Montanhista de segunda viagem

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Existe alguma montanha fácil de escalar? Esta pergunta pode gerar respostas diversas de montanhistas diversos, a partir da formação e experiência de cada um. Alex Cuadros, guia peruano que me levou pela primeira vez a um cume, responderia “não” – ou melhor, “no”. Influenciado pela tradição andina de venerar as montanhas como divindades – chamadas apus – ele prefere termo “acessível” para picos que não apresentam dificuldades técnicas para sua ascensão. E ressalta que esta acessibilidade é quase que “concedida” pelo próprio apu, que, numa atitude amigável, permite que nós reles mortais alcancemos suas alturas.

 

Um exemplo de “apu acessível” é o Ccampa, que desponta seus 5550 metros ao lado do Ausangate, o nevado mais alto da região de Cusco, com 6387 metros. Junto com o Mariposa e o Yanacaca, estas montanhas marcam o início da Cordilheira Vilcanota, um segmento dos Andes peruanos que se estende por 120 km. Por não requerer experiência técnica nem apresentar obstáculos como paredes de gelo ou gretas – o ataque ao cume pode ser feito apenas com um piolet de travessia – o Ccampa tem recebido viajantes que, como eu, buscam sua primeira experiência na neve acima dos 5000 metros. Pela facilidade de acesso ao campo-base, que está a 3 horas de caminhada de uma vila onde é possível chegar de carro e contratar arrieiros e cavalos, o nevado também é um destino para montanhistas experientes em aclimatação para a escalada do Ausangate.
 
Foi num grupo de 6 pessoas de 6 países diferentes –Perú, Brasil, Espanha, Estados Unidos, Suíça e Austrália – e dois guias peruanos que fiz minha segunda ascensão ao Ccampa, em junho deste ano. Além do ataque ao cume, nossa viagem incluía um trekking curto nos arredores do Ausangate, o que nos ajudou a acostumar com a altura enquanto caminhávamos por paisagens cinematográficas.
 
DIA 1
 
Nosso ponto de partida foi o povoado de Rodeana, que está a 3900 metros acima do nível do mar e a 3 horas de viagem desde Cusco, de onde saímos às 7h da manhã. Ali nos encontramos com o guia-assistente da expedição, Flávio Mandura, e o arrieiro responsável pelos 4 cavalos que carregariam todo o equipamento. Nas nossas mochilas de ataque levávamos somente o essencial para a caminhada: garrafa pequena de água, lanche, câmera, protetor solar e abrigo.
 
Partimos para Upis, nosso primeiro acampamento, pouco depois das 10h da manhã. Andando numa estrada de terra que cortava campos de aveia e batata, observávamos um pouco do cotidiano rural andino: homens e mulheres com sombreros e gorros de cores vibrantes fazendo artesanato sentadas no chão, pastoreando alpacas ou trabalhando a terra enquanto as crianças corriam soltas e vinham ao nosso encontro para pedir “caramelo, caramelo”. 
 
Este primeiro momento do trekking foi em terreno bem irregular, mas sem muita inclinação. No céu, pouquíssimas nuvens maculavam o azul profundo da estação seca. Conforme nos distanciávamos de Rodeana, os bosques de eucaliptos e campos cultivados davam lugar à puna, em cuja vegetação rasteira pastavam lhamas e alpacas. À nossa frente, a face norte do Ausangate, que, se das montanhas ao redor de Cusco já chama a atenção, de “perto” é ainda mais imponente, grandioso, respeitável. À nossa direita, os 6110 metros do nevado Callangate.
 
Foram cerca de três horas de caminhada até o vale do povoado de Upis, a 4440 metros, onde montamos acampamento. Depois de tomar um mate de coca com canchita (pipoca), saímos para conhecer uma das muitas lagoas que normalmente rodeiam as montanhas. Esta ficava muito próxima do glaciar, e a cor turva da água assinalava como sua formação era recente. 
 
Quando voltamos ao acampamento o sol já havia se escondido atrás das montanhas e logo o jantar estava pronto. O frio não nos deixou ficar muito tempo admirando o espetáculo do céu limpo e estrelado, antes das 20h já estávamos dentro das barracas vendo a escuridão e escutando o silêncio das alturas.
 
DIA 2
 
Quando despertamos às 6h30 da manhã para o segundo dia de trekking, uma fina camada de gelo cobria o acampamento e tivemos que raspar as barracas com uma faca antes de guardá-las. Para calentar o café da manhã, mingau de aveia e mais mate de coca, além de pães caseiros e panquecas com doce de leite.
 
Saímos às 8h, tomando um caminho que contornava a face norte do Ausangate. Já na primeira hora de caminhada cruzamos um passo de cerca de 4500 metros. Na descida, quase chegando à lagoa Azulcocha, avistamos pela primeira vez o Ccampa. Nossos olhos também se deleitaram com as lagoas Asacocha, Quillacocha, Encantada e Puccacocha, que refletiam diferentes ângulos do Ausangate naquela tarde sem vento. Currais de alpacas e alguns itos e apachetas, amontoados de pedra usados como sinalização nas trilhas ou oferenda à Pachamama, eram alguns dos poucos sinais de presença humana naquele trecho. 
 
Atingimos o campo-base Pachaspata, a 4800m, pouco depois das 13h. Nossas barracas pareciam peças de brinquedo perto da imponência das montanhas que nos cercavam, que eram o Ausangate, o Mariposa e os três picos dos Pucca Puntas, cheios de saliências e cogumelos de neve que lhe dão um aspecto de chantilly. Depois de um almoço leve com papa a la huancaína, um prato típico peruano, nosso guia nos explicou a rotina de ataque ao cume e o uso dos equipamentos, que já deixamos preparados para a madrugada. O resto da tarde foi para relaxar e guardar energias para a ascensão.
 
Até o fim deste segundo dia de trekking, as únicas queixas de alguns integrantes do grupo sobre os efeitos da altitude eram dificuldades para respirar e dor de cabeça, o que era natural. Eu já estava vivendo em Cusco há mais de um mês quando fiz este trekking, mas em Pachaspata já sentia o coração bater mais acelerado mesmo durante tarefas simples como montar uma barraca. Uma das nossas companheiras, contudo, começou a vomitar durante a noite. Recusando-se a tomar as sorochi pills (comprimidos com a mesma função do diamox), ela preferiu aceitar o chá de apio do nosso arrieiro/cozinheiro Mário Huaman. 
 
Mário e seu primo Flávio, que era nosso guia-assistente, tinham duas teorias para o mal-estar da moça: uma “laica/oficial” e outra de cunho mais místico. A primeira era de que ela tinha sido pega por um mal viento, uma mudança brusca de temperatura, como quando alguém está suado e toma uma lufada de ar frio. Para os habitantes daquela região, o mal viento pode subitamente gerar vômitos, diarréias, resfriados, dor de cabeça; enfim, vários dos sintomas do que conhecemos como “mal de altura”. 
 
Ainda pensando nesta hipótese, estranhei quando eles sugeriram que a moça deveria fumar um cigarro para sarar. Expliquei para eles que seria ridículo propor a uma estudante de medicina norte-americana que ela fumasse um cigarrinho a 4800 metros de altura para ficar bem. Mas eles insistiram que isto era necessário. 
Depois entendi o motivo. Segundo Mário e Flávio, a fumaça não era para curar a pessoa, mas o lugar em que ela estava dormindo. Isso porque exatamente uma semana antes um guia fora atingido por uma avalanche e havia falecido tentando escalar o Ausangate – e provavelmente havia passado pelo mesmo acampamento em que estávamos. Para os locais, fumar, mascar coca e fazer uma pequena oferenda à Pachamama eram formas de “acalmar” os espíritos do apu para que tivéssemos uma jornada segura.
 
Enquanto nosso guia Alex conversava com a garota dentro da barraca, Mário e Flávio fumavam e mascavam coca ao redor deles, sem que ela percebesse. Seja por qual motivo for – pelo chá, pelo ritual ou pelas defesas do seu próprio corpo -, pouco tempo depois os vômitos cessaram e ela conseguiu dormir, ainda que um pouco decepcionada pela impossibilidade de atacar o cume dali a poucas horas.   
 
Este episódio me fez refletir muito sobre a noção da montanha como algo vivo, com personalidade e vontade próprias. Foi pensando nisto que, debaixo daquele manto de estrelas que só a escuridão de um acampamento isolado permite contemplar, peguei três folhas bonitas de coca e assoprei meus pedidos de proteção ao apu Ausangate antes de entrar na barraca.
 
DIA 3
 
Para aproveitar o endurecimento da neve decorrente das baixas temperaturas noturnas, as ascensões a montanhas nos Andes geralmente começam de madrugada. Com a nossa expedição não foi diferente. O despertar foi às 2h30 da manhã, seguido de um “esquenta” com mingau de aveia e mate de coca. 
 
Começamos a caminhada dentro do horário previsto, com todos os integrantes do grupo prontos para sair às 3h da madrugada: lanternas frontais a postos, lanche, água e equipamento pessoal de escalada nas mochilas, além das calças impermeáveis já vestidas por cima da roupa. 
 
Com inclinações de no máximo 45°, este trecho da encosta não era tão íngreme, mas exigia atenção para caminhar sobre as pedras soltas. Conforme nos aproximávamos dos 5000 metros, cada passo significava ainda mais esforço cardio-respiratório e mental. Tivemos um descanso mais longo quando chegamos ao pé do glaciar, depois de cerca de 1 hora de caminhada. Este foi o momento de colocarmos o equipamento técnico de ascensão (crampons, piolet, polainas de goretex, cadeirinha).
 
Divididos em dois grupos de até 5 pessoas, entramos encordoados no glaciar, que, devido às boas condições de frio e vento dos dias anteriores, apresentava neve bem compacta – informação que fazia pouco sentido para uma “escalaminhadora” de segunda viagem como eu, que, por mais dura que estivesse a neve, ainda suava e ofegava para andar com crampons, vestindo todas aquelas camadas de roupa e ainda por cima manejando o piolet. Para não cair no ciclo falta-de-ar-que-causa-ansiedade-que-causa-falta-de-ar, tentava me concentrar nos pequenos e únicos ruídos que escutava ali: dos crampons cravando-se na neve, da minha respiração acelerada e do meu coração agitado.   
 
Rampas pequenas com inclinação de 20° a 30° nos conduziram até o platô glaciar depois de cerca de 1h30, onde tivemos outro intervalo para apreciar os primeiros raios de sol que despontavam por detrás da Cordilheira Vilcanota. A mudança das cores do céu e da neve tornava extasiante aquele espetáculo. Avançávamos na imensidão branca junto com o amanhecer (ainda que em ritmo mais lento). 
 
Os últimos 300m da ascensão eram os mais duros, galgando rampas com até 60° de inclinação. A cada dez passos eu já tinha que parar por alguns segundos para recobrar o ar, para desenrolar o cachecol ou abrir mais um pouco a jaqueta de pluma, que já começava a me sufocar. Depois de quase três horas de caminhada no glaciar atingimos a aresta norte da montanha, dali só precisávamos vencer um último passo antes de chegar ao cume.
 
Já eram quase 7h30 da manhã quando Alex, liderando a primeira cordada, alcançou o cume. Dali pra frente cada um celebrou o feito à sua maneira: se jogando na neve de cansaço, brandindo o piolet no ar ou motivando os companheiros que estavam prestes a chegar. Fotos, chocolates e ligações para família e amigos completaram a festa. O céu impecavelmente azul nos brindava uma vista privilegiada do Ausangate, dos Pucca Puntas e do Quelccaya, o maior glaciar das zonas tropicais do mundo. Mais ao longe, para além das lagoas turquesas do Vale de Ccomerococha que se estendia aos nossos pés, avistávamos a silhueta piramidal do nevado Salkantay e de outros “cinco miles” como Humantay, Pumasillo, Verônica, Helancoma e Chicón.
 
Desfrutamos o cume por cerca de meia hora e depois de um lanche rápido iniciamos a descida, que durou cerca de 1h30, tomando a mesma rota da ascensão. Com a luz do dia e sem o esforço da subida, já era possível admirar as paredes e estalactites de gelo pelas quais havíamos passado horas antes, mas que não havíamos prestado atenção tanto era o afã de atingir o cume.
 
Na chegada a Pachaspata, lembrando de uma citação que estava perdida em minha memória – a de que cada ataque a um cume só termina com a chegada ao campo-base -, assoprei outras três folhas de coca agradecendo ao apu pela segurança e tranquilidade da nossa expedição e também pela recuperação da moça que havia passado mal na noite anterior. 
 
Mais alguma coisa para comer, mais um mate de coca, acampamento desmontado, partida para o último trecho do trekking: outras 3 horas até a vila de Pacchanta, a 4400 metros, onde iríamos encontrar nosso táxi para Cusco. A caminhada pelo Vale de CComerococha foi praticamente um passeio, com direito a mais vistas espetaculares de lagoas e picos nevados. 
 
Outra surpresa agradável foi um bosque de boulders espalhados na puna já perto de Pacchanta, onde paramos para brincar por uns 20 minutos. Na chegada ao pueblo, perto das 14h, a recompensa suprema: entrar nas piscinas de águas termais que há ali e tomar uma cerveja Cusqueña admirando o Ausangate em todo o seu esplendor. Salud!    
 
SERVIÇO
Quando ir: a melhor época do ano para explorar a área do Ausangate é de maio a outubro, sendo a temporada alta de junho a agosto.
Quem opera: Agência Andexplora – http://andexplora.net
Guia: Alex Cuadros
Tel: +51 984 415 107 – Cusco – Perú
 
 
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