Morro do Bico Torto

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Na escalada do Pico X chamei a atenção do grupo para a silueta aguda do Morro do Bico Torto no esporão litorâneo ao sul da Torre da Prata, e no cume do Boa Vista aquela imponente formação rochosa voltou a me seduzir. Tratei de identificá-lo na carta planialtimétrica entre o Morro da Furna e o Morro Alto, numa cumeada paralela a rodovia PR508 (Alexandra-Matinhos) com acesso pelo quilômetro 20, onde nasce uma antiga e abandonada estrada rural rumando para o meio da serra na direção oeste.

Todas as pistas apontavam para uma caminhada tranqüila em que o objetivo seria atingido em poucas horas com um mínimo de esforço graças à velha estrada e a altitude relativamente modesta da montanha. Com um precário plano desenhado no mapa esperei o momento oportuno para oferecê-lo aos amigos. Passaram as festas de fim de ano e também o verão excepcionalmente quente e seco antes que as condições meteorológicas acenassem com uma janela de bom tempo para o sábado, 29/mar/2014 e nos dias precedentes iniciei os contatos para montar um grupo de ataque.

A princípio não despertou grandes interesses, talvez porque de Bicos Tortos e Pedras Brancas as serras estão repletas e o Cesar (Índio Sexta Feira) Sales foi o primeiro a aderir com entusiasmo devido ao seu longo período de afastamento das montanhas. A saudade batia forte no peito do Índio velho depois de um ano e meio de convalescença pós cirurgica tratando do fêmur estilhaçado num acidente de motocicleta, muitos pinos e parafusos colocados e retirados, dois ainda segurando as lascas de osso no lugar e fisioterapia iniciada há pouco. Estando muito confiante na facilidade da empreitada nem me preocupei com suas reais condições físicas.

Para o Moisés Lima convite não é necessário e o Henrique Paulo (Vitamina) Schmidlin, bom companheiro de indiadas, aceitou o desafio de pronto. No decorrer da semana se integraram o Alex Pacheco e também o Natan Fabrício Lima com o Vinicius Ribeiro. De última hora apareceu o Miguel Ângelo Lima e o time de feras se completou. As 9:00 horas, depois de uma indicação do “Pernambuco”, estacionamos os carros no pátio da casa do Sr. Luiz Lima com seu esbugalhado olho de vidro no centro de uma cicatriz riscada a facão, que nos tratou com extrema cortesia antes mesmo de saber que estávamos reunindo ali um caminhão de “Limas”.

Mochilas nas costas e imediatamente avançamos pelo que restou da estrada abandonada há muitos anos que depois do cruzamento com o primeiro rio se transformou numa trilha larga e bastante erodida, com um curto trecho cheio de pedras redondas a semelhança de um leito seco de rio e grandes buracos em toda a extensão. A trilha sobe continuamente até cruzar as lajes escorregadias de um segundo e último rio na cabeceira de uma magnífica cachoeira simplesmente conhecida como “Salto” onde encontramos a primeira serpente, uma falsa coral.

A partir do Salto a inclinação se intensifica, as erosões se avolumam, a trilha se estreita e as serpentes se multiplicam. As jararacas aparecem às dúzias em meio às folhas secas que as tornam quase invisíveis, mas não para o Moisés que as captura com as mãos limpas, expõe suas presas venenosas e depois de bastante assustadas as solta para fugirem pro mato. A trilha sobe pelas encostas sem sequer um metro plano para descansar as pernas e no caminho tomamos de assalto algumas moitas carregadas de maracujás selvagens onde momentos antes um bando de macucos fazia a festa.

A fome já incomodava quando paramos ao lado de uma nascente para abastecer os pets com água fresca e encher a pança. O Natan preparou seu tradicional “medanojo” enquanto os demais engoliam um rápido lanche frio e o egoísta do Vita abriu um guaraná de 2 litros sem oferecer pra ninguém, mas não me pegou desatento e pedi uns goles que não pode negar. Vencidos os últimos trezentos metros chegamos na linha de crista depois de seis longos quilômetros de subida e a trilha começa a descer numa inflexão para o sul. Finda a moleza na cota 510 metros é chegada a hora de desembainhar as espadas e enfrentar a verdade. Escalando um barranco à direita fui dirigindo a picada diretamente para o norte, seguindo a crista, em discreto declive até o fundo do selado onde encontramos uma trilha de mato cruzando nossa rota no sentido leste-oeste. Até que tentamos aproveitá-la, mas ao constatar que descia cada vez mais na direção do mar retornamos ao traçado planejado e novamente enfrentamos a encosta no rumo norte.

O alto dossel da mata atlântica impedia a entrada direta da luz e caminhávamos na penumbra subindo uma pronunciada elevação por entrelaçados de cipós espinhentos, moitas intrincadas de taquaras e tucuns armados com afiadas farpas. A mata fechada limitava a visão a apenas poucos metros e como guias podíamos contar apenas com a bússola, a leitura do relevo e o instinto afiado.

Descendo a encosta pelo lado oposto a esta primeira elevação nos apareceu uma janela por entre a copa das arvores e por instantes a neblina se dissipou deixando-nos finalmente ver o Bico Torto. Garanto que alguns sentiram um calafrio percorrendo a espinha diante daquela imensa pedrona, lisa e reluzente, se erguendo altiva por mais 250 metros nuvens adentro.

E o terreno recomeçou a subir numa inclinação acentuada ao mesmo tempo em que um bando de bugios iniciaram uma grave sessão de xingamentos e advertências ao nos localizar pelo som do facão, pedras imensas apareceram ainda engolidas pelas árvores e enfrentamos alguns trechos de escalaminhadas por entre frestas estreitas, agachados embaixo de tetos planos e batemos de frente no paredão vertical. O Natan e o Moisés tentaram uma escalada pela esquerda enquanto o grupo descansava no último poleiro e logo depois os segui por frágeis apoios de agarras sujas e escassas a beira do precipício percebendo imediatamente a impossibilidade de por ali seguir com nosso grupo heterogêneo.

Mesmo invisível daquela posição, sabia pelo mapa que a face oposta da montanha se ligava ao Morro Alto por uma estreita crista e antes dos dois exploradores retornarem já estava orientando a picada num contorno a direita com cuidado especial na escolha de passagens que permitissem a subida do Vitamina e também a descida do Sexta. Com o paredão sempre colado a nossa esquerda prosseguimos na escalaminhada, trepa-pedra e trepa-mato, nos agarrando em raízes aéreas, troncos apodrecidos e pedras precariamente equilibradas que não poucas vezes descambaram morro abaixo num mundo úmido e escuro.

Do belo paredão surgiam trincas formando chaminés escaláveis e diedros salientes a se perder nas alturas. Um em especial, com seu ângulo perfeito de 90 graus, se destacava do maciço em suave inclinação para a direita. Foi tentador e frustrante passar direto sem subir por ele para experimentar todas as surpresas que nos reservaria a frente. Mas sempre concentrados no objetivo do dia continuamos nossa rota até atingir o alto da crista e ver o cume se elevando ao sul com uns bons 30 metros ainda a escalar.

A crista é bem afiada, não passando de três metros nas partes mais largas e nos obrigando continuamente a descer alguns poucos metros pela encosta nos trechos mais estreitos, mas a vegetação é bem firme e o Vinicius começou a encontrar indícios de uma escalada anterior. Eram marcas de facão com um ou dois anos de idade, raras mas constantes em todo o percurso da crista até esta se unir ao Bico Torto completamente isolado dentro da massa compacta de nuvens.

No cume de 850 metros, coberto de macega, até que iniciamos outra picada no rumo sul para chegar a um possível mirante a beira do abismo, mas diante da certeza de nada poder enxergar nos contentamos em abrir uma pequena clareira que nos desse um mínimo de conforto para comemorar o sucesso da brincadeira, comendo e bebendo o pouco que sobrou no fundo das mochilas.

O Pacheco aparece com uma miniatura de garrafa com cachaça na canela que mal sentimos o cheiro de tão parca a porção e o Vinicius reclamou da pouca quantidade argumentando assertivamente que do produto politicamente incorreto que ele próprio trouxe havia para fartar a todos, mesmo que ninguém tenha aceitado sua oferta. Mas a definitiva dose de política ficou por conta do Vitamina que nos adiantou o conteúdo de uma recente entrevista concedida para a RPC Tv a ser transmitida no dia seguinte em alusão ao montanhismo durante os anos de ditadura militar.

Contou-nos que eram vigiados pelos militares que confundiam o montanhismo despretensioso com treinamento de guerrilha e alarmados com a suposta presença de um comando do Marighella nas serras próximas a BR116 chegaram a fechar a estrada e colocar espiões na cola de seu grupo. Certa vez, num experimento para detectar aviões sinistrados na serra, caminhavam à noite pelo mato carregando tubos de alumínio que foram interpretados como sendo morteiros ou moderníssimos (para a época) canhões sem recuo. Noutra o seguiram pelas pedreiras do Anhangava enquanto entrevistava os cortadores de pedra para anotar expressões idiomáticas regionais para um dicionário que um amigo escrevia. Ao interrogarem o mesmo caboclo descobriram que o Vita estava interessado em saber de que forma eles fabricavam a pólvora usada para partir os blocos, como se isto fosse um segredo de Estado.

Observaram que o grupo andava pela selva em coluna (fila indiana), a moda militar e nem se deram conta que é impossível andar de outra forma pelas trilhas. Vigiavam atentamente o Pouso da Sorte (A1), na encosta do Caratuva a meio caminho do Pico Paraná, onde os montanhistas tinham construído um abrigo e o Professor Erwin Gröger havia improvisado um varal com duas forquilhas e uma trave para secar suas roupas. A fazerem uma vistoria no local encontraram uma das pernas do varal derrubada pelo vento e a trave apoiada apenas na segunda forquilha. Mediram o ângulo de inclinação, somaram aos canhões sem recuo a precária técnica de fabricar pólvora preta dos cortadores de pedra e chegaram a inequívoca conclusão que dali os “guerrilheiros” iriam bombardear a Usina Capivari-Cachoeira.

Do aeroporto militar do Bacacheri partiu então um avião de caça com duas bombas para explodir o A1, mas a meio caminho o piloto recebeu uma contra ordem de um comandante esclarecido e conhecido para jogar a bomba no mato e retornar à base declarando cumprida a missão. A explosão nas proximidades do Disco Porto ecoou pelas paredes do Ibitirati e um “candidato a guerrilheiro” conhecido pela alcunha de Vitamina ganhou uma extensa ficha no DOPS sem, no entanto, nunca ser relacionado diretamente ao cidadão Henrique Paulo Schmidlin que seguiu normalmente com sua vida e jamais foi incomodado. A competência dos arapongas a serviço da repressão ilustrava a inteligência do regime.

Benito Mussolini sabia das coisas quando declarou que governar a Itália não era nada impossível, mas apenas inútil. O mesmo se pode afirmar do Brasil onde a irreverência também nos torna ingovernáveis por natureza e uma breve rajada de chuva nos faz retornar ao presente. Quase 17:00 horas e temos um longo e difícil trecho de um quilômetro e meio antes de alcançar a segurança da trilha.

O Vita desceu cantando e o Sexta sofrendo com suas articulações emperradas. Descendo é que se percebe o quanto alto subimos e a inclinação que enfrentamos. E se a subida foi na penumbra, à descida foi no escuro mesmo. Bunda como terceiro apoio no primeiro trecho e pernas pra que te quero no segundo antes que a noite complique mais as coisas por ali. Sei que puxei velocidade demais na picada, a ponto de alguns botarem a língua pra fora e pedirem arrego, mas daí o Natan sacou do GPS e avisou que estávamos a apenas 40 metros da trilha. Valia a pena um último esforço, mas estes “40” metros se esticaram para “400” e na escuridão o que nos salvou foi a linha que o Vita esticou na subida. Acompanhando-a com a mão, como se fosse um guarda corpo fui em frente, na escuridão, até despencar do barranco em cima da trilha ainda visível  num último minuto de claridade. Tornou-se inadiável ligar as lanternas e descemos até a nascente para descansar e hidratar já sem pressa alguma.

Natan, Vinicius, Miguel e Vita desceram no galeto, esbanjando vitalidade. O Moisés não desgrudou do Sexta que descia com extrema dificuldade, mas que depois desta empreitada certamente já pode dispensar a fisioterapia.

Encontramos a casa do Luiz em festa, bilhar, mulherada e bebedeira. E o anfitrião veio ao nosso encontro arrastando a perna, carregando quatro latas de cerveja geladinhas nas mãos. Manca deste que quebrou a perna no alto da serra e levou dois dias se arrastando pela trilha até conseguir socorro no asfalto. Então sabe bem o que enfrentamos e nos informou que o “Bugre”, um dos convivas ali presente, apostou o braço que não chegaríamos ao cume do Bico Torto.

Pois então que o “Bugre” venha para o cepo porque o afiado três listras ainda está lambendo!

Serra da Prata, Morro do Bico Torto, altitude 850 metros s.n.m, caminhada de 15 km, desnível aproximado de 830 metros

Alex Pacheco, Cesar (Índio Sexta Feira) Sales, Henrique Paulo (Vitamina) Schmidlin, Julio Cesar Fiori, Miguel Ângelo Lima, Moisés Lima, Natan Fabrício Lima, Vinicius Ribeiro

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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