Mera Peak – Parte 4

0

Acordo às 7 da matina com pássaros e corvos trovando entre si numa animação de dar gosto. Avisto, quando me entregam o wake up tea, o cobiçado Mera Peak.


Leia a terceira parte do relato

Veja o Mera Peak no Google Earth atraés do Rumos!

Erguidas contra o céu, suas três corcovas nevadas mostram-se desveladas de nuvens. Torna-se monótono – eu sei – descrever quão limpo, sem nuvens e piriripororó se encontra o céu. Fazer o quê se é verdade!! Caso eu falasse o contrário, mentiria, uai. Desde o início do trekking, o clima vem se comportando previsivelmente uniforme: pela manhã, céu de brigadeiro, à tarde, nevoeiro, de noite, céu estrelado. No teto da barraca, minúsculos cristais de geada denunciam que o inverno está chegaaando. Na manhã, que despontou esplendorosa, reina, contudo, um frio civilizado. E quando o sol surge, a mil atrás das montanhas, os últimos vestígios de friaca deixados durante a madrugada, são derradeiramente afugentados.

Fora da barraca, tentando vestir minha calça sobre a segunda pele, constato quão infantil é o humor dos nepaleses. Divertem-se com situações embaraçosas que envolvam tombos, escorregões e confusões. Juntamente com outros trocentos milhões de neguinhos no planeta, a banalidade atrai o riso fácil. Daí o motivo de os palhaços serem tão populares! Protagonizo, sem querer, um quadrinho que me torna alvo de diversão de alguns moradores do lugarejo. Ao vestir, equivocadamente, o lado direito da calça na perna esquerda quase caio no chão. É o que basta pra fazer duas mocinhas sherpas e um porter rirem a valer de minha trapalhada. Não perco a esportiva. Rio de volta um sorriso nada amarelo. Necessário tentar manter a pose, hehe.

Partimos de Thaktor às 8 e 50. A trilha, bem acidentada, alternando subidas e descidas, atravessa inicialmente um bosque de pinheiros a que se entremeiam abundantes renques de bambuzinhos. Faz sentido que os declives sejam mais freqüentes, considerando que Khote, nosso próximo destino, se situa a 300 m abaixo de Thaktor, ou seja, a 3.200 m acima do nível do mar. Em certos trechos mais escarpados, foram improvisados desajeitados degraus de pedra. O resultado são escadarias feitas sem grande capricho, mas que quebram o galho nos ascensos mais ásperos. Depois duns 40 minutos de sobe e desce, avisto já o Inku Khola, importante rio que banha a região, cuja origem resulta do descongelamento dos glaciares Dig, Naulekh, Sanu e Mera existentes no entorno do Mera Peak. O restante da pernada até a planície, onde no estreito leito do rio escorrem suas nervosas águas verde-claras, é moleza. Trata-se duma descida cuja duração não ultrapassa 10 minutos. Não consigo deixar de pensar que, no retorno, a barbada da descida se transformará numa….subida!! Putz grila!!

Suas margens, atulhadas de cascalho, areia grossa e matacões forrados de musgo, são encimadas por barrancos arenosos com altura aproximada de 5 metros. Onde há acúmulo de rochas de médio porte, formam-se pequenas cascatinhas. Delas jorra abundante espuma branca que logo se dilui no verdor da correnteza. Entre as pedras, florescem brancas margaridinhas himalaias, despontando tímidas do solo seco. E o que pensar dos já abusados e manjados arbustos vermelho-fogo, colorindo de púrpura o caminho por onde passo? Meus olhos nunca vivenciaram tanto tequinicolor desde que cheguei neste país!

Bueno, depois duma caminhada de meia-hora ao longo do curso do rio, palmilhando terreno plano, a trilha retorna aos pinherais. Novo ascenso é exigido de minhas pernocas. Dou-me conta então da semelhança entre estes pinheiros e as araucárias, um gênero de conífera, que cresce nos campos de cima da serra, situados no sul do Brasil. O trajeto, lindo, lembra alguns trechos do filme Senhor dos Anéis. A abundante e compacta vegetação não consegue filtrar com rigor todos os raios de sol. Alguns escapam do cerco de árvores e incidem nas aveludadas e verdes folhas da Himalayan Poppy, abundante neste trecho do trekking. Suas flores, via de regra, azuis, exibem, em outras zonas do país, coloração rosa forte.

Às 11 cruzamos o pórtico de entrada do Makalu-Barun National Park onde se localiza a vila Khote. Dominam a paisagem além do Mera Peak outras duas imponentes montanhas: Kusum Khang e Chat Pate. O Mera continua a ostentar, sem nuvens a toldá-las, suas brancas e refulgentes torres na impecável manhã de sábado. Khote não se resume a um agrupamento de 4 ou cinco casas. Pode-se dizer, com uma certa boa vontade, que se trata duma vila. Reúne, em disparada, se comparada aos outros paradouros, as melhores ofertas de serviço no trajeto ao Mera Peak. Diversas são as opções de hospedagem. Tais tea houses descrevem, em placas pregadas nas suas fachadas, as facilidades oferecidas pra quem não curte dormir em barraca. Embora a maioria dos lodges não prime pelo asseio e os quartos sejam uns cubículos, goza-se do conforto dum banho quente, cujo preço – veja bem – é cobrado à parte da diária.

Como não poderia deixar de ser, expostos, à sombra, jazem, sobre pedras, pernis e paletas de carneiro. Espalhados ao longo das ruas, vários armazéns oferecem de tudo um pouco, embora o forte das mercadorias à venda sejam refris, cervas, um uísque chamado Everest e snaks de várias qualidades. Alugam, ainda, o uso de telefones cujas ligações custam 150 rps/minuto. Já pra carregar bateria, o custo é menos salgado: 150 rps/hora. Procurando o local designado pra ser nosso acampamento, Pasang detém-se para conversar com um homem que se encontra lavando roupa nas límpidas águas do Inku Khola. Um pouco mais afastada, uma mocinha coloca as roupas já batidas e enxaguadas dentro do doko que, com destreza, sai carregando rumo a sua casa.

Encontro, já sentados em frente a uma comprida mesa de madeira, Nima e Carol que pra variar sempre chegam antes de mim. O almoço, ao ar livre, é tudo de bom: sopa de tomate, arroz com ovo e verduras, e um salteado de cenouras, batatas e pimentões refogados. Nara cozinha muito bem. Algumas jovens sherpas olham curiosas pra mim. Peço pra tirar fotos e elas posam sem frescura diante da câmera. O lugar onde vamos acampar é um largo quadrado onde já se encontram montadas outras barracas. E azucrino o porter que arma minha barraca pra que deixe a porta voltada pro Mera Peak. Diversas são as nacionalidades de montanhistas aqui acampados: finlandeses (antipáticos demais), belgas, italianos, ingleses (como os há!), franceses (outra gente bem antipática também), alemães e austríacos. Uns rumo ao Mera, outros de volta pra Lukla. Infelizmente, o tempo tem se mostrado instável na montanha com quedas expressivas de neve e vento forte. Tanto é assim que, dos montanhistas que retornam, poucos conseguiram fazer cume.

Após o almoço, dou um passeio pela vila e conheço, assim, dois glaciologistas franceses. Dirigem-se também ao Mera Peak para estudar os glaciares que forram este maciço rochoso. Conversa vai, conversa vem, descubro que falam espanhol. Aprenderam o idioma durante alguns anos vividos na Bolívia. O objetivo da permanência foi o estudo do glaciar Huayna Potosí. Um deles, mais acessível, conta que a longa estadia nesse país sul-americano deveu-se à fácil aproximação entre o glaciar e a capital, La Paz. Os 50 minutos, trafegando em boas estradas de asfalto e terra os pouparam de estresses rotineiros que países como o Nepal os forçam a viver. Sem contar a fraca presença de ventos fortes, evento meteorológico de alto risco pra quem se aventura, seja trabalhando, seja praticando esportes em montanhas.

Na barraca, estou eu descansando um pouco, quando Carol me convida pra se juntar a ela num passeio. Enveredamos pela trilha que conduz a Tangnag, paradouro onde iremos pousar amanhã. Na caminhada ao longo da margem esquerda do Hinku Khola, numa curva da estradinha, expõe-se à sudoeste uma das faces da bela montanha nevada Chat Pate. E os corvos continuam a dar o ar de sua graça aqui também! Quando em terra, sua pisada desajeitada, pesadona, lembra a dos coxos. Nem lembra a elegante ave de bico alongado e curvo que singra os ares sem esforço algum. Já no interior da barraca, bem acomodada após a ceia, sou surpreendida por uma doce e leve voz feminina entoando a romântica canção folclórica, Resham Firiri. Apóia a cantora um coro de vozes jovens entoando o refrão da popular melodia originária do leste nepalês. Quer coisa melhor que dormir embalada por música ao vivo? E não param por aí as surpresas! Um pouco mais tarde, novo bônus auditivo: ainda naquele estado de quase vigília que precede o derradeiro sono, escuto o troar forte duma avalanche despencando da encosta de alguma montanha. Ah, meu deus, tudo de bom este Nepal!

Frisson em Tangnag

Sonho durante a noite com Raul quando ele era um piá de 5 anos (meu filho está com 30 anos) e com meu pai, falecido há um par de anos. Enquanto observo meu guri brincando com seus amiguinhos, conto ao velho sobre uns planos duma viagem ao rio Negro de barco, levando meu pequeno. O pai argumenta que é caro. Respondo que dinheiro foi feito para ser gasto nas boas coisas da vida. E, com meus botões, penso que será uma boa oportunidade de curtir meu gurizinho. Abandono o sonho com peninha. queria continuação, muitos episódios, como naquelas séries de sucesso de tevê intermináveis.

Abro o zíper da porta da barraca e o dia prenuncia bom tempo, embora sejam 6 da matina. E o ritual de todos os dias têm início: arrumar a sacola da North Face, ensacar o saco de dormir e a jaqueta de plumas, escovar os dentes, lavar o rosto, tomar café e ir no infecto banheiro fazer cocô. Deixo Khote às 8 e 20 rumo a Tangnag, a próxima vila onde iremos permanecer durante 2 dias. A trilha é praticamente plana como eu percebera ontem quando fizera, em companhia de Carol, uma pequena incursão pelos arredores de Khote. À medida que nos afastamos dessa vila e nos internamos mais e mais no vale do Inku Khola, o abundante verdor inicial do cenário, atulhado de rochas cobertas por densa cobertura de musgo, torna-se árido, exceto pela presença dalgumas gramíneas e arbustos rasteiros de onde florescem pequenas e delicadas flores de cor esbranquiçada à semelhança das nossas sempre-vivas. Ao longo da trilha, o único toque colorido é a serpentina verde-cristalina das águas do Inku Khola em contraste aos tons ocres da monocromática paisagem.

Durante um bom pedaço, avisto a face sudoeste do Mera Peak e suas três torres nevadas. Perco-as de vista depois duma hora de caminhada. Sou, contudo, recompensada dessa ausência pelo surgimento, numa curva da estradinha, de duas lindas montanhas: Chat Pate e Kusum Khang, que significa três irmãs em nepalês. Noutra dobra da trilha, reencontro, novamente o Mera, enxergando, dessa feita, apenas, seu cume norte. Encontro um bando de ingleses que também se dirige a Tangnag. Passo na frente, caminham bem mais devagar que eu. Decorrida meia-hora, paro pra conversar com três austríacos. Retornam do Mera onde fizeram cume. Simpáticos e brincalhões contam que foi “very very hard. , our tongues reached our crampons”. Durante o restante da caminhada, mais nenhum turista vindo da montanha, só alguns porters.

Na metade da manhã, o céu que, quando eu saíra de Khote, se toldara duma certa quantidade preocupante de nuvens, desanuvia de todo. Carol e Nima, quando chego na vila às 12 e 45, sentados na grama já almoçaram. Com caras satisfeitas, me saúdam. Eu, entretanto, não estou lá muito contente, não! Falo pra Nima que não entendo o motivo de sua pressa. Afinal, só ele como trekking guide pode dar certas informações já que Pasang, contratado para servir de climbing guide, não tem o seu desembaraço e aquele bom nível de conhecimento atribuído aos guias-líderes. Resolvo, para não criar mais caso, nem chamar a atenção sobre a indelicadeza de não terem me esperado para almoçarmos juntos. Afinal, se viajo em grupo, é porque gosto de trocar idéias e compartilhar experiências com os outros turistas.

Comer sozinha como uma pária é tudo de ruim. Surge um ligeiro frisson. Nima, emburrado, escapole. Busca abrigo junto aos porters, alguns deles seus primos-irmãos. Ficamos eu e Carol a sós. A inglesa toma, então, as rédeas da situação. Tenta livrar a cara do parceiro, amenizar a situação, concordando com meus argumentos. Diz que gosta de minha franqueza. Revela que também o é. Seu blábláblá cheira a papo furado. Assim, corto seu conversê e saliento que Nima tem de se dar conta de que está trabalhando. Tentando limpar a barra do amante, Carol, um pouco mais tarde, assumindo de vez a função de porta-voz oficial da expedição, comunica que a partir de amanhã Pasang irá com ela e Nima comigo. Digo que não é bem isso que quero. Desisto, porém, de continuar com as explicações devido ao meu sofrível inglês. Basta, já falei este idioma demais por hoje. Na verdade, o que desejo é bem simples. Apenas que Nima, vez por outra, espere por mim de modo que eu possa obter informações mais precisas sobre a região.

Faminta, devoro meu supimpa almoço. Nara, a meu pedido, colocou alho frito na sopa. Algumas nuvens oriundas do sul dão pinta no céu sem, contudo, encobrir de todo o sol. Tão bom estar aqui, sentada na grama, admirando este magnífico cenário! À minha frente, ergue-se o cume norte do Mera Peak com suas rochas escuras pintalgadas de neve. Coloridas bandeirolas retangulares com orações budistas tremulam ao vento. Presentes nos passos e nas aldeias, exibem suas cores sempre nessa ordem: amarela, verde, vermelha, branca e azul. Agora 15 horas, a bruma esconde todas as montanhas ao redor de Tangnag cuja altitude já atinge os 4.300m. Cinza é tonalidade do ambiene. Um baita contraste com a paisagem de duas horas atrás quando brilhava o sol e o azulão no céu dava as tintas. Tudo de bom os nepaleses. Gentis, sorridentes, muito zen realmente esse povo! O chá da tarde é servido na barraca em razão do mau tempo.

Frio e umidade pairam na tarde espessamente enevoada. Abrigada no quentinho de meu saco de dormir, apóio minha cabeça na sacola North Face que improviso de travesseiro. Assim, de barriga pra cima, bem instalada, retomo a leitura do instigante policial Os Ressuscistados, escrito pelo escocês Ian Rankin. Às 16, com pontualidade nepali-britânica, três, veja bem, três porters – que exagero! sinto-me até constrangida com tanta mordomia – trazem o chá e um pratinho com deliciosos biscoitos. O céu permanece pesadamente encoberto por nuvens quando saio da barraca e vou até o refeitório. Em todas as vilas onde vimos acampando, há peças destinadas a servir de refeitório pros turistas e outras pros cozinheiros e porters prepararem as refeições.

O recinto, reservado a nós, encontra-se confortavelmente aquecido por uma salamandra de ferro posta no meio da sala. Além de mim, ocupam os compridos bancos, forrados por grossos tapetes coloridos em estilo persa, os finlandeses que se encontravam ontem em Khote. No grupo, uma mulher quarentona e três homens mais jovens. Todos altos e fortes. A mulher faz palavra cruzadas. Vez por outra comenta algo com um dos rapazes. Dois deles lêem enquanto o terceiro, o mais moço, limita-se a olhar pra parede. Porque não falam bem inglês ou porque são casmurros mesmos, minha tentativa de interagir com eles não obtém sucesso. O dono da tea house entra na peça, trazendo, num cesto de bambu, madeira e cocô de yak pra alimentar o fogo na salamandra. E, pra reavivar o fogo, vale-se dum canudo longo de metal através do qual assopra. Deve ser pra evitar que as cinzas levantem, caso seja usado um abanador. Carol e Nima quando chegam pra jantar estão naquele clima de pombinhos apaixonados. Nem tento grandes aproximações com os dois. Limito-me a curtir as fotos que tirei durante o dia. Quando saio do refeitório, mal posso acreditar no que vejo: boiando no céu quinquilhões de estrelas! Como num passe de mágica, em pouco mais duma hora, o céu desanuviou totalmente!

Continua…

Compartilhar

Deixe seu comentário