O Fantasma no Glaciar Iver

0

Nos últimos dias de dezembro de 2007 estava amaciando o motor de um Mitsubishi Pajero zerinho pelas planícies argentinas em companhia do Luiz Antuniutti, Jonhy Genvensis, Hilton Benke e do Elcio Douglas Ferreira, enquanto rapidamente nos aproximávamos dos Andes. Adiante de Posadas a estrada é quase deserta, uma reta interminável e totalmente plana, ladeada por plantações e pastos até a curva do horizonte.


A paisagem monótona, a tarde preguiçosa, o sol ameno e a barriga cheia botaram a nocaute o co-piloto e as três belas-adormecidas que babavam no banco traseiro. No acostamento, centenas de bonitos e gordos pombos selvagens se deliciavam com as pequenas sementes espalhadas pelo vento. Com a aproximação do carro, invariavelmente, voavam em direção ao pasto até que um retardado perdeu o rumo.

Decolou na direção contrária, arrependeu-se e retornou numa curva fechada. A 160 km/h nada pude fazer além de cerrar os dentes e firmar as mãos no volante. Primeiro bateu no retrovisor, em seguida espatifou-se na coluna com um baque forte e seco que estremeceu o carro para finalmente espalhar-se aos pedaços na cara dos dorminhocos que despertaram apavorados em meio a um mar de sangue e penas.

A primeira baixa argentina serviu para mantê-los atentos pelo restante da viagem, ao menos durante os meus turnos de direção.

Em Mendoza tiramos o dia para vadiar enquanto o Elcio comprava o “permisso” para escalar o Aconcágua. Queria porque queria subir em tempo recorde, no melhor estilo Pico Paraná e passei toda a viagem lhe dizendo que ali o buraco é bem mais embaixo, mas o sujeito é teimoso feito mula.
 
– Pense bem é bate-e-volta, zapt-zupt, vamos leve e rápido – A cada meia hora voltava a me convidar para acompanhá-lo – vai ser como nos velhos tempos.

– Você vai morrer lá em cima seu panaca – Botei um ponto final no assunto – e vai me matar também ou vou ter que te trazer arrastado dentro de um barril de plástico e passar o resto dos meus dias explicando o acontecido.

Naquela hora estava realmente convencido disto, mas também não tinha nenhuma saudade de comer poeira em Playa Ancha e Horcones. Aquela aproximação foi esculpida pelo capeta em pessoa, além de acreditar que meus dólares estariam melhor empregados em Santiago do Chile; numa mesa empanturrada de carcaças de centollas e garrafas do mais nobre vinho tinto dos Andes. Depois da viagem concluí com 100% de acerto que estou ficando velho, gordo e vagabundo. Talvez vagabundo numa proporção ainda maior.

Compramos um fogareiro e umas panelas para derreter neve e mesmo sob protesto o obrigamos a incorporá-los ao equipo. No dia seguinte o deixamos sozinho na entrada do parque não sem antes lhe mostrar o helicóptero com a maca fixada do lado de fora.

– Vê se não volta com esta carona – Recomendei num abraço de despedida.

Mas não há de ver que o patife fez cume em 6 (seis) dias. Sem estar aclimatado, sem mulas, sozinho, apenas com uma caixa de Bis e um pacote de amendoim, não esquecendo que chegou até lá vestindo camiseta e um par de luvas comprado no 1,99. No retorno, em Confluência, foi pego no laço pelos para-médicos que o internaram na barraca-enfermaria para hidratação. Transformou-se em celebridade instantânea, rodeado de mimos e comida, muita comida. Pra quem passou metade da noite no refúgio em Berlin tentando abrir uma lata de Salada de Frutas que por lá encontrou, achou-se então no próprio paraíso.

Santiago cada vez mais linda, e rica. São os milagres do capitalismo que na América do Sul só eles acreditaram e se deram bem. Um prato de lulas por meio Pinochet, isto é centolla, mas acho que dificilmente aceitariam o negócio. O analfabetismo está desaparecendo por aquelas bandas, não tão rápido quanto na Bolívia que o erradicou numa canetada do Inca Zacarias Morales, mas estão progredindo. Isto é inegável, os hermanos egoístas estão nos deixando a ver navios vermelhos.

Depois de comprar uns equipos baratinhos em função da baixa tributação, coisitas básicas do tipo “The North Face, Boreal e Mountain Hard Wear”, tudo Made in China, voamos ao supermercado encher o carrinho de mantimentos. O mestre-cuca Luiz Antuniutti assume o comando com sua lista previamente estudada e rica em fibras, proteínas, lipídios, glicídios e todos os outros ídios. Só esquecendo-se de colocar sabor nesta sopa de números, como pudemos comprovar nos dias seguintes. Era tudo muito ruim e o maledetto defendia-se empurrando a culpa nos temperos.

Saímos de Santiago muito tarde naquele dia percorrendo um ensolarado Vale Farrelones em direção ao glamoroso Vale Nevado. A montanha é vencida pouco a pouco por curtos e empinados zig-zags onde quase se enxerga a frente do carro pelo espelho retrovisor. Chegamos ao cair da noite no La Parva Ski Center (2650m), debaixo de uma garoa fina e gelada, apenas para encontrar a passagem fechada. Na cancela nos avisaram que estava nevando mais acima e uma operação de resgate estava em curso nas montanhas para evacuar um escalador com edema cerebral.

Depois de muita negociação e a promessa de que partiríamos junto com a alvorada, nos alojaram no mezanino do ginásio de esportes. Para quem estava preparado para passar a noite ao lado do carro, ao relento, até que saímos no lucro. Pudemos selecionar e dividir a carga com toda a calma do mundo debaixo de um teto. Despertamos com o ruído dos helicópteros e a movimentação do pessoal de socorro que em poucas horas executou seu serviço e liberou o pátio para seguirmos em frente, novamente atrasados. Abandonamos o carro no final da pista de esqui, numa espécie de estacionamento a cavaleiro de um profundo vale e de cargueira nas costas rumamos para o fundo da grota.

Algumas horas depois o sol fritava os miolos e a cargueira pesava uma tonelada enquanto nos arrastávamos pelas encostas nuas. Morrendo de calor dentro da geladeira e sem o alento sequer de uma brisa mais fresca. A meio caminho de Pedra Numerada fomos alcançados por uma tropa de mulas e partimos para a negociação, mal sabia o mulero que estávamos já dispostos a entregar até as calças pra nos livrar das pesadas mochilas. Carregando apenas a pochete e a máquina fotográfica até o céu ficou mais azul.

À distância Pedra Numerada (3350m) tem a aparência de um jardim no meio do inferno. O vale se alarga e o gramado verde forra o chão sulcado por dezenas de canais onde corre a cristalina água do degelo com uma imensa pedra arredondada numa das extremidades. Passamos pela tangente sem lhe dar maiores atenções e seguimos nosso caminho em direção ao gelo eterno mais a frente. Da mesma forma deixamos para trás alguns antigos muros e fundações da época Inca e uma grande e barulhenta cascata que despenca na entrada do vale. A falta de aclimatação já começa a incomodar e no meio da tarde aportamos em Olla Del Plomo (4300m) onde montamos nosso acampamento base bem ao lado do refúgio Federación, um pequeno e sujo container de madeira revestido com folhas de zinco. O Jonhy apresenta dores de cabeça e um certo mal estar, mas nada muito preocupante, a vida continua.

 A noite gelada sucede um dia escaldante de muita preguiça e no meio da tarde o Hilton, o Luiz e o Johny partem para explorar algumas encostas próximas enquanto me dedico integralmente a arte de nada fazer com absoluto sucesso. No refúgio descobri uma mina de comida boa e não pensei duas vezes antes de permutar o estoque. Julguei que os chilenos iriam adorar a comida do Luiz, já convencido de que o problema se resumia ao tempero. Na manhã seguinte iríamos subir a montanha e uma refeição gostosa não faria mal nenhum a nossos pobres e famintos estômagos. Comemos feitos condenados a forca e tarde da noite ainda procurávamos pelas sobras.

Detesto a noite do ataque, detesto dormir de botas, mas o que fazer? Calçar as botas congeladas no meio da madrugada é bem pior. Combinei com o Luiz de partir bem cedo, muito antes da gurizada para não retardá-los, assim poderíamos abrir uma boa vantagem antes de nos ultrapassarem. É sempre a noite mais curta do ano, o despertador berra no meio da madrugada e tem-se aquela impressão que não se chegou nem a dormir. Abrir o zíper da barraca e receber aquele bafo gelado na escuridão total. Melhor pular pra fora de uma vez antes que bata o arrependimento. Se pensar duas vezes nem sai do saco de dormir. No vizinho já havia movimento quando parti em direção às morainas, a distância, as barracas pareciam pequenas lanternas chinesas contra o fundo negro.

Continua………

Compartilhar

Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

Comments are closed.