio a frase fatídica e aquela sensação de deja vu. Ele disse: "Cissa, alguém do seu permisso morreu." Na minha cabeça era impossível pois tínhamos visto todos eles no C2 antes de descermos. Passei o resto do caminho tentando entender o que tinha acontecido. No caminho patinei na neve compactada e tomei um chão bonito, onde senti uma leve torção no joelho.

Chegar ao base e ter gente te esperando é uma sensação muito boa: cheguei ali pra escalar sozinha e acabei ficando amiga da expedição ao lado, cheia de espanhóis. Quando passei por eles teve palmas e muito sorriso, e logo me convidaram pra um jantar de celebração. Fui deixar minha mochila na minha barraca e logo veio o Karma me chamar pra ir com ele até a cozinha. Tentei descobrir o que tinha acontecido, mas ele não quis me falar. A alegria nem tinha começado e já não ia durar nada.

Infelizmente nessa noite não teve comemoração, nem descanso. Fui pra cozinha com o Karma, onde o Zepp estava em estado de choque com os dedos negros de congelamento mergulhados em água quente, olhar perdido, assim como o sherpa. Ninguém sabia o que fazer. Entra mais um sherpa, depois outro, depois um espanhol, e fica todo mundo por ali meio perdido. Tenho curso de primeiros socorros mas não tenho instrução sobre o que fazer numa situação dessa. Então mandei um dos sherpas passar por todos os acampamentos de expedições grandes e procurar um médico. Em 20 minutos encontram o Xavi, um guia espanhol também nosso vizinho e com experiênca considerável no Himalaia. Daí o Xavi assumiu a coordenação do tratamento do Zepp, assistido pelo Román, e coube a mim coordenar a organização dos alemães para a extração por helicóptero no dia seguinte, já que o Zepp queria esperar o Stojan descer, e o Darko e Andy foram de nenhuma ajuda nessa hora, já que estavam todos em estado de choque sem qualquer capacidade de organizarem-se entre si.

Depois de conversar um pouco com o Zepp entendi que foi o Christopher, o alemão sem dedos que estava alegremente tirando fotos no C2 naquela mesma manhã, que morreu na montanha. Sofreu um ataque cardíado logo depois de sair do C2, bem numa das arestas de neve mais expostas do caminho.

Mal pude comer durante a janta com os espanhóis, pois junto com Xavi e Román, tinha que de tempos em tempos colocar o Zepp pra fazer o banho de água quente nos dedos, ajudá-lo a colocar luvas, dar comida na boca… Levantamos à meia noite e depois 6 da manhã do dia seguinte pro tratamento, e foi só no café da manhã que finalmente consegui comer alguma coisa. O helicóptero veio perto das 8h30 da manhã pra resgatar o corpo do Christopher. (Personalidade da escalada que eu conheci desta vez foi o Freddie Wilkinson , que estava acompanhando os resgatistas pra uma reportagem e me confundiu com alguma amiga, o que gerou uma conversinha de alguns minutos). Infelizmente o Zepp assistiu tudo – ou seja, a extração do corpo lá longe no acampamento 2, e bem de perto, quando o helicóptero deposita o corpo no acampamento base e o mesmo é embrulhado pelos sherpas e colocado dentro da aeronave pra ser levado à Lukla. Muita choradeira e emoção num momento extremamente pesado e difícil principalmente pros alemães. Xavi, Román e eu tentamos segurar as pontas na medida do possível, mas é difícil não se emocionar, independende de quantas mortes já termos presenciado nas montanhas. Voce aprende a aceitar, mas nunca fica mais fácil.

40 minutos depois o helicóptero voltou pra buscar o Zepp e o Andy, e depois disso finalmente, consegui descansar um pouco. O Stojan desceu do C1 bem, o que também me tranquilizou. Passei o resto da tarde fazendo nada com o Dani e Alfonso. Passeamos pela milionésima vez pelo acampamento base examinando as barracas das novas expedições que chegavam. No dia seguinte os meninos desceram pra Namche e eu fiquei pra dar mais um dia de descanso pro meu joelho, que doía bastante. Aproveitei e tomei meu primeiro banho em 19 dias! Tivemos comemoração na janta, com direito a vinho, cerveja e bolo de chocolate. No dia seguinte desci pra Namche em 5 h sem descanso, e depois disso mais 5h30 no outro dia até Lukla, onde fiquei 1 dia e meio esperando minha marinheira chegar de yak, e indo e vindo pela rua principal umas 500 vezes, assistindo a 900 pousos e decolagens no aeroporto, me entupindo de anti-inflamatório e basicamente assistindo a vida passar.

Debruçada na grade do aeroporto, tinha dificuldade em me dar conta de tudo que tinha passado. Fazia mais de vinte dias que eu tinha chegado naquele aeroporto sem nenhuma certeza e muitas dúvidas e questionamentos, depois de uma temporada tão intensa na Blanca. Não sabia o que viria nas semanas seguintes, e me sentia feliz de estar ali, 3 semanas depois, com uma resposta tão positiva. Tinha superado barreiras psicológicas importantes, batido alguns recordes pessoais, conquistado duas montanhas praticamente da maneira que considero mais louvável, e conhecido pessoas incríveis que serão amigos pra toda vida.

Tive experiências negativas também, com decepções importantes quanto à maneira como se "escala" no Himalaia, com a capacidade de endinheirados de sujarem o montanhismo e fazerem besteira como se estivessem em um playground, com a máfia dos sherpas, com as empresas que permitem e estimulam esse estilo de "turismo" (desculpem mas não posso chamar isso de escalada), com a dinâmica de um business que pra mim é anti ético, imoral e irresponsável.

Sobre a via, o maior desafio estando com cordas fixas, é físico, e por ser uma montanha tão bonita e técnica, o gosto de conquista não é assim tão completo, pois a parte mais divertida e que realmente iria compor a escalada de verdade está anulada, pelo menos do meu ponto de vista. Toda a parte de acessar o caminho, montar as ancoragens, a estratégia, e as próprias incertezas na hora de tomar decisões, ficam de fora. Fisicamente foi minha montanha mais difícil, mas tecnicamente já estive em vias mais duras. Apesar de que teria sindo incrivelmente lindo escalar esta via em livre, e acredito que escalada dessa maneira, seria um ED sólido.

De qualquer maneira, esta montanha em formato de abraço me ensinou algumas coisas importantes, e me deu de presente pessoas muito especiais. Cada vez tenho mais e mais a impressão de que as pessoas mais incríveis que conhecemos estão nas montanhas, e talvez seja esse o maior atrativo humano da escalada. Gratidão, Himalaia. Obrigada, e namastê!

Agradecimentos:


Altamontanha.com pelo espaço e oportunidade de divulgação, além do reconhecimento.
Aos amigos e família pelo apoio moral e emocional.
Raj, que foi meu sirdar até o acampamento base do Ama Dablam e sempre fez o impossível pra que tivéssemos o máximo possível de tranquilidade e conforto durante a aproximação.
Ryan pela (difícil mas persistente) parceria na escalada do Island Peak.
Finalmente, Dani e (principalmente) Alfonso, meus parceiros na escalada do Ama Dablam e amigos inseparáveis nos últimos dias em Kathmandu. A maneira como as montanhas aproximam espíritos parecidos continua me surpreendendo a cada escalada. E "vaya tres patas pa´un banco!"
 

Compartilhar

Sobre o autor

Nômade por acaso, Cissa Carvalho nasceu em São Paulo, já morou no Alabama e na Amazônia, e atualmente reside na capital Paulista até que os ventos novamente a levem pra algum destino inusitado do planeta. Trilha desde pequena e conheceu as montanhas com vinte e poucos anos, mochilou a América do Sul, andou pelas montanhas brasileiras e nos últimos anos tem se dedicado ao montanhismo de altitude, e mais recentemente à escalada em rocha. É bacharel em design gráfico e pós-graduada em design editorial.

Comments are closed.