Às vezes nossas recordações demoram a nos alcançar. Este foi o caso do Rio Oiapoque, que visitei em duas oportunidades partindo da cidade de mesmo nome no Amapá, quatro anos atrás. É um rio lindo, inserido num ambiente singular. Mas queria dizer que este relato não é apenas sobre a natureza, é também sobre a história.
O Oiapoque
Como rio amazônico, o Oiapoque não é tão grande, com algo menos de 400 km. Ele é entretanto estratégico (e também periférico), pois faz a divisa norte do país com a Guiana Francesa.
Ao longo do tempo, ele teve mais de um nome, a começar pelo de Vicente Pinzón, que teria descoberto a sua foz em 1500. Oiapoque significa casa dos wayãpi, índios da região – ou menos provavelmente rio das corredeiras, segundo o naturalista von Martius, que percorreu o Brasil três séculos atrás.
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Mapa de localização da Guiana Francesa, mostrando o Rio Oiapoque e a ligação entre Macapá a Caiena.
Esta região foi ignorada pelos portugueses até meados do século XVIII, tendo sido comandada desde o século anterior pela França a partir do Maranhão e da Guiana. A descoberta do ouro, então extraído pelos franceses, acabou despertando o interesse de Portugal, que iniciou a colonização.
A partir do século XIX, houve uma longa disputa pelo território localizado a sul do Oiapoque, pois os franceses entendiam que a divisa ficaria no Rio Araguari, a 450 km de distância.
Isto subtrairia algo como metade do Amapá, desde o litoral até o interior de Roraima. A região em disputa era chamada de Contestado, tendo dois representantes, um francês em Caiena e um brasileiro em Belém.
O conflito acabou sujeito à arbitragem internacional. Foi o Barão do Rio Branco quem convenceu em 1900 o árbitro suíço a manter a região como brasileira. Foi um esforço de praticamente um homem só contra uma legião de especialistas franceses.
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Como seria a Guiana se todo o território do Amapá fosse francês, chegando até a foz do Amazonas (Fonte – mapa de Surville de 1778).
O Rio Oiapoque nomeia o município de mesmo nome, que ocupa o extremo norte do Amapá. Este é considerado o mais preservado dos Estados brasileiros, com mais de 90% de sua superfície bem conservada. Isto se deve à sua localização remota, à pequena população e à grande concentração desta à volta da capital Macapá.
Além disto, o Amapá apresenta terrenos pobres, recobertos por uma vegetação apenas arbustiva de cerrado. E mais de 2/3 de sua área é ocupada por reservas naturais e terras indígenas.
A presença do Tumucumaque, o maior PN brasileiro, e dos territórios dos galibi, uaçá e karipuna faz com que quase ¾ do Oiapoque seja destinado a glebas fora do controle municipal.
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Moradia na margem brasileira do Rio Oiapoque. Notar a abundância da vegetação.
Percorri perto de dois mil km no Estado, especialmente ao longo da rodovia de conexão entre Macapá e Oiapoque – vale dizer, entre o Brasil e a Guiana. Foi espantoso não enxergar nenhuma roça, nem mesmo de mandioca, e praticamente nenhuma criação (fora búfalos à beira mar e cavalos no meio do caminho). Minha impressão é de que o Amapá não vive do trabalho e sim do imposto, seja dos repasses da União ou das cobranças da população.
O município de Oiapoque originou-se em tempos antigos a partir da moradia de um mestiço, chamado Emile Martinic, o primeiro habitante local que não era indígena. A região era conhecida como Martinica e chegou mais tarde a receber imigrantes daquela mesma ilha. Até aquele momento era habitada por etnias como aruak, palikur, galibi e wayana.
As línguas faladas eram diversificadas, seguindo as diferentes origens dos habitantes: o caraíba, o aruak e o tupi – mais tarde desenvolveu-se o patoá derivado do francês, que sobrevive até hoje. A chegada dos franceses trouxe para a Guiana o sangue africano, além do europeu. Diz-se que era uma cultura caribenho-amazônica.
Os principais movimentos migratórios foram motivados pelo garimpo do ouro – e, em menor escala, pela extração da madeira (o pau rosa, insumo para o perfume Chanel), da castanha e da borracha. Afrodescendentes, sejam os quilombolas fugidos ou os crioulos residentes, ocuparam a região a partir da Guiana.
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O dia nascendo no remanso das águas do Oiapoque, já perto do Cabo Orange.
Ao contrário, os nordestinos e os caboclos brasileiros vieram pelo sul. E muitos militares, nos dois lados da fronteira. Como você pode imaginar, as populações indígenas foram sendo reduzidas ou exterminadas. Para quase 300 mil habitantes da Guiana, cerca de 9 mil são indígenas. O município de Oiapoque deve ter alcançado 30 mil habitantes – e talvez 8 mil sejam índios.
A bonita ponte estaiada que une o Brasil à Guiana atravessa os menos de meio km do curso moroso do Oiapoque. Levou muito tempo para ser inaugurada, pois o acesso brasileiro só foi pavimentado tardiamente.
A rigor, a rodovia BR-156 que chega até Oiapoque é um desastre: diz-se que você pode levar de dez horas a três dias para atravessá-la, isso se um buraco, uma vala ou uma seta indígena não atingir você. No meu caso, ida e volta não tomaram nem vinte horas (quase) sem incidentes.
Já se disse que a fronteira entre os dois países é um lugar de encontros e desencontros. No passado, havia colônias penais nas duas margens.
A brasileira chamava-se Clevelândia, em homenagem a um presidente norte-americano, sendo hoje uma base militar perto de Oiapoque. Caiena teve também horríveis presídios, incluindo a Ilha do Diabo onde residiu o capitão francês Alfred Dreyfus.
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Vista frontal de Saint Georges, separada do Brasil pelo Rio Oiapoque (Fonte – Divulgação).
Brasil e Guiana vivem num descompasso de restrições que limitam a migração, a cooperação, a solidariedade e o comércio. As vilas em cada margem tiveram dinâmicas distintas: a cidade de Oiapoque tem crescido vertiginosa e desordenadamente, hoje com mais de 22 mil pessoas. Ao contrário, Saint Georges continua pacata e ordenada, com menos de 5 mil habitantes.
É notável o contraste: Oiapoque é movimentada, alegre e barulhenta; Saint Georges é discreta e silenciosa. Encontrei esta diferença, aliás, entre todas as vilas de cada lado do rio que conheci, seja Tampack e Vitória rio abaixo rumo à foz, seja inversamente Camopi e Vila Brasil. A ordem francesa contra a improvisação brasileira.
Acredito que o dinamismo econômico acabará integrando as duas comunidades. Com mais renda e emprego, os guianenses são visitantes regulares do lado brasileiro – ao contrário do que acontece nas nossas fronteiras com os hermanos do sul e do oeste.
Os dois lados do rio têm influído entre si: a população aqui é muito rica culturalmente, é um lugar amazônico, muito peculiar, com valores próprios. A culinária, o idioma, a etnia, a música, o comércio e até o carnaval mostram essas influências recíprocas.
Esse é um lugar fascinante, com uma aura de perigo e aventura. As pessoas parecem meio errantes e suspeitas, com origens misturadas, ocupações pouco definidas e expedientes ligeiros. Mas existe também muito descaso, sujeira, violência e pobreza.
É um ambiente de clima quente e úmido, dominado pela densa floresta tropical. Ela é de alto porte e cobertura uniforme, com grandes árvores emergentes.
Contém uma grande diversidade vegetal, com espécies de madeira de lei como maçarandubas, louros e tauaris , fruteiras como as abioranas, além das palmeiras da bacaba e do açaí.
Essa região abriga uma fauna de grande diversidade e bastante endemismo. Foram encontradas espécies novas, raras ou desaparecidas entre peixes, aves e primatas – como o gavião real, o uirapuru, o veado branco e o cachorro vinagre.
Escrevi no passado que são amostras de um paraíso amazônico que está desaparecendo no Brasil.
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Corredeiras do Oiapoque, que podem mudar de posição conforme o regime das águas, se baixas, lentas, altas ou rápidas (Fonte – Divulgação).
Um bom número de rios da região forma bacias isoladas, com foz no oceano. Uma exceção é o magnífico Rio Jari, afluente do Amazonas. Seu trecho central é encachoeirado e de difícil navegação – dez dias são necessários para transpor só este pedaço.
O Oiapoque é também um rio importante, belo e perigoso, porém navegável logo após sua nascente. Existe à volta do Oiapoque um gigantesco cinturão de áreas de preservação e territórios indígenas. Constituem um dos maiores mosaicos de áreas protegidas do mundo. Superam os 30 milhões de hectares em terras brasileiras, na sua maior parte contínuas.
Além disso, foi implantado do lado francês o Parque Amazônico da Guiana, com nada menos do que 3 milhões de hectares na metade sul do país. É um oásis verde ainda escasso de homens e abundante de natureza.
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As ilhas rochosas no leito do Oiapoque, perto da vila de mesmo nome rio abaixo.
O Oiapoque tem um curso interessante, correndo quase sempre na sua calha tectônica de forma retilínea, num rumo sudoeste-nordeste. Ele nasce no interior do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque e deságua no Atlântico, próximo ao Cabo Orange, onde existe outro extenso Parque Nacional.
Curiosamente, é um rio plácido desde sua foz até logo após a ponte entre Brasil e Guiana. Existe em seguida a chamada Ilha das Pedras, que interrompe seu curso em quase toda a largura.
Devido à sua difícil transposição, a ilha funciona como local de transbordo, com passageiros e mercadorias sendo embarcados nos barcos do lado oposto, seja para ir para ou voltar de Saint Georges/Oiapoque.
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Esta é a vegetação ribeirinha bastante comum na região (Fonte – Divulgação).
A partir de então, o Oiapoque torna-se um curso rápido e encachoeirado. Ele apresenta águas limpas e ágeis, correndo á volta de pequenas ilhas rochosas – há duas dezenas delas identificadas.
As ilhas têm uma agradável coloração creme e são decoradas com flores de lindas espigas rosas. Nas suas margens, o exuberante dossel da floresta amazônica, com altas árvores e palmeiras, que parecem tocar o céu.
Se você nunca teve um barco, talvez seja difícil perceber o perigo de um rio. Um bom barqueiro recordará ou suspeitará onde estarão as pedras, em especial as submersas. Avançará rapidamente, sem que você note os riscos por que passou.
Um mau barqueiro terá de navegar mais lentamente: se ele acertar uma pedra ou tronco poderá avariar o barco e ameaçar sua vida. O Oiapoque, rápido e rochoso, não é um rio trivial.
Só à tarde rio acima você conhecerá Ilha Bela – indiferente ao nome, é ocupada por casebres de madeiras em que muitos dos moradores são garimpeiros. Ela já foi esvaziada e repovoada ao longo do tempo, conforme o movimento do garimpo. A mim pareceu um local sinistro, refletindo a inconstância da vida nômade.
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Vila Brasil, o último vilarejo brasileiro no Rio Oiapoque, sob o calor dos trópicos (Fonte – Divulgação).
Logo após, você chegará enfim a Vila Brasil, último povoado brasileiro às suas margens. Ela é frontal à comunidade francesa de Camopi – locais pequenos, com poucas centenas de pessoas. São vilas ligadas entre si principalmente pelo garimpo, relativamente pelo comércio e limitadamente pela agricultura ao longo do rio.
Hoje há dezenas de milhares de garimpeiros na Guiana e no Lourenço (o mais antigo garimpo do país em atividade), fora dos limites do PN Tumucumaque. Mesmo no lado francês, os garimpeiros são brasileiros.
Além do uso tóxico do mercúrio, sua ação, feita na região à base de desmonte das encostas dos igarapés, é altamente danosa. É só neste trecho que as limpas águas do Oiapoque tornam-se barrentas com a lama dos barrancos.
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O sol se põe sobre o derradeiro povoado brasileiro ás margens do Oiapoque.
Se você ultrapassar esses povoados, continuará subindo pelas águas rápidas e pelas muitas ilhas rochosas do Oiapoque. Existe um conjunto de vilas indígenas Teko e Wayãpi rio acima, chamado de Três Saltos (ou Trois-Sauts), mas está no lado francês. São dois dias de barco depois de Camopi, já próximo das nascentes do Oiapoque. Infelizmente, não as conheço.
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Gravura dos Três Saltos do Oiapoque sobre as aventuras do explorador francês Jules Crevaux.
Por mais magnífico que seja todo este ambiente, ele sempre sofreu historicamente com o abandono dos governos. A jornalista Sônia Zaghetto escreveu que os séculos rolam na esteira do tempo e o maltratado Oiapoque aguarda que a cadeia de infelicidade seja quebrada.