Farinha Seca

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Na sexta feira, 8 de abril, o tempo estava magnífico, com sol forte e a temperatura agradável que nos motivou em preparar as mochilas. No Paraná temos um nome especial para o primeiro dia de sol depois de dois ou três dias de chuva gelada, chamamos este glorioso dia de segunda feira.

No amanhecer de sábado já encontramos o céu tomado por nuvens cor de chumbo e rumamos para a Serra da Graciosa, aliás, esta também é uma serra que de fato nem existe. A Graciosa não é uma cadeia de montanhas como o nome sugere, é na verdade o que se chama de "passo" ou passagem, uma falha no relevo que divide duas importantes cadeias montanhosas da Serra do Mar. A direita fica a Serra do Ibitiraquire que abriga as mais altas montanhas do sul do Brasil e a esquerda está a Serra da Farinha Seca que de seca não tem nada.

No verão toda a umidade evaporada do mar em frente, sobe as alturas e se choca com estas montanhas e no inverno as frentes frias vindas da Argentina, sobem pelo vale do Rio Iguaçu até encontrarem as mesmas montanhas e independente da estação as nuvens se espremem neste corredor estreito despencando sob a forma de chuvas intensas. Apesar do nome enganador é exatamente o inverso do deserto do Atacama, quando por lá chove aqui faz sol.

Ao deixar o carro na Casa Garber saldamos o "Espalha Brasa" que veio nos receber no portão, "Bom dia Velho Pançudo", que retribuiu com o humor de sempre, "Velho é teu passado!" E por fim nos pediu para travar o cadeado ao sair, "Sábado é dia de visitar as Primas".

Seguimos para a trilha que dá acesso ao Morro Sete depois de cruzar o cume do Mãe Catira, é bem definida e ótima opção para um trekking selvagem. Vestíamos apenas shorts e camiseta, eu ainda carregava uma pequena pochete com um canivete Victorinox, o velho anorake amarrado por fora, alguma comida e duas pilhas AA, mas a lanterna esqueci no outro carro. O Moisés tinha uma mochila com seu anorake, comida, uma garrafa pet para água e uma lanterna frontal enquanto o Elcio só carregava uma lanterna no bolso da bermuda.

Nem bem os olhos se acostumaram à penumbra e os trovões começaram a pipocar a nossa volta. Na cachoeira já estávamos debaixo de chuva grossa e as botas impermeáveis se encheram com a água que escorria pelas pernas, mas o movimento mantinha os músculos quentes. Pelo menos até sair nos primeiros campos de altitude e então o passeio acaba.

Abandonamos a trilha e descemos a grota em direção ao Poaguaçu Mirim, equilibrando-se sobre as raízes e segurando nos troncos das árvores. Estávamos já dentro das nuvens espessas e as rajadas de vento nos castigavam com os respingos das copas encharcadas d´água. Depois de cruzar o riacho no fundo da grota a inclinação ameniza na subida. Estas montanhas obedecem ao desenho convencional de dente de serra com a face norte inclinada a 45º e a face leste rasgada por paredões a prumo.  ,

Dentro do mato ainda é suportável, mas ao despontar na longa rampa final dominada por vegetação rasteira as rajadas de vento se transformam em tortura e aumentamos o ritmo para diminuir a tremedeira. Nem pensar em descansar no cume e despencamos pela grota oposta, agarrados aos troncos das árvores feitos gorilas em filme do Tarzan.

Árvores presas aos paredões de pedra por raízes espalhadas na vertical, como aranhas vegetais, e o tronco seguindo na horizontal por um metro ou menos antes de curvar-se em 90º para explorar alguma brecha de luz no teto da floresta. Muitas com as raízes descoladas, aéreas, afastadas em até meio metro da superfície de apoio.

Todo cuidado é pouco para não se apoiar em galhos ou raízes mortas, nem despencar com as pedras soltas. Aliás, todo objeto solto ou precariamente equilibrado é desalojado e rolado com grande estrondo para o fundo das grotas para a segurança daquele que vem atrás. A descida é longa e acidentada, mas a subida para o Casfrei é curta e rapidamente galgamos o cume coberto por vegetação lenhosa, dura e cortante na altura do quadril. Fim do terreno previamente explorado, daqui até o cume do Tapapuí é tudo desconhecido a não ser por algumas referencias esparsas e observações à distância.

 ,A neblina gelada a tudo encobria e pacientemente esperamos no frio até que o vento abriu uma brecha nas nuvens e por instantes visualizamos a Baía de Paranaguá. Nunca antes havíamos tido o menor visual do alto deste pequeno cume, mas esta rápida aparição nos forneceu a orientação necessária e deitamos o cabelo em direção sudoeste, vencendo a macega até penetrar na mata. Pouco a frente encontramos o primeiro paredão descendo vertical, mas nosso tempo acabara, soou o alarme das 15:00h e tínhamos apenas o tempo necessário para retornar.

Quinze dias depois estávamos novamente no cume do Casfrei, mas sob melhores condições. O céu claro e a atmosfera transparente davam novos ânimos à empreitada, as mochilas cargueiras e o GPS proporcionavam segurança. Apesar do desconforto das pesadas cargueiras, que enroscam em tudo, mantivemos um bom ritmo de caminhada, tão bom que uns moleques aparentando não mais de 20 anos, sem carga nenhuma, não conseguiram nem se aproximar e ainda devem estar surpresos por não mais nos encontrar.

As 9:00h saímos do cume do Casfrei em direção ao sudoeste, desviando do paredão e rasgando o mato até o fundo da grota onde cruzamos um brejo fedorento com algumas poças de água parada para em seguida alcançar a base do Esporão do Vitamina que aponta para o norte e começamos a contornar suas encostas. Às vezes encontrávamos as características demarcações deixadas nas árvores pelos "Nas Nuvens" quando fizeram sua travessia, mas nossa picada seguia de forma independente e depois de vencida uma última grota nos deparamos com o nervoso Rio Taquari.  ,

Do alto de um paredão ouvíamos a água turbulenta, mais próximos pudemos ver as manchas de espuma branca despencando pela cachoeira e desviando o curso da desescalada pisamos no leito de pedra em local seguro. Havíamos traçado três rotas alternativas, mas o rio estava no topo da lista para descansar o couro apesar das advertências do Johny. Depois de uma breve pausa para reabastecimento iniciamos a marcha pelo centro do cânion que de imediato se mostrou ameaçador.

Estreito e escorregadio parecia um corte a faca num pão de centeio e caminhávamos sobre as afiadas pedras depositadas no fundo da fenda. Paredões a prumo se erguiam em ambos os lados e por fim nos barraram também à frente por nova e intransponível cachoeira. Avançamos procurando uma brecha na parede a esquerda, subindo por uma estreita rampa que abruptamente terminou no vazio a cinco metros verticais acima do leito. Cogitou-se em recuar até a entrada do cânion a procura de uma saída, mas vi uma pequena plataforma quatro metros acima que poderia me dar apoio para galgar outro tanto e atingir um local de onde despontavam alguns arbustos indicando terreno menos vertical.

A escalada seria curta, mas bastante tensa e exposta, sem margem para erro. Acreditei nas possibilidades e se as agarras disponíveis sustentassem o meu peso suportariam também os demais. Ignorando a decisão e a advertência do grupo foi logo passando a mochila para o Elcio, tinha que vencer duas vezes a minha altura e me agarrar a um solitário tronco de árvore que descia acompanhando o paredão. Em dois movimentos já estava lá, o tronco tremeu e estalou ameaçando soltar-se, mas então já não precisava mais dele e soltei um pedaço de corda para puxar as três mochilas. O Elcio e Moisés subiram em seguida para a diminuta plataforma e toda a operação precisou ser repetida mais uma vez antes de alcançarmos um estreito corredor de rocha coberta de limo e pequenos arbustos que nos conduziu em segurança até a cabeceira da cachoeira.

Concordamos que nunca mais repetiríamos aquela barbaridade, mas duzentos metros acima a coisa ficou sinistra pra valer. O cânion se fechou sobre nós com paredões em ambos os lados que superavam os cinqüenta metros de altura terminando em negativos sobre o rio. Os primeiros 20 metros estavam nus, lisos e gotejantes para depois se cobrirem de limo até o topo onde as árvores trançavam suas copas encobrindo o céu. A fresta escura avançava por 40 ou 50 metros até fechar-se numa ruidosa cachoeira despencando da fissura 10 metros acima da estreita e funda piscina que serpenteava até a entrada do cânion. Avançamos o máximo possível movidos apenas pela curiosidade e pelo espanto, sem o menor animo de enfrentar este novo desafio.  ,
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Na cachoeira anterior já havíamos descartado o rio como rota rápida e segura para o Tapapuí e o encontro com este novo obstáculo reforçou ainda mais a necessidade de explorar nossa segunda opção. Retornamos para a entrada do cânion onde havíamos encontrado uma saída segura do corredor de pedras e iniciamos a escalada dos paredões em direção ao Esporão do Vitamina. Subimos por uma sucessão de pequenas plataformas sujas, lisas e barrentas, cobertas de limo, pequenos arbustos e folhas mortas por onde corriam incontáveis filetes de água.

Quanto mais subíamos, mais paredões surgiam barrando nosso avanço até que a verticalidade cedeu para uma inclinação acentuada, o chão secou e os arbustos cobriram-se de longas barbas de limo. Chegamos a um bosque inclinado e dominado por um mar de bromélias gigantes com suas longas e afiadas espadas se cruzando num emaranhado impenetrável. Da copa das árvores pendiam longas e grossas cordas de cipó "unha-de-gato" pra completar o estrago.

Adicionamos um par de luvas ao uniforme de campanha (shorts e camisetas) e as bromélias se arrependeram de ter raízes. Meia hora depois vazamos no campo de taquaras e quiçaça na altura da barriga, com a alma lavada e o corpo retalhado por cortes e espetadas, sangrando tanto quanto a cachoeira que deixamos para trás. Enfim no alto do Esporão do Vitamina e mais alguns passos caímos noutra depressão com outro bosque idêntico, mais bromélias de 1,50 metros e "unha-de-gato" rasgando o couro.

Retornamos rapidinho para o rio que se transformou numa estreita laje ensaboada, mas de suave inclinação por onde corria um filete de água cristalina, verdadeiro bálsamo para as feridas expostas. Adeus e até nunca mais para o Esporão do Vita, seguimos pelo riacho até sua nascente no ponto mais alto do vale que divide o Esporão das encostas do Tapapuí 2 apenas para encontrar um intrincado taquaral barrando a passagem. Sem o menor entusiasmo para enfrentar mais esta barreira fomos nos arrastando entre as frestas, abrindo passagem com o corpo, palmo a palmo avançando para o cume em meio a bromélias, bambus e quiçaça lenhosa. Alcançamos o cume com o sol se pondo no horizonte.

Deixando o Moisés e o Elcio montando as barracas desci toda a grota até a nascente do Rio do Meio, com duas garrafas pet, buscar água para o jantar. Tínhamos macarrão e feijoada, mas no retorno já encontrei o Moisés fritando salame italiano cortado em pequenos cubos com acompanhamento de queijo defumado em generosas fatias. A ventania não tolerava nossas barracas e precisei fazer um anteparo para o fogareiro não apagar. Fora da barraca o frio era intenso e mesmo protegido pelo anorake minhas mãos não paravam de tremer enquanto comia e câimbras horríveis me paralisaram as pernas.

Noite estranha com vento de oeste, enquanto altas e pesadas nuvens se aproximavam vindas do leste. O Pico Paraná era apenas uma silueta negra destacada por violenta tempestade magnética que fechava o cerco no horizonte, mas a baixa atmosfera continuava límpida e proporcionava uma ampla visão do entorno. Curitiba, Campo Largo e Piraquara fundiam-se no planalto encostando-se à Serra de São Luiz do Purunã, Morretes e Paranaguá formavam ilhas de luz. Vez ou outra éramos atingidos por uma saraivada de respingos enquanto as barracas deitavam e gemiam sem trégua na ventania. Por mim que o mundo se acabasse naquela noite, o cansaço estava pegando e afundei no saco-de-dormir pra só despertar ao amanhecer com o dia esplendido.

A ventania desapareceu com o sol e o ar transparente, seco e frio expandiu os horizontes. Na alta atmosfera pairavam estáticas as imensas formações de rabo-de-galo anunciando para breve a entrada de uma frente fria vinda do sul. Com as cargueiras novamente nas costas iniciamos a descida da grota para preparar o café da manhã com a água fresca da nascente do Rio do Meio.

Enquanto tomávamos nosso cappuccino com bolo de chocolate, o Elcio descia o rio para demarcar o ponto exato onde nasceria a trilha para o Farinha Seca e as 8:00h iniciamos a jornada morro acima, enfrentando todo tipo de vegetação. Bosque, quiçaça, taquara, bambu, unha-de-gato e bromélias imensas foram nos dando passagem até despontarmos numa pequena clareira forrada de capim na extremidade norte da crista que abriga o cume. Uma visão fantástica do Tapapuí e dos imensos precipícios que despencam em direção da centenária Estrada da Graciosa serpenteando mil metros abaixo.

Seguimos pela crista abrindo um rasgo na macega densa e ressequida até as 14:00 horas quando encerramos o trabalho sob os protestos do Elcio. Paramos a 150 metros do cume e nem a 50 do capinzal que o antecede, hora de voltar para casa e não adiantou espernear. Recebemos mil propostas para terminar o serviço e pernoitar, deixar comida que ele seguiria sozinho e só faltou empenhar o "toba", mas não teve conversa fiada, viemos juntos e assim mesmo voltaríamos, além do mais o Moisés precisa estar em casa no sábado pra desenhar a "trilha do coelhinho".

Em meia hora já descíamos pelas pedras cabeludas do Rio do Meio e quatro horas depois saímos do pasto, pulando a porteira, na Comunidade Rural de Rio do Meio onde esperamos pelo resgate sentados na cabeceira da ponte. O Kayo, nosso resgatista, passou sem perceber a capela, a pedreira e a ponte, nos fazendo alimentar os insaciáveis borrachudos por outra longa e infinita hora, mas no final tudo se acerta e a Daniela precisou seguir a trilha de pegadas para encontrar o ninho do coelhinho naquele domingo de páscoa.
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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