Expedição ao “Everest” da Ilha da Magia

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Ouvi dizer que a escalada começava atrás do cemitério e também que, em outros tempos, o Henrique Paulo (Vitamina) Schmidlin havia se aventurado sozinho pela encosta leste sem, no entanto, alcançar o cume.

Partimos de Curitiba na manhã de quinta feira, 22/01/2015, em três automóveis carregados com equipamentos técnicos indispensáveis à grande aventura e combinamos de nos encontrar no supermercado antes da ponte para comprar os suprimentos que nos faltavam, mas na confusão dos engarrafamentos acabamos por nos dispersar e num emaranhado de caminhos confusos perdemos tempo precioso. À tardinha e debaixo de chuva chegamos inteiros ao acampamento base na Caieira da Barra Sul, onde fizemos a aclimatação deixando os automóveis protegidos debaixo de um telheiro.

Extremamente penoso foi descer todo o equipamento e os suprimentos pelos trocentos degraus até o refúgio. Operação formiguinha debaixo do aguaceiro. Mas importante mesmo foram as duas garrafas de vinho tinto por dia de expedição, frisante para as damas, vodka, Velho Barreiro Gold e limão para as caipirinhas. O peixe fresco, o camarão, a picanha e o carvão adquirimos no mercado local. Neste primeiro dia abraçamos as duas primeiras garrafas e relembramos todos os detalhes dos planos de ataque. Tarefa árdua que avançou pela madrugada entre brejas geladas, tira-gostos variados e churrasco porque ninguém é de ferro e a maresia marulhava abaixo de nossos pés.

A primeira noite num abrigo é sempre traumática devido a tarefa de reconhecer o ambiente, acomodar o grupo nos dormitórios improvisados e subir outros trocentos degraus carregando as traias de cada um, mas lá pelas tantas da madrugada estavam todos devidamente alojados. Num dos aposentos ficaram o Moisés Lima com a Berenice e a Daninha, noutro a Rossana Reis e a Juliana Fiori, no terceiro instalou-se o Henrique Paulo (Vitamina) Schmidlin com a Dulce, eu e a Solange ocupamos outro e o Trapinho – velho, surdo, meio cego e banguela – precisou se contentar em dormir sozinho no piso frio do refeitório.

Nosso segundo dia nasceu radiante com as ondas lambendo a areia debaixo da mesa do café matinal. No almoço sofremos horrores com o camarão ao bafo, descanso necessário para restabelecer as energias depois da extenuante viagem. Mas a tarde abandonamos a preguiça e enquanto as mulheres se refrescavam nas águas tépidas da enseada, nós os expedicionários, partimos para uma leve caminhada de aclimatação. Alguns quilômetros pelo asfalto fervente até o final da Rua Baldicero Filomeno onde agarramos o mato, subindo o morro até a crista e por ela andamos outro tanto até a praça de armas com os canhões da segunda grande guerra apontando para a entrada da barra sul. Bonito mirante para apreciar o horizonte e toda a orla de Naufragados. Suando as bicas ainda arranjamos forças para prosseguir pela trilha até o Farol no extremo sul da ilha com vista privilegiada para a pequena Ilha de Araçatuba onde existem ruínas de uma antiga fortificação portuguesa.

Sedentos e debaixo de sol forte desescalamos as encostas íngremes até bater na praia e caminhando pela areia fofa fomos encostar a barriga no balcão do boteco do Seu Andrino, rei absoluto destas plagas com seus três dentes espaçados, dois para segurar o cigarro e um terceiro pra doer o dia inteiro. O retorno fizemos pela trilha clássica e direta atravessando entre as quatro colunas do velho engenho em ruínas e mais perna pelo interminável asfalto até o refúgio onde fomos recebidos com picanha na churrasqueira, caipirinha de vodka com abacaxi e cachaça com abacaxi, vinho tinto e ostras, muitas ostras.

Já avançávamos pelo terceiro dia de expedição e o ataque ao cume precisou ser novamente adiado em função dos excessos etílicos da noite anterior. Nada como uma boa bebedeira e um dia de ressaca para diminuir a ansiedade. Passamos este dia jogando conversa fora, escondidos do sol forte debaixo da cobertura da varanda com vista para a Serra do Tabuleiro por detrás da Enseada do Brito, onde no inverno passado, por uma semana inteira se vestiu de neves eternas o Morro da Cambirela e arredores.

Mas no quarto dia não haveria de nos escapar. Despertamos pontualmente as 8:30 horas da madrugada com sol entre nuvens e o anúncio de trovoada. Dia perfeito para uma caminhada radical por íngremes encostas inexploradas, 500 metros acima da zona da morte. Despedimos-nos das esposas e filhas após um coffee break reforçado e embarcamos na valente Palio Adventure da propaganda do macaquinho. Coisa de meia hora para chegar ao Ribeirão da Ilha, contornar a praça e estacionar de fronte a igreja matriz. O Henrique (Vita) parte para obter informações preciosas com os nativos enquanto eu, o Moisés e a Rossana cruzamos pela zona da morte na cota 80 m.s.m.

O campo santo se espalha pela encosta ao lado da igreja com seus túmulos muito bem cuidados, todos enfeitados com coloridas flores de plástico e os mais recentes ainda protegidos por toldos a evitar que os defuntos derretam no calor. Poderiam ser crocodilos do Nilo ou dragões de Komodo, mas eram dois os lagartos papa-defunto que fugiram à minha aproximação. No canto superior direito encontrei um rastro no capinzal e o segui até ficar parecido com uma trilha. O Moisés agarrou o mato a esquerda e a Rossana marcou posição entre os túmulos. Me desguelei de tanto chamar e quase cozinhei ao sol antes que alguém aparecesse. O Vita nos trouxe a informação que havia um marco geodésico no cume, mas a trilha estava perdida desde o século passado. Seguimos os rastros até uma pedreira que já serviu de campo de treinamento para o exército e iniciamos a escalada pela encosta a esquerda. Às vezes surgiam rastros animadores que desapareciam por encanto logo em seguida e na maioria do tempo íamos levando quiçaça no peito por dentro de um bosque sujo até que nas proximidades da cota 350 encontramos água e paramos para descansar.

Algum animal fuçava o chão a nossa esquerda, fazendo barulho ao remover as folhas caídas e o trovão ecoava distante sobre o continente. Subíamos em fila indiana, bem afastados uns dos outros, a procura da melhor passagem por entre grandes pedras espalhadas pela encosta. A floresta a tudo encobria e engolia debaixo da alta cobertura verde. Caminhávamos num mundo de sombras com a tempestade e os trovões se aproximando sempre mais. Quando os grossos pingos de chuva já começavam a despencar do alto das árvores para explodir em nossas costas, encontrei uma pequena gruta por debaixo de uma grande pedra e ali nos reunimos para nos proteger do aguaceiro tropical. Chuva e vento sacudiam as árvores, cascatas despencavam de seus galhos e troncos, trovões explodiam sobre nossas cabeças e os relâmpagos espalhavam sua luz fantasmagórica pelas sombras do bosque.

Com a violência e rapidez que chegou também se foi para leste, em direção ao Atlântico bem próximo, deixando nosso entorno úmido e nos primeiros passos fora do abrigo já estávamos molhados até os ossos, mas caminhar é preciso. A vegetação mudava rapidamente com a aproximação da crista e de súbito cruzamos com uma trilha fortemente marcada no solo. Seguindo-a rapidamente chegamos ao cume do Morro do Ribeirão com seus 580 m.s.m, ponto culminante de toda a Ilha de Santa Catarina, demarcado por um minúsculo pilar de concreto onde algum dia se fixou um marco geodésico devidamente afanado por algum manézinho.

O morro é arredondado com o cume muito amplo e coberto por vegetação espessa de modo a não oferecer mirantes e ainda envolta pelas brumas deixadas pela tempestade. Nossa presença atraiu verdadeira nuvem de pernilongos ávidos por uma refeição fácil tornando penosa a permanência naquele local. Feitas as anotações e observações necessárias tratamos de cair fora o mais rápido possível daquele lugar.

Levamos pouco mais de duas horas e meia para chegar ao topo reduzidas para uma hora e meia se descontados o tempo perdido na base, antes de iniciar efetivamente a caminhada, e o tempo gasto dentro da gruta ao abrigo da tempestade. E agora, no cume, tínhamos duas boas opções para descida. O Vita deixara marcada boa parte do trajeto usado na subida com sua linha desenrolada do carretel, mas os espinhos que nos retalharam na vinda ainda estavam intactos aguardando nosso retorno. Por outro lado havia a trilha recém descoberta acenando com um retorno tranqüilo, mas com destino incerto. Falou mais alto o espírito aventureiro e nos deixamos dominar pela curiosidade, seduzidos pelo desconhecido.

A trilha acompanhava a crista percorrendo uma rota longa, tranqüila e entediante que nos tomou outra hora e meia até nos conduzir ao quintal de algumas casas a pequena distancia da estrada e praticamente ao nível do mar. Na primeira tentativa de cruzar este último obstáculo, tanto a Rossana como o Moisés se depararam com um pitbull anti-social. Tive mais sorte ao encontrar um cidadão banhando-se na piscina e simplesmente pedir a ele que abrisse o portão da saída, sem mais explicações. Após o Vita, a Rossana e o Moisés passarem é que caiu a ficha do proprietário e sua esposa veio até nós perguntando se tínhamos vindo pela trilha e oferecendo auxílio e água. Muito deve ter pesado nossa aparência para esta atitude nos forçados anfitriões; molhados, suados, sujos e com as pernas e braços rasgados pelos espinhos. O Vita ainda completava o quadro com um imenso e mal enjambrado curativo na panturrilha que nada tinha a ver com a caminhada, mas impressionava mesmo a distância.

Ressurgimos para a civilização ao norte do ponto de partida e bastou percorrer uns mil e duzentos metros na direção contrária, pela Rua Baldicero Filomeno, para recuperarmos o automóvel estacionado na praça e voltarmos ao refúgio onde nos prolongamos nas comemorações, beberagem e comilanças. Mas com o objetivo principal alcançado também o grupo foi se dispersando. Na manhã seguinte o Moisés com a Bere e a Dani ensacaram a viola e voltaram para casa. Na terça foi a vez do Henrique (Vitamina) Paulo e da Dulce Schmidlin abandonarem a farra e a vida no refúgio perdeu bastante da intensidade inicial, mas tratamos imediatamente de reagir acelerando o consumo de vinho com ostras e caipirinhas de vodka com mais ostras.

No meio da semana para espantar o tédio da vida boa resolvemos fazer uma última caminhada pelas trilhas do sul da ilha e as 15:00h com o sol mais ameno, eu e a Rossana partimos pela trilha principal de Naufragados até o bar do Andrino onde nos escondemos da chuva juntamente com uma pequena multidão. Dali seguimos para o canto esquerdo da praia a procura de informações sobre o início da trilha para a pequena praia da Solidão. Na última vez que percorri esta trilha como João Carlos (Johny) de Andrade e Silva passamos por entre as casas e recebemos uma bronca. Informação de manézinho da ilha é uma tristeza e nos indicaram subir pela lateral de uma cachoeirinha seca que nos levou apenas ao ponto de captação d’água daquelas casas, mas nos apresentou a uma nova companheira que tornou mais divertida aquela caminhada. Espontaneamente juntou-se a nós uma cadelinha preta muito extrovertida que se comprazia em rolar em toda poça de lodo que encontrava.

Tinha alguma noção de onde deveria encontrar a trilha e varamos mato até achá-la já no alto do morro. Com os problemas de orientação devidamente resolvidos nos entregamos ao prazer da caminhada com nossa nova amiguinha à frente até que esta voltou rápida como um raio a se esconder atrás de mim. Havia algo assustador à frente e avançamos com cuidado até nos depararmos com uma enorme vaca branca nem um pouco disposta a nos ceder passagem. Media próximo a dois metros com um belo e ameaçador par de chifres no alto da testa a nos intimidar, mas que alguns berros e outros objetos lançados em sua direção a puseram em movimento morro abaixo. Agora éramos quatro os companheiros de trilha e a vaca lidera o cortejo seguida a distancia pela cadela. Sabíamos perfeitamente bem quando a vaca parava porque a cachorra mais que depressa vinha se refugiar na retaguarda da coluna. Então a ordem se inverteu e a vaca nos cedeu a dianteira, mas depois arrependeu-se e sem aviso desceu o morro bufando quente no pescoço da Rossana que gritou assustada antes de pular pra fora do caminho. A cadela passou por mim como um torpedo e sumiu no mato enquanto a vaca seguiu atrás como um tanque de guerra desgovernado, mas em minutos a paz foi restabelecida e chegamos juntos ao Pastinho.

O Pastinho é uma plataforma gramada que se projeta para dentro do mar. Cercado por rochedos constantemente atacados pelas ondas e tem vista privilegiada para as ilhas ao longo da costa sudeste até a praia de Pântano do Sul e do morro que isola a Lagoinha do Leste. Daqui a praia de Solidão por trilha não demanda mais que uma hora de caminhada e mais meia hora até Pântano do Sul onde já poderíamos embarcar num coletivo para voltar pra casa, mas não poderíamos abandonar nossa amiguinha pulguenta tão longe de casa. As 18:00h torna-se urgente o retorno e deixamos a vaca satisfeita em meio a grama verde.

No alto do morro apressamos o passo e por fim encontramos um manézinho lutando para rebocar outra vaca teimosa. Explicou-nos que esta havia se escondido no mato para dar a luz ao bezerro que a acompanhava assustado e que era necessário afastá-los do local do parto para protegê-los dos predadores que inevitavelmente seriam atraídos pela placenta. Os urubus eram sua maior preocupação e o avisamos da localização da segunda vaca no Pastinho.

Na praia nem precisamos nos despedir da pulguenta que imediatamente encontrou outro dos seus amigos de quatro patas e com ele se afastou festiva e alegre. A noite nos alcançou na entrada da trilha de Naufragados e algumas nativas nos alertaram para nos apressarmos em cruzar o morro em função das bruxas, assombrações ou algo do gênero. Até onde é séria esta advertência não sei, mas foi bem engraçado.

Na descida para Caieira já estava bem escuro e a Rossana precisou ligar a lanterna para não quebrar os dentes nas pedras, mas até por falta de lanterna preferi usar apenas o bastão que recolhi na praia para esta ocasião. Enquanto esperava a retardatária chegar emendei uma animada conversa com uma nativa muito falante que nos aguardava curiosa no final da trilha. Um metro e meio de altura por igual medida de circunferência e o dobro em indignação.

– Não podes andar a noite nesta trilha! Não tens medo de cobra?
– Tem cobra na trilha? – fingi ignorância.
– Tem jararaca. Meu Deus você está de chinelas!
– Só na descida – respondi – na subida andei descalço mesmo.
– Deus do céu, vocês são loucos! Não tens medo da jararaca? Loucos!

E saiu indignada falando aos quatro ventos o quanto somos loucos. E desta missa não sabe nem o terço. Tens medo de jararaca? E de bruxas? Estes manézinhos da ilha é que são todos loucos!
 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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