O Gelo

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A vida de Louis Agassiz atravessa os ¾ iniciais do século XIX. Viveu em vários países da Europa e depois nos Estados Unidos. Fundou neste país o Museu de Zoologia, que dirigiu até sua morte, instituição que ainda hoje lidera a pesquisa sobre a biodiversidade. Zoólogo e geólogo, foi um dos mais notáveis naturalistas de sua época, talvez comparável então apenas a Darwin, Humboldt e Cuvier.

Mas você vai achar bem estranho o seu pensamento científico. Segundo Agassiz, cada região da terra abrigaria paisagens, animais e plantas especificamente criados por Deus para cada uma delas. Compunham em conjunto o grande plano divino para o nosso planeta – segundo Agassiz, Deus ainda se importava conosco.

Gravura de Louis Agassiz (1807-1873).

Cada vez que espécies eram destruídas por cataclismos, o incansável Deus as recriava de forma mais elaborada. Assim, para cada espécie atual, haveria uma cadeia de seres precursores, gradualmente menos complexos à medida que recuavam no tempo. Os extratos mais profundos e, portanto, anteriores conteriam por assim dizer os esboços ou embriões das espécies atuais.

Todo este desenho era completamente fixo. Agassiz não acreditava que as espécies teriam se transformado ao longo do tempo. Ao contrário, cada qual seria restrita tanto a regiões e como a épocas singulares. A cadeia dos seres formada pelo plano da criação não caracterizaria a evolução das espécies no tempo, apenas sua substituição ou repaginação programada por Deus. Ou seja, ele defendia uma forma extremada de criacionismo.

As espécies estariam limitadas ao que chamou de suas províncias zoológicas. Poucas teriam uma vocação cosmopolita, como seria o caso da espécie humana, que habitava toda a terra. Mas Agassiz absurdamente acreditava que as raças humanas não tiveram um ascendente comum, pois resultaram cada qual de criações separadas. Como o fez para os peixes, Deus havia criado as raças para habitarem regiões específicas – os brancos para a Europa, os negros para a África, os amarelos para a Ásia. As migrações humanas apenas confundiram esse quadro.

A raça branca teria traços morais superiores – ele assim comentou sobre os negros norte-americanos: senti piedade à vista dessa raça degradada e degenerada, e tive compaixão pelo seu destino, ao pensar que se tratavam realmente de homens. Já se disse que o Deus de Agassiz havia feito sua escolha pelos brancos. Os demais seres estavam condenados a existências locais; ao homem branco caberia o mundo inteiro. Mesmo na sua época, esta forma de racismo era vista como excessiva.

Ao buscar os conjuntos de fósseis sucessivos de cada espécie e ao descrever as províncias zoológicas a que pertenceriam, Agassiz exibiu um método sistemático e exaustivo que fez dele um exemplo. Em especial, ficou conhecido por sua classificação dos peixes, que o levou inclusive à Amazônia. Mas, no fim da vida, suas doutrinas já eram vistas como superadas – em especial, devido ao avanço do evolucionismo de seu contemporâneo Darwin.

Mas porque estou descrevendo a obra de um cientista tão ultrapassado? Porque Agassiz conversa até hoje comigo, sempre que penso (ou melhor, sinto) sobre sua mais criativa intuição: a Idade do Gelo. Este sim, foi um pensamento que ficou.

Agassiz imaginou que o planeta passara por uma idade do gelo. Sabe-se hoje que houve diversas eras glaciais (Fonte – Divulgação).

Quando era ainda um jovem cientista, ele teve uma notável percepção sobre a paisagem de sua Suíça nativa. Ele entendeu o efeito das geleiras no relevo, ao escavarem os vales, arrastarem os blocos de pedras, esculpirem as rochas e formarem as morainas. Entretanto, essas evidências existiam em locais onde não mais havia geleiras. Agassiz suspeitou então que uma longa Idade do Gelo havia existido – e achou evidências dela na Europa e depois na América do Norte, para onde emigrou e onde veio a falecer.

Naquela época, entendia-se a Idade do Gelo como sendo o mais recente período de frio intenso, que recobriu de um manto branco a América do Norte e a Eurásia. Seu máximo glacial ocorrera há 20 mil anos. Na realidade, foi depois descoberto que houve vários períodos glaciais, desde mais de 2 milhões de anos até meros 10 mil anos atrás. Receberam nomes curtos como Danau (a mais antiga), Gunz, Riss e Wurm (a mais recente).

Os vestígios da última Idade do Gelo ainda hoje permanecem, nas extensões geladas dos Polos e da Groenlândia. Existe a suspeita de que a Terra esteja entrando numa nova era glacial, pois em média ela passa ciclicamente por 10 mil anos quentes, seguidos por 90 mil anos gelados. É possível que o infeliz aquecimento global esteja felizmente retardando o seu início.

Alfred Wegener nasceu na Alemanha pouco depois da morte de Agassiz e faleceu no terço inicial do século XX. Foi um importante geólogo e climatologista – hoje seria melhor descrito como geofísico. Ele também teve o seu momento de revelação, quando se deparou com um artigo sobre a existência de fósseis idênticos de plantas e de animais, porém em lados opostos do Atlântico. Wegener estava no meio de sua vida, era já professor universitário e acumulara conhecimentos sobre o clima nas duas expedições glaciais de que tinha participado.

A distribuição geográfica dos fósseis de Gondwana. A imagem mostra como puderam aparecer em locais hoje isolados entre si.

Mas a situação era ainda mais intrigante: Wegener percebera (como muitos outros) que a costa leste da América e oeste da África tinham formatos que se encaixavam exatamente. E que sedimentos glaciares, próprios de lugares de grande altitude ou latitude como os Polos, habitavam regiões de clima tropical como Índia e África do Sul. Ainda mais, havia rochas idênticas em locais distantes como os Apalaches norte-americanos e as terras altas escocesas.

Talvez os seres outrora vivos tivessem podido atravessar os oceanos e migrar para territórios longínquos? Mas e quanto às evidências minerais, próprias de corpos imóveis? Teria havido misteriosas pontes terrestres, hoje submersas, como então se acreditava, conectando os continentes? Ou este enigma talvez pudesse ser resolvido se os próprios continentes fossem móveis? Sim, a Terra era móvel, concluiu Wegener, numa revolução conceitual semelhante à que Copérnico produziu na astronomia de quatro séculos antes.

Alfred Wegener (1880-1930) aos trinta anos.

E Wegener criou Pangea e a teoria da deriva continental na sua obra Die Entstehung der Kontinente und Ozeane, onde explicou a origem dos continentes e dos oceanos. A crosta terrestre seria formada por placas sólidas separadas entre si, que flutuariam sobre a ativa camada do magma. O movimento deste as deslocaria lentamente, fazendo-as convergir ou divergir entre si, sob o comando do atrito e da gravidade.

Porém, há 300 milhões de anos, todas essas placas estariam reunidas numa só massa terrestre, chamada de Pangea. Foi a sua deriva que a teria fragmentado nos continentes que hoje conhecemos. Como se fossem imensos icebergs flutuando no mar. Na realidade, foi mais tarde descoberto que já houvera muito tempo antes um outro supercontinente, conhecido como Rodínia – também ele havia se fraturado a partir de 600 milhões de anos, entretanto voltando ciclicamente a se consolidar como Pangea.

A evolução da deriva continental, a partir de um único supercontinente, que se fraturou em vários outros.

Os encontros das placas tectônicas causavam terremotos, soerguiam cadeias montanhosas ou precipitavam fossas oceânicas. A maioria dos vulcões ativos situava-se ao longo dos limites de placas, formando o círculo de fogo do Pacífico. Até Wegener, a geologia era apenas descritiva – só se tornou realmente uma ciência com poder explicativo depois dele.

A teoria de Wegener foi inicialmente ridicularizada pela classe científica e só finalmente confirmada dez anos após sua morte. As descobertas da tectônica de placas nos trinta anos seguintes a tornaram dominante. Sua maravilhosa intuição contribuiu para criar o novo cânone científico da geologia.

É interessante pensar como as trajetórias de nossos dois cientistas foram opostas. Em vida o grande Agassiz foi aclamado, mas a posteridade o desacreditou. Em sua época Wegener foi contestado, assim como postumamente consagrado.

Diferentemente de Agassiz, Wegener viveu pouco. Na sua quarta expedição à Groenlândia, por ele chefiada, faleceu ao tentar socorrer dois pesquisadores, isolados numa base remota sob um clima terrível. Este homem generoso disse um dia: A ciência é um processo social. Decorre numa escala temporal mais longa do que a vida humana. Caso eu morra, alguém ocupará o meu lugar. Se você morrer, alguém ocupará o seu. O que realmente importa é que alguém faça o trabalho. 

A última foto de Wegener, no gelo da Groenlândia, onde veio a falecer ao procurar ajudar dois colegas isolados.

Foi no gelo que Agassiz tanto havia pesquisado, e que tanto ensinou a ambos naturalistas, que Wegener veio a desaparecer. Seu corpo só pôde ser resgatado meio ano depois.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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