Indigenistas (Primeira Parte)

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Esta coluna foi baseado em um livro muito especial: Rondon, uma Biografia de Larry Rohter, um jornalista norte-americano que residiu longamente no Brasil. Sua leitura foi complementada por vários artigos a respeito deste personagem formidável.

Indigenistas (Primeira Parte)

Morrer se preciso for, matar nunca.
Marechal Cândido Rondon

Índio bom é índio morto.
General Philip Sheridan

Cândido Rondon foi um incansável explorador, talvez aquele que maior extensão tenha percorrido em vida: nada menos do que 77 mil km ao longo das terras e águas do sertão brasileiro. Para dar a você uma noção, equivale a quase duas vezes o conjunto de caminhos com 40 mil km que os incas criaram na América e, igualmente, a duas voltas pelo Equador de nosso planeta.

Marechal Cândido Rondon.

Porém, mais do que estes números grandiosos, a obra de Rondon deve ser apreciada por sua qualidade. Rondon foi geógrafo e cartógrafo, foi botânico e etnólogo, indigenista e ecologista. Sua construção de linhas telegráficas através da Amazônia e do Pantanal permitiu integrar o interior remoto e desconhecido do país ao seu litoral povoado e desenvolvido.

Além do telégrafo, cujas estações funcionaram como polos de crescimento e originaram inúmeras cidades, Rondon implantou trilhas, estradas e pontes; descobriu, atravessou e mapeou rios, serras e jazidas; demarcou nossas fronteiras com a Bolívia, o Peru, a Venezuela e as Guianas. Este foi o seu trabalho como engenheiro e geógrafo.

Demarcação da fronteira com a Venezuela.

Mas Rondon foi também indigenista e naturalista: descobriu, pacificou e assentou tribos indígenas, publicou livros sobre suas diferentes etnias, fundou e dirigiu o SPI, do qual se originou a atual FUNAI, e defendeu a criação do gigantesco Parque Indígena do Xingu, uma iniciativa que levou quase uma década e que só foi realizada após sua morte.

Rondon ainda organizou a publicação de centenas de estudos sobre o homem e a vida na natureza. Doou individualmente o maior acervo de espécies ao Museu Nacional, na época nosso maior centro para o estudo da história natural. O Museu possuía a mais completa coleção de flora tropical do mundo. Não possui mais, depois do incêndio que o destruiu em 2018.

O livro Índios do Brasil.

Rondon também atuou como militar, comandando as tropas federais contra uma rebelião no sul do Brasil, arbitrando uma disputa internacional entre Peru e Colômbia, lecionando Astronomia na Escola Militar e participando na reestruturação física das instalações do exército e da modernização das forças armadas.

Larry Rohter escreveu que Rondon foi uma figura central na transição de um Império não unificado (…) para uma República moderna. Sua vida pública se estendeu por extraordinários setenta anos (…) com seu envolvimento no movimento abolicionista e sua participação (…) na queda da Monarquia até seu apoio na campanha em prol da construção da nova capital, Brasília, no território que ele havia explorado seis décadas antes. Ele foi assim não só um soldado e cientista, mas também um estadista.

Para mim, esta foi sua maior dimensão: a de homem público. De Deodoro da Fonseca a Juscelino Kubitschek, que conheceu na juventude e na velhice, Rondon sempre serviu a seu país com absoluta lealdade, com honra e coragem – com a possível exceção de Ruy Barbosa, foi a meu ver nosso maior homem público.

Roosevelt e Rondon.

Talvez a passagem mais conhecida da vida de Rondon tenha sido a expedição em que guiou o ex-presidente americano Theodore Roosevelt na Amazônia. Ele tinha um forte interesse pela natureza, com um passado de naturalista – fora fundamental para a fundação de Yosemite, o mais famoso parque natural de seu país. Cansado de política e desejoso de aventura, Roosevelt queria agora conhecer a Amazônia. E ninguém melhor do que Rondon para acompanhá-lo.

A expedição Roosevelt-Rondon entrou para a história como uma epopeia no coração do Brasil, ao atravessar sob o verão úmido uma sucessão de planaltos, pântanos, montanhas e florestas. Durante quase meio ano e 4 mil km, bordejaram o Pantanal, atravessaram a gigantesca Chapada dos Parecis e subiram o então chamado Rio da Dúvida, cujo trajeto ninguém conhecia e que coube à expedição penosamente mapear. Ao cabo de doenças e mortes, cachoeiras turbulentas e chuvas torrenciais, selvagens hostis e animais selvagens, chegaram finalmente às mansas águas do Rio Madeira.

Rondon nasceu em Mimoso no Mato Grosso, onde existe um curioso monumento em sua homenagem. Órfão desde os dois anos, foi criado por um tio em Cuiabá, de quem mais tarde herdou o sobrenome. Optou por seguir a carreira militar e viajou com este objetivo ao Rio. Seu diploma, entretanto, não foi reconhecido. O jovem Rondon completou em apenas um ano todo o curso preparatório de três séries e ingressou na Escola Militar, onde logo se destacou.

Rondon e seu cachorro Cahy.

Uma vez formado, foi convidado a participar na implantação da linha telegráfica Cuiabá-Araguaia, onde aprendeu os segredos da floresta e o respeito a seus habitantes. A partir daí, percorreu infindáveis extensões no país, implantando estradas e linhas telegráficas, mapeando montanhas e rios, demarcando fronteiras – incansavelmente, durante quatro décadas.

Rondon não pôde aceitar a ditadura de Getúlio Vargas, acabou preso e, depois, demitido do exército. Como civil a partir de então, e pelos trinta anos seguintes, teve grande dificuldade em manter sua defesa da causa indígena. Foi tanto desdenhado como manipulado por Vargas, com quem sempre teve uma relação difícil. Participou de movimentos conservacionistas, indigenistas, democráticos e antinazistas até sua morte.

O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim – este era o lema do Positivismo, doutrina a que Rondon desde cedo se filiou. Era uma teoria que acreditava que a ciência, acima da religião e da política, levaria a um mundo de justiça, honestidade e paz. A rainha das ciências seria a sociologia – sua aplicação permitiria que a humanidade atingisse a racionalidade e não mais se curvasse a nenhum poder a ela superior.

Rondon foi um membro ortodoxo da Igreja Positivista durante toda sua vida adulta. A utópica mensagem positivista de um mundo ordeiro e racional, onde a humanidade evoluiria pacificamente, teve um forte apelo para a mente disciplinada e científica de Rondon. É incrível como ele nunca se desviou desses princípios – foi um admirável homem de fé, embora de forma nem dogmática nem religiosa.

O mapa do Mato Grosso.

Rondon tinha sangue bororo por sua linhagem materna. Tinha a convicção de que os índios poderiam se integrar à sociedade. Não os considerava hostis, entendia que apenas reagiam às terríveis agressões dos colonizadores. Assim, suas expedições sempre demonstravam uma conduta amistosa. Se fossem atacados, seus comandados eram proibidos de revidar. Rondon criou métodos de pacificação, algumas vezes de forma brilhante – o que não impediu que fosse ameaçado, atacado e ferido.

O SPI – Serviço de Proteção aos Índios foi fundado no início do século passado para a proteção dos indígenas, demarcando suas terras, atendendo à sua saúde e educação, e ensinando ofícios úteis à sua sobrevivência. Rondon o presidiu por quase vinte anos.

Rondon e um menino paresí

Porém, pouco antes de sua morte, foram revelados casos de corrupção e de abusos, que não foram corrigidos nos dez anos seguintes – quando o SPI foi substituído pela FUNAI. Esta se mostrou uma organização igualmente funesta, forçando a assimilação dos índios à sociedade, independentemente de sua vontade.

A visão de Rondon dos índios como guardiões da floresta e sentinelas da fronteira foi ignorada. Segundo Larry Rohter, foi trocada por uma política que obrigava as tribos a se mudarem para o interior, onde podiam ser mais facilmente monitorados. Os princípios de Rondon foram subvertidos para servir a um desenvolvimento predatório da Amazônia.

 

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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