O novo picadão do Geraldo

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Basta a gente se ausentar dos lugares por algum tempo q qdo se retorna imediatamente as mudanças se percebem. Boas ou não. Foi assim recentemente em Paranapiacaba e agora tb, no sertãozinho de Biritiba-Mirim, qdo retornei ano após minha última visita. Sob pretexto dum mergulho refrescante na Represa Andes, aproveitei pra verificar as condições atuais do “Picadão do Geraldo”, antiga via extrativista q homenageia seu mais folclórico residente e q hoje tornou-se espinha dorsal de trocentos atrativos locais, como Pico do Gavião e Itapanhaú, Cachus Light, Água Fina e Lagarta, entre tantos outros. E foi nesse rolê despretensioso q constatei algumas alterações significativas. Isto numa das poucas regiões ao mesmo tempo selvagens e próximas a urbe, onde o Ibama recentemente soltou uma trinca de pintadas.

Um congestionamento atípico se enfileirava no asfalto da SP-98 (Rod. Mogi-Bertioga) naquela manhã ensolarada de domingo, motivo pelo qual pisamos na Balança relativamente tarde, as 9:45hrs. A previsão alertava sol e calor praquele dia, razão pela qual parece q td mundo resolvera descer pro litoral ao mesmo tempo. Mas com uma paciência q deixaria Jó orgulhoso, mantive a compostura até a hora q saltei do latão, no  tradicional km 77.

Mochilas nas costas, eu e a Priscila, única vivalma q topou me acompanhar , pusemos pé-na-estrada de forma tranquila e compassada. Deixando os limites de Mogi das Cruzes pra então adentrar no de Biritiba-Mirim, a pernada transcorreu sem intercedências. A exceção, claro, duma cobra coral q rastejava colericamente rente o asfalto, q foi clicada a exaustão pela minha cia. Se era falsa ou verdadeira não sei, não pedi a identidade á peçonhenta.

E assim, meia hora após iniciada a caminhada abandonamos a rodovia em favor da entrada do tradicional “Picadão do Geraldo”, outrora uma antiga estrada desativada a décadas.  Uma decrépita guarita assinala o lugar, mas qual minha surpresa ao encontrar nada mais nada menos q o próprio Geraldo, sentado no acostamento e observando o trânsito fluir com lentidão. Chamou-me a atenção do velho matuto, conhecedor da região como ninguém, estar apoiado numa bengala. "Tô com problema de circulação na perna, baixa pressão e quase tive um AVC..", diz ele, como se tivesse apenas com uma gripe. Contou das dificuldades q sua condição lhe trouxe, abrindo mão dos "bicos" de marceneiro, e q voltou a morar no Picadão. Uma pena q o velho seja arredio a frequentar um posto de saúde decente, mas principalmente q continua comendo e fumando como antes, coisas q deveria passar longe. Se cuida, velho!

Desejei pronta recuperação ao folclórico senhor e nos pirulitamos trilha adentro, afinal havíamos já chegado atrasados e deveríamos correr atrás do preju. Embalados em meio a muita conversa, num piscar de olhos nos vimos saltando as pedras do cristalino e estreito Córrego do Lobisomem, bem ao lado do antigo casebre abandonado q um dia pertenceu ao velho matuto q empresta seu nome à picada. Em tempo, "Lobisomen" é o outro apelido q Seu Geraldo recebe na região. Qual será o motivo? Desconheço.

A caminhada prossegue ininterrupta, seguindo sempre o mesmo compasso e sem gde variação de desnível. A bússola marca ininterruptamente nordeste, ignorando as picadas transversais, q ficam pra outras vindouras incursões.  Logo de cara me desperta a atenção a largura da picada, bem maior q antes, e a presença frequente de marcas de enormes pneus. No caso, um trator! Sim, um veículo enorme andou quase td trajeto da trilha, roçando td em volta tornando a caminhada mais fácil e amena, sem nenhum mato encostando em vc.

Pois bem, dando continuidade a pernada nesta picada mais larga, inevitáveis brejos ao longo da vereda surgem, algo previsível mesmo em tempos de estiagem. E o chapinhar constante das botas torna-se a trilha sonora de boa parte do percurso, principalmente nas baixadas, repletas de poços de lama q mais parecem areia movediça. Uns são facilmente contornados; noutros, no entanto, é mais fácil prosseguir chafurdando a bota até o tornozelo, sem dó.

Este comecinho de caminho, no entanto, tem seus atrativos bem definidos sob a forma duma evidente "tocaia de caçador" disposta na margem esquerda da trilha, além dos enormes blocos desmoronados de granito, onde pendem cipós e forma-se uma grota capaz de refugiar meia dúzia de pessoas num temporal. Logo adiante um susto: um enorme teiuzão, q mais parece figurante de "Jurassic Park", foge de forma desengonçada pela vereda até se perder mata adentro.

Na sequência cruzamos o primeiro dos três gdes (e escorregadios) pontilhões do caminho, q por sua vez passa por cima do riozinho cujo som já ouvíamos faz algum tempo. Na verdade este som corresponde realmente à da Cachu da Lagarta, próxima dali. Mas qual a minha surpresa de já inexistir qq vestígio do supracitado pontilhão! No lugar, um enorme aterro de largura suficiente pro tal trator passar, enqto a água do córrego se esforça em passar por baixo cavando fundo entre terra, troncos e raízes.

A seguir vem o trecho mais aberto da trilha, q descortina ao norte a inconfundível e altiva silhueta do Pico do Gavião, tb conhecido como Peito de Moça. Neste trecho a umidade reluz nas pedras remanescentes do antigo calçamento da trilha, trazendo à tona uma história q remete à construção da SP-98, datada dos anos 80. O calor é forte mas não demora a passar um trecho refrescante de sombra, ao som duma barulhenta araponga escondida nalgum lugar da encosta serrana.

O segundo pontilhão é cruzado com cuidado, diferentemente do anterior. Contudo, é triste informar q a antiga e charmosa ponte de madeira de outrora foi totalmente descaracterizada. Aqui não houve aterro mas deram um jeito de passar o trator por cima colocando mais toras e vegetação, escondendo o antigo piso. "Caralho! Até onde foi esse trator? Será q abriu terreno até a Represa?", me indaguei até com certa preocupação.

Mas minhas suspeitas felizmente não se concretizaram, pois aparentemente o dito veículo pesado só abriu terreno até a bifurcação "Casa Grande/Andes". Dei uma bisbilhotada na "Trilha dos Desbravadores" e suspeito q haja intenção de reabrir o caminho até Casa Grande/Salesópolis. Mas isto, q fique claro, são apenas hipóteses. Na próxima vez q for procuro me informar com Seu Geraldo, pois ele deve saber bem o q se passa por ali.

Tomando a picada da direita prossigo minha jornada agora me sentindo em terreno bem mais familiar, ou seja, através dum caminho menos roçado e muita mata em volta, agora descendo sinuosamente na direção leste. A partir daqui a trilha se estreita, mas ainda assim é óbvia e bem batida. Um terceiro pontilhão, desta vez de ferro, é atravessado cautelosamente e é preciso ter equilíbrio ao andar sobre suas vigas remanescentes, de preferência sem olhar prum afluente do Sertãozinho q marulha logo abaixo. Na sequência mergulhamos então no frescor dum bosque onde várias trilhas nascem da principal, pra tds lados, sendo algumas de anta, cujas gdes pegadas abundam na lama do trajeto. Mas o sentido a tomar é obvio e evidente. Sempre pra leste. Não tem erro.

As 11:30hrs alcançamos as margens do largo, manso e relativamente raso Rio Sertãozinho, e sua travessia foi mto mais fácil do q o esperado. Não houve necessidade de corda, tirolesa e mto menos corrente humana, como de costume. Bastou apenas retirar as botas e cruzá-lo tranquilamente, numa boa, com água na altura das canelas. Aqui, mais uma surpresa sob a forma dum crânio inteiro de anta parcialmente enterrado na margem arenosa do rio. Pesado e sem sinais do resto do corpo, ficou a indagação das razões do óbito da bichinha. Mas das duas uma: ou foi algum caçador ou foi obra dalguma onça pintada, algo bem provável tendo em vista q 3 espécimes foram soltos pelo Ibama recentemente.

A trilha é reencontrada facilmente na outra margem e por ela prosseguimos indefectivelmente no sentido desejado, agora tocando pra sudeste. Desviando de mta mata tombada q pode confundir trilheiros desavisados (mas q é tirada de letra por quem tem farejo de veredas) aqui surge uma bifurcação de alguma relevância e bem evidente, cuja ramificação esquerda sempre tive desejo de conhecer. Com tempo de sobra, ignoramos a vereda habitual pra Represa (direita) e procuro saciar minha habitual curiosidade. Aqui, buscando evitar os tradicionais perdidos q sempre tenho na hora de retornar, deixo marcações de plástico no arvoredo em volta, feito “João e Maria”. Soluções fáceis, simples e mais eficazes q qq GPS.

Pois bem, mergulhando nesta vereda em meio ao frescor da mata fechada percebo q nossa rota toma direção nordeste, tocando paralelo a picada habitual. Contudo, a trilha agora palmilhada é menos batida e não raramente tomada por mato, principalmente por voçorocas do maledito capim-velcro, aquele q se puxar com força queima sua pele! Mas firmes e fortes prosseguimos em frente, subindo e descendo suavemente na direção supracitada. Logo adiante emergimos em terreno mais aberto, q identifico como o largo platô da represa. Saltando um braço da mesma na base do tradicional escala-mato, um pouco mais a frente interceptamos uma bifurcação q imediatamente reconheço da minha última incursão. Daqui em diante me sinto em casa e tocamos pela direita, bordejando morrotes ate dar numa rustica pinguelinha, q é cruzada tranquilamente.

Daí em diante passamos a bordejar as plácidas margens florestadas da Represa Andes. A picada é óbvia e não raramente apresenta bifurcações pro interior, mas a gente se mantem sempre no caminho q ladeia o espelho d’água. Vestígios de caçadores são facilmente encontrados, sob forma de garrafas pet e embalagens de ração de cachorro, mas por incrível q pareça não tropeçamos com nenhum deles. Tb pudera, o calor infernal desanima até a bicharada a dar as caras por aqui.

A vereda se afasta do lago e sobe ao alto daquele pequeno platô, emergindo no aberto onde as vistas se abrem de forma esplendorosa. A exuberante e densa Mata Atlântica dá lugar a exemplares ressequidos de arbustos e vegetação típica de sertão, coroando os rochedos e pedras q pontilham o caminho. Por estas e outras q esta região é chamada de “Sertãozinho do Tietê”.
As 12:30hr finalmente tenho um vislumbre completo do espelho d’água chamado de Represa Andes, enorme oásis remanescente dos tempos da construção da SP-98. Já vim aqui noutras ocasiões mas sempre me deslumbro com a visão deste lago azulado encravado no meio de verdejante mata. Por sobre o ombro reconheço os maciços próximos do Pico do Gavião (ou Peito de Moça), Itapanhaú, Esplanada e Garrafão, tds destoando a noroeste. Vale sempre lembrar q a represa é artificial e sua função era servir como barreira de contenção de água em época de chuvas, controlando a vazante do Rio Sertãozinho e seus afluentes.

Mas o tempo de sol escaldante infernal – onde um calor sufocante parece emanar do chão – não está mto pra contemplações e convida mesmo prum tchibum na represa. Num piscar de olhos alcançamos a tradicional prainha, privilegiada com grama e até sombra, e lá mesmo jogamos as mochilas pra nos refrescar nas águas frias do enorme lago. Donos absolutos daquele oásis enfiado nos cafundós de Biritiba-Mirim, nos presenteamos com um merecido lanche, relax e até cochilo, td promovido ao silêncio reinante do lugar, eventualmente rompido pelo som hipnótico de ráfagas de vento remexendo o arvoredo em volta.

Missão cumprida e bem mais q revigorados, por volta das 14hrs começamos a empreender o caminho de volta. Desta vez pela vereda habitual, q corre teoricamente paralela a qual viemos. Em coisa de 10min alcançamos a bifurcação onde deixei as marcações e, na sequência, as margens do Rio Sertãozinho, q cruzamos tranquilamente. Contudo, pra não refazer integralmente td caminho feito, ou seja, voltar pelo “Picadão do Geraldo”, após a bifurcação pra Casa Grande decido, em comum acordo com a Pri, tocar pelo miolo da serra, ou seja, pelo selado entre o Peito de Moça e Itapanhaú, picada tradicionalmente conhecida como “Trilha da Água Fina”.

E lá vamos nos palmilhando a vereda numa boa no frescor da mata fechada, saltando os córregos no caminho e iniciando a suave ascensão em direção ao supracitado colo. Uma breve parada de descanso, as 15:30hr, na modesta Cachu Água Fina nos brinda tanto com uma retomada de fôlego como pra tchibum refrescante na fria banheira na base da queda. Na sequência a pernada prossegue tranquila e compassada, até q alcançamos o almejado colo, onde nos deparamos com a “Trilha do Yogurte”, na verdade uma encruzilhada de veredas q levam tanto pro Itapanhaú e Sapo, picadas já palmilhadas noutras tantas ocasiões q desta vez ignoro. Tocando em frente a vereda inicia a descida, passando por inúmeros córregos q molham a goela e trocentos matacões q pipocam pela encosta, com destaque pra impressionante “Pedra do Navio”.

Mas finalmente as 16:15hrs desembocamos no emaranhado de estradas de reflorestamento pertencentes a Fazenda da Forquilha, onde tocamos sempre por norte. Pisamos nos fundos duma fazendinha após transpor voçorocas de capim-navalha, onde estridentes cães anunciam nossa presença e, pela quarta vez, me valho da desculpa esfarrapada de “estar perdido” pra poder sair de boa pelo portão principal, com sucesso. Na sequência vem a pernada pela “Estrada da Adutora” onde o tempo fecha de vez e o até então céu azul e claro se cobre de brumas opacas, anunciando uma iminente frente fria.

Mas as 17:40hrs enfim pisamos no pacato bairro de Manoel Ferreira, pra felicidade da Pri q já sentia o pé latejando da longa pernada. Desabamos nas cadeiras do tradicional “Bibar” (q felizmente não fechou conforme anunciado) e lá nos presenteamos merecidamente com uma deliciosa porção de frango a passarinho e 6 brejas geladas, sendo q metade delas foi paga por um simpático tiozinho q nos acolheu como filhos. Como pagamento, tivemos q ouvir seus causos e lamentações da vida, ao mesmo tempo q avaliávamos os estragos da pernada, traduzidos em inúmeros ralados, dores musculares e carrapatos pelo corpo. Coisas q somente Manoel Ferreira oferece a quem faz dela pto final de empreitadas serranas. O busão só passou bem depois, mas até lá já estávamos no mundo dos sonhos, ignorando por completo o pesado trânsito da SP-98 na hora de retornar pra Sampa.

As pessoas não raramente me indagam o motivo de não frequentar a muvucada piscina aqui do prédio onde resido, mas a resposta tá mais q na ponta da língua. Pra quê, sendo q tenho a oportunidade de me refrescar num lugar único, repleto de natureza pulsante em volta e totalmente reservado pra mim??? E será sempre assim sempre q me der na telha nos dias de calor infernal. Já a despeito das alterações relatadas deste novo “Picadão do Geraldo”, fico na ansiosa expectativa q estas mudanças sejam mínimas e se limitem apenas ao relatado nesta pernada. Só assim pra continuar tendo o raro privilégio de me deliciar com tchibuns naturebas neste rincão serrano chamado de “Sertãozinho do Tietê”, felizmente ainda isento de muvuca e ainda não descoberto pelo excursionismo tradicional. E, acredite, mais perto da urbe do se possa imaginar.
 

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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