Com maior facilidade de acesso à informação e o grande interesse em obter “selfies” em lugares diferentes, na maioria das vezes bonitos e desafiadores, cresceu absurdamente o número de pessoas nas montanhas nos últimos anos. E, com mais gente nas trilhas, o impacto nos ambientes naturais logicamente tem sido muito maior, seja pelo pisoteio e despejo de lixo ou pelo excesso de sinalizações ou facilitadores com o pretexto de evitar mais pessoas perdidas ou machucadas nesses caminhos – entre muitos outros problemas. Dessa forma, na alta temporada é difícil visitar um cume e não cruzar com dezenas de “trilheiros”, como se identificam os “montanhistas de fim de semana” da atualidade. Sobra gente, falta essência. Nesse momento, que espero que seja realmente efêmero, são poucos os locais onde se pode chegar ao cume e relembrar os tempos de outrora. Um desses é o Garrafão, na Serra dos Órgãos. A caminhada é longa, a orientação no trecho final não é das melhores, é preciso rapelar para ir e encarar um forte cabo de aço para voltar, entre outros desafios para repetir a façanha daqueles que lá pisaram pela primeira vez, na década de 30.
Bom, antes de começar o relato da minha terceira vez nesse cume, onde estive com o pessoal do Centro Excursionista Teresopolitano recentemente, é importante destacar que essa montanha nada tem a ver com o bairro ou o posto de gasolina de mesmo nome no meio da Rio-Teresópolis, em Guapimirim. Com 2.139 metros de altitude, o Garrafão fica na parte alta dessa cadeia de montanhas, tendo como referência a Pedra do Sino. Tanto que, para chegar até ela, é preciso ingressar no Parque Nacional da Serra dos Órgãos pela sede Teresópolis e subir toda a trilha da montanha mais frequentada dessa unidade de conservação ambiental. Lá, do ponto mais alto da Serra, a 2.255 metros de altitude, respirar, olhar para baixo e tocar em direção ao objetivo.
E, depois de aproximadamente 10 quilômetros montanha acima, nesse caso descer “não é simplesmente ir para baixo”. Entra em cena a segunda dificuldade do Garrafão, a orientação nos últimos quilômetros, a partir do topo do Sino. O caminho segue por lajedos e cruzando a característica vegetação de altitude, às vezes fechado por conta do trabalhoso capim e outras espécies vegetais que podem esconder grandes e perigosos buracos. Alguns poucos totens e setas auxiliam, mas acabam sendo mais úteis para quem já tem uma ideia da direção a seguir.
Os paredões
Nesse trecho final, a vista para o vale e à esquerda abaixo é impactante. É daquelas que você para e fica alguns minutos meio que abobado com tamanha beleza, daquelas cenas que vale cada espaço “gasto” no cartão de memória da câmera fotográfica. A São Pedro se revela um gigante de pedra, a Agulha do Diabo se destaca ainda mais e revela a sua impressionante “unha”, um dos lances mais emblemáticos da sua escalada… Cabeça de Peixe, Dedo de Deus, Escalavrado… As mais famosas da Serra dos Órgãos vistas de um ângulo bastante incomum e, entre elas e o local onde está o caminhante, uma inóspita e pouquíssimo visitada região – por ser hoje área intangível e também logicamente pela sua grande dificuldade de acesso.
Hora de equipar!
Após aproximadamente 12 quilômetros de caminhada, hora de utilizar o material de escalada. Quase chegando, a trilha indica uma pequena e escura caverna. Nela, um grampo no teto para se rapelar um lance de cerca de quatro metros. Saindo da caverninha, o trecho mais “duro” do Garrafão, o cabo de aço. Para ir ao cume, é preciso descer ao lado dele utilizando a técnica de rapel, por cerca de 30 metros. Depois, subir mais um trecho de trilha íngreme e um trepa pedra antes do topo, onde existe hoje uma corda fixa, antiga, popularmente conhecida como “bacalhau”.
E mais de seis horas após sair da Estrada da Barragem, é cume! E nessa minha última incursão ao Garrafão, o dia estava lindo. Vento gelado e um céu azul terminando majestosamente em horizontes desenhados pelas centenas de formações rochosas da nossa região. E desse lugar é difícil escolher o lado mais bonito. Como citei no início, é daqueles cumes que revela uma Serra dos Órgãos ainda extremamente desafiadora e de beleza cênica única. É possível admirar os gigantes paredões da Pedra do Sino, onde fica a pouquíssimo repetida “Terra de Gigantes”, e o único locar onde se é possível ver a Cara de Cão.
No montanhismo, é senso comum que chegar ao cume é apenas a metade do caminho. E, no caso do Garrafão, o retorno é tão ou mais difícil que a ida. Sabe o cabo de aço? Pois é… Para voltar aos lajedos que conduzirão ao topo do Sino, é preciso ter força no braço e técnica para subir o paredão com grande inclinação, sem contar que, quase sempre, esse trecho está molhado e escorregadio para complicar um pouquinho mais.
História e presente
Só para se ter uma ideia, somente nesse pequeno trecho gastamos mais de duas horas até que todo o grupo fizesse o cabo de aço e depois vencesse o pequeno lance de escalada dentro da caverninha…. Lasqueira! Depois, subir as lajes e chegar ao “cimo” já no pôr do Sol. Mas esse foi mais um presente para aqueles que ousaram vencer os inúmeros desafios para chegar ao cume conquistado em 1934 por Emérico Ungar, Geoffrei Edward, Gilbert Ferrez e W. Georg Andrews. Nessa época, o Garrafão era conhecido como “Fagundes” e, importante destacar, as investidas para conquista-lo acabaram inspirando outros montanhistas a desafiar e vencer o Penhasco Fantasma, como era conhecida a Agulha do Diabo até meados dos anos 30. Mas isso já é assunto para outra coluna! Abração e boas trilhas, lembrando sempre que ser um montanhista de verdade é muito mais que chegar ao topo!
2 Comentários
Matéria muito boa
Excelente matéria sobre uma das mais belas montanhas brasileiras, o Garrafão! Esse lance que fazemos em diagonal, onde tem a velha corda fixa (Bacalhau) o chamamos de “Rôsca” do Garrafão, por lembrar timidamente a rôsca da tampa de seu gargalo. Parabéns pelas belas fotos e texto, bem a propósito da atual situação da frequencia muitas vezes exagerada e até prejudicial aos locais de preservação ambiental na Serra dos Órgãos! Abraços!