O Montanhismo no Japão

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Visando as comemorações dos 100 anos da Imigração Japonesa no Brasil, o AltaMontanha.com publica um especial escrito por Rodrigo Granzotto Peron sobre a história, as conquistas e as personalidades do Montanhismo Japonês.

I – Centenário da Imigração Japonesa

No dia 18 de junho de 1908 aportava em Santos o navio Kasato Maru, trazendo 165 famílias japonesas que imigravam para o Brasil em busca de melhores condições de vida. Cem anos se passaram e hoje nosso país conta com 1,5 milhão de nikkeis (descendentes nascidos fora do Japão), a maior comunidade nipônica no exterior.

Esses imigrantes têm importância fundamental na mescla cultural e social brasileira. Têm influência marcante na gastronomia (sushi, sashimi, saquê, chá etc.), na cultura (mangá, animê, karaokê), nos esportes (judô), no cultivo de alimentos e plantas, nos hábitos religiosos. Enfim, são atómos na molécula social do Brasil.

Aproveitando o centenário segue breve histórico do himalaísmo japonês.

II – O Montanhismo no Japão

O símbolo do Japão é o belíssimo Monte Fuji (3.776m), nas proximidades de Tóquio. Um país que tem uma das montanhas mais belas do mundo como símbolo nacional não poderia ficar alheio ao montanhismo e a presença nipônica no Himalaia sempre foi muito destacada e marcante.

Monte Fuji

Com uma quantidade incrível de praticantes, o Japão possui vários clubes de montanhismo (Hokei, Sendai, Hosei, Showa, Nerima, Sapporo, Tóquio). É bastante comum a cooperação entre dois ou mais clubes alpinos para organizar grandes expedições. O mais famoso e proeminente de todos é o Clube Alpino Japonês (JAC), que completou em 2005 seu primeiro centenário, e segue forte e firme como referência mundial.

Outra característica marcante é a participação ativa das universidades nas expedições, muitas das quais patrocinando aventuras para os grandes picos do Himalaia. Destacam-se sobremaneira as universidades de Tóquio, Nagoya, Kyoto, Nihon, Doshisha, Osaka e Shinshu, algumas das mais ativas.

III – Os Japoneses no Himalaia

A primeira expedição relevante foi levada a cabo em 1952, sob a liderança de Kinji Imanishi. Primeiramente fizeram o reconhecimento da área do Manaslu (8.163m). Depois tentaram o difícil Annapurna IV (7.525m). E não voltaram para casa de mãos abanando, pois desvirginaram o Chulu West (6.419m).

Selo em homenagem à conquista do Manaslu feita por japoneses em 1956.

As fotos do Manaslu foram publicadas em diversos jornais e periódicos e fascinaram os japoneses, que retornaram para tentá-la em 1952, 1954 e 1955. Em 1956 a expedição de Yuko Mari finalmente conquistou a “Montanha dos Espíritos”, e os membros que pisaram no ponto culminante – Toshio Imanishi, Kiichiro Kato e Minoru Higeta – viraram heróis nacionais. A montanha passou a ser chamada “O Pico 8.000 Japonês”.

Impulsionados pelo grande sucesso no Manaslu, os alpinistas da terra do sol nascente lançaram múltiplas expedições pioneiras nos anos 50 para Himalchuli Leste (7.893m), Langpo Gang (6.979m), Phurbi Chhyachu (6.637m), Kanjiroba Sul (6.883m), Himalchuli Nordeste (7.742m), Dhaulagiri II (7.751m), Gaurishankar (7.135m), Pangbuk Ri (6.625m), Langtang Lirung (7.227m) e Shalbachum (6.707m).

A quantidade de picos difíceis e perigosos desvirginados pelos japoneses nos anos 60 é impressionante, fazendo inveja aos europeus: Noshaq (7.492m) e Himalchuli (7.893m) em 1960, Saltoro Kangri (7.742m) em 1962, Annapurna Dakshin (7.219m), Glacier Dome (7.255m) e Gyachung Kang (7.922m) em 1964, Ngojumba Kang (7.839m) em 1965. Há vários outros de menor altitude para engrossar a lista.

Quanto ao Manaslu, virou febre no Japão, com outras três conquistas seguidas (1971, 1974 e 1976). Animados com a incrível conquista do Manaslu, os montanhistas daquele país se lançaram ao Himalaia e Karakoram, conquistando até 1985 todos os 14 cumes 8.000 (o segundo país a completar ascensão a todos).

IV – Individualismo vs Coletivismo

A marca registrada do povo japonês é o trabalho em equipe, que ajudou a reconstruir o país após a Segunda Guerra Mundial. E até bem recentemente o culto ao individual não era algo visto com bons olhos no Japão. O individualismo surge na sociedade japonesa como algo bem recente, uma penetração ocidental lenta e gradual que vem se intensificando nas últimas décadas.

Normalmente os japoneses atacam as montanhas em grandes expedições pesadas, com dezenas de componentes, utilização massiva de mão-de-obra local (sherpas, tamangs, gurungs, tibetanos, hunzas e baltis), grande sinergia de esforços, e profundo respeito pelos mais velhos e pelos líderes de expedição. Quase todas as conquistas foram dentro desse sistema coletivo. Por essa característica grupal não são muitos os japoneses que individualmente se destacam no alpinismo.

Há contudo algumas gratas exceções, aqueles que se tornaram ídolos locais:

a) Atsushi Yamamoto – 8 cumes 8.000 diferentes

b) Eiho Ohtani – Nova rota dificílima no K2 em 1981

c) Haruichi Kawamura – Primeira pessoa a subir Everest, K2 e Kangchenjunga por rotas novas

d) Hideji Nazuka – 9 cumes 8.000

e) Hirotaka Takeuchi – 11 cumes 8.000

f) Noboru Yamada – 12 cumes 8.000, sendo 3 deles no inverno (Everest, Manaslu, Makalu)

g) Noriyuki Muraguchi – Impressionantes 5 ascensões no Everest

h) Osamu Tanabe – Primeira pessoa a subir toda a terrível face sul do Lhotse no inverno

i) Taro Tanigawa – 8 cumes 8.000

j) Tsuneo Shigehiro – segunda absoluta no K2 e abertura de rota muito difícil na face norte do Everest (corredor japonês)

k) Yoshinobu Kato – 10 cumes 8.000

V – Impressionantes Rotas Conquistadas

Os japoneses são bastante ousados no montanhismo e sempre procuram superar todos os limites e barreiras, subindo invariavelmente rotas complicadas e perigosas.

Em 1970 percorreram integralmente a aresta sudeste do Makalu, uma rota assombrosa para aqueles tempos. No ano seguinte abriram a rota que é considerada a mais difícil do Manaslu até hoje, pelo pilar noroeste.

Em 1976 venceram a teratológica parede norte do Jannu. Em 1978 foi a vez da primeira subida da longa e perigosa aresta sudeste do Dhaulagiri.

Em 1980 o Everest ganhou uma de suas rotas mais célebres, na face norte, por intermédio do corredor japonês. No mesmo ano desenharam uma nova linha na face norte do Kangchenjunga, uma rota bem direta, e que é considerada a mais difícil dessa montanha até hoje. Em 1981 Eiho Ohtani percorreu integralmente a aresta oeste do K2, um itinerário ousado e nunca repetido. No mesmo ano cordada nipônica abriu a via mais difícil no Annapurna até os dias atuais, pelo pilar central da face sul.

Grande equipe japonesa foi ao K2 em 1982 e subiu totalmente a aresta norte, outra rota descomunal. Ainda em 1982 time liderado por Noboru Yamada escalou a famigerada “Rota da Pêra” na face norte do Dhaulagiri, com complexidade técnica altíssima, nunca repetida. Em 1984 os japoneses realizaram a primeira travessia entre os cumes Sul, Central e Principal do Kangchenjunga. No mesmo ano fizeram a primeira ascensão da agulha rochosa K7, no Karakoram.

Em 1986 abriram uma nova linha na face noroeste do Gasherbrum I. Em 1987, sob a batuta de Noboru Yamada, revisitaram a face sul do Annapurna, desenhando um novo caminho ao cume à esquerda da rota britânica.

Em 1990 novamente o Gasherbrum I, com ascensão pioneira na aresta sudoeste. No mesmo ano veio uma rota diretíssima na face sul do Latok I, um pico muito exigente. Em 1992 duas equipes simultâneas realizaram a 1ª e a 2ª ascensões do Ultar Sar, um dos picos mais perigosos e difíceis da Ásia. Também em 1992 tiraram a virgindade do Namcha Barwa.

Yasushi Yamanoi esteve no Cho Oyu em 1994 e construiu uma nova e direta rota na face sudoeste, considerada suicida, descrita por Reinhold Messner como “via onde o perigo de avalanches é excepecional”.

Em 1995 ainda outra via japonesa foi criada no Everest, com subida integral da aresta nordeste, com seus quase nove quilômetros de extensão e quatro de desnível, nunca repetida. No mesmo ano uma linha novíssima na aresta leste do Makalu. Em 1995 veio uma nova via no flanco rakhiot do Nanga Parbat (que pouquíssimas vezes foi escalado).

Nesta década continuaram com aberturas de rotas incríveis, como a descomunal face norte do Gyachung Kang (2002) e uma variante no Meru Central (2006).

Raríssimos países podem se orgulhar de tantas rotas difíceis e tantas primeiras ascensões. Mas a ousadia e o montanhismo de alto nível cobraram seu preço e o Japão é um dos países com maior número de fatalidades no himalaísmo. Foram perdidas 75 vidas somente nas 14 montanhas 8.000. Se contabilizada toda a cadeia do Himalaia e a do Karakoram, o número de casualidades ultrapassa as duas centenas.

VI – O Montahismo Feminino

As mulheres japonesas sempre estiveram à frente do seu tempo e também no alpinismo mostraram seu vanguardismo.

Junko Tabei no cume do Everest em 1975

Em 1974 Naoko Nakaseko e Masako Uchida tornaram-se as primeiras mulheres a culminar um pico 8.000 e abriram as portas do Himalaia para o montanhismo feminino.

Em 1975 surge a figura da carismática e famosa Junko Tabei, a primeira mulher a culminar o Everest. Junko também fez a primeira ascensão feminina ao Shishapangma (em 1981), e subiu o Cho Oyu em 1996, aos 57 anos. Sua frase mais famosa: “Eu sou um espírito livre das montanhas”.

A partir dos anos 80 ela iniciou um projeto interessante e sem precedentes, para pisar os pés no ponto mais elevado de cada um dos países do mundo. Até o momento já coleciona 120 desses picos. Ela também foi a primeira mulher a pisar no tecnicamente difícil Annapurna III (7.555m), em 1970.

Outros nomes destacados do montanhismo japonês são Yuka Endo, Taeko Yamanoi, Fumie Yoshida e Tamae Watanabe, cada qual com 4 cumes 8.000 no currículo.

VII – Longevidade

O Japão é um dos países com maior número de idosos no planeta, com 27 milhões (22% da população), e tem uma das maiores médias de vida, que beira os 84 anos.

O primeiro septuagenário a pisar no cume de um pico 8.000 foi Toshiko Uchida, um farmacêutico de Yokohama que subiu o Cho Oyu em 2002, aos 71 anos de idade, um recorde para aquela ocasião. E não é um caso isolado.

Dos alpinistas que escalaram algum pico 8.000 acima dos 65 anos, a esmagadora maioria é de japoneses. Eles detêm os recordes de “mais idoso” no Manaslu e no Lhotse. No Everest, dos 20 mais idosos que já fizeram cume, 45% são nipônicos. A mulher mais velha a culminar um pico 8.000 é do Japão: Sachiko Orihawa. E em 2008 Yuichiro Miura assombrou o mundo ao pisar no alto do Everest pela rota nepalesa no auge de seus 75 anos de idade (quase 76).

Um exemplo claro de que longevidade e vitalidade podem andar de mãos dadas…

Enfim, o Japão é uma terra de contrastes e de muita tradição e no montanhismo é exemplo a ser seguido, de união, perseverança, respeito pela montanha e luta constante para superar limites. Deixo por fim os parabéns a todos os descendentes de japoneses pelo centenário da imigração.

Texto e pesquisa: Rodrigo Granzotto Peron

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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