O buraco, a galinha, e a caixa de Pandora

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Os seguintes relatos, topos e fotos, reportam aos dias 2 e 3 de Fevereiro, antes das últimas nevadas e “geladas”, quando a serra ainda tinha pouca neve. No presente momento, as condições das vias apresentadas, estarão muito diferentes do que as que encontrámos durante as ascensões.

Desta vez, o “gelo verde” – lembrando a imaginativa alcunha de um ilustre “facebookiano” da nossa praça – estava mesmo gelado.
 
As temperaturas negativas converteram o nosso pequeno mundo num jardim de júbilo. Os piolets divertiam-se com os tufos de musgo e erva, oportunamente duros e com as fissuras incrustadas de gelo.
 
Comparar estas condições com as que encontrámos aquando da abertura da “Sopa de legumes”, seria como comparar o vinho branco com o tinto. Ambos são vinhos, mas não podiam ser mais diferentes. O nevoeiro denso e o vento fizeram notar a sua presença.
 
Alheios aos elementos e animados pelos valores em queda no termómetro, dirigimo-nos decididos ao sector superior do Covão do Ferro. Acedemos desde a Torre, através do planalto superior. Descemos o “Corredor do teleférico” e encontrámos a neve dura, como raras vezes nos laureia a “nossa” serra. Passámos na base de uma das mais célebres cascatas da serra, a “Cascata encaixada”. Ainda muito precária, esta cascata encontrava-se em rápida formação.
 
Um sorriso esboçava-se nas nossas caras. A existência de gelo por aqui e por ali, ainda por cima, de boa qualidade, vaticinava um bom dia de escalada mista. O plano consistia em escalar uma nova via no flanco de granito à esquerda da “Cascata encaixada”.
 
O primeiro lance de “gelo verde” encontrava-se em óptimas condições. Uma travessia ascendente presenteou bons gancheios, tufos gelados e suficientes protecções. Logo a seguir, um diedro mais tombado de resolução difícil, conduziu-nos à primeira reunião. 
 
Contudo, foi o segundo lance o que nos reservou a melhor surpresa. Constituído por um corredor fácil na sua maior parte, terminou num curioso túnel rochoso, género: “portal misterioso”. A Serra da Estrela e os seus detalhes naturais sempre a maravilhar!
 
Uma vez no topo, celebrámos as excelentes condições encontradas na parede. Efusivos, comentámos a estranha curiosidade geológica da nova via acabadinha de escalar. Com tão bela linha já no papo, considerámos o dia ganho mas, faltavam ainda algumas horas para o ocaso. 
 
Contrariando a vontade de descer a Penhas da Saúde para pedir algo quente ao simpático David, no café “Varanda da Estrela”, optámos por escalar mais qualquer coisa que nos piscasse o olho. O piscar de olhos proveio de um pequeno corredor situado à esquerda da “Goullote dos curiosos”. Desde a sua base, parecia uma ascensão simples e sem muita história mas, as coisas não estavam destinadas a rolar conforme as expectativas.
 
A meio da via, um estrangulamento vertical conferiu a respectiva “cor” ao assunto e, aquilo que parecia um curto passo de escalada mista, depressa se converteu num conjunto de movimentos relativamente difíceis e algo expostos, terminando numa excelente “goullote” de neve dura e empinada.
 
Encontrámos o nível da neve bastante baixo e esse facto converteu o corredor numa via interessante.
 
Desta feita não estamos convencidos de ter realizado uma “primeira”. Diria até que existe uma grande probabilidade de já ter sido feita anteriormente (provavelmente mais que uma vez). No entanto, fica o registo de mais uma simpática possibilidade invernal. 
Aconselhável, portanto!
 
No dia seguinte, o sol deu ar de sua graça e a temperatura subiu um pouco, mantendo-se, no entanto, num valor muito satisfatório. Uma bonança para aproveitar. Mais uma vez centrámos as nossas atenções no Covão do Ferro.
 
Uma mole de granito surge entre a parede do arqui-clássico “Corredor estreito” e a parede que alberga a “Cascata encaixada”, separada por dois corredores evidentes. Uma linha improvável delineou-se diante dos nossos olhos e, claro está, lá fomos nós!
 
O primeiro lance mostrou os dentes e exigiu uma boa dose de dry-tooling delicado, com algumas passagens de entalamento de mãos (enluvadas) incluídas.
 
Posteriormente, uma franca travessia muito fácil colocou-nos numa rampa de neve dura e “empurrou-nos” para uma travessia diagonal de misto fácil e divertido, com um passito final “espremido”.
 
A lógica do itinerário colocou-nos na face sul da formação e na base de uma última fissura totalmente seca. Noutra ocasião, daria para trocar as botas de montanha pelos pés de gato. Optámos, mais uma vez, pelo dry-tooling… muito dry e, escalámos o lance inteiro a ganchear os piolets na fenda. “É tudo treino!” Justificámos, a pensar nos potenciais objectivos mais longínquos.
 
Desta forma findámos mais uma actividade produtiva ao nível da escalada mista, em definitivo, um estilo de escalada invernal mais ou menos marginal, perfeitamente adaptado à Serra da Estrela.
 
Entretanto, nos últimos dias têm surgido algumas novidades no campo da escalada em gelo e dry-tooling, nomeadamente algumas aberturas levadas a cabo num recanto obscuro do Vale de Loriga, já conhecido como: Sector Remoto.
 
Paulo Roxo
 
 

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Sobre o autor

Daniela Teixeira e Paulo Roxo é uma dupla portuguesa que pratica escalada (rocha, gelo e mista) e alpinismo. O que mais gostam? Explorar, abrir vias! A Daniela tem cerca de 10 anos de experiência nestas andanças e o Paulo cerca de 25. A sua melhor aventura juntos foi em 2010, onde na cordilheira de Garhwal (India - Himalaias), abriram uma via nova em estilo alpino puro na face norte da montanha Ekdante (6100m) e escalaram uma montanha virgem que nomearam de Kartik (5115m), também em estilo alpino puro. Daniela foi a primeira e única portuguesa a escalar um 8000 (Cho Oyu). O Paulo é o português com mais vias abertas (mais de 600 vias abertas, entre rocha, gelo e mistas). Daniela é geóloga e Paulo faz trabalhos verticais. Eles compartilham suas experiências do velho mundo e dos Himalaias no AltaMontanha.com desde 2008. Ambos também editam o blog Rocha Podre, Pedra Dura (rppd.blogspot.com.br)

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