O Salto do Cambezinho é sem sombra de dúvida o maior atrativo do Parque Municipal Arthur Thomas, unidade de preservação de Londrina, norte paranaense. E não é pra menos, uma vez que é ali – bem no miolo verdejante do parque – que as águas do Ribeirão Cambezinho se afunilam e despencam duma altura de mais de 20 metros pra depois seguir seu sinuoso curso em meio a um íngreme e estreito vale. E foi justamente o trecho dele inserido dentro dos limites do parque que resolvi conhecer, subindo o rio desde a antiga Usina Cambé até a base da queda. Um descompromissado e breve aquatrekking que serviu pra conhecer esta vedete sob outra perspectiva, isto num parque urbano que já figurou como o 3º mais visitado do sul do país mas que sofre com o descaso e abandono.
Desde que conheci o Parque Arthur Thomas – coisa de mais de década! – sempre me passou pela cabeça percorrer o vale do Ribeirão Cambezinho dentro dos limites da supracitada unidade de conservação. Parte disso já realizei poucos anos atrás, quando chapinhei pelas águas mansas do Cambezinho saindo da antiga Usina até os limites do Jardim Vale Azul, pouco antes da Fazenda Refúgio. Faltava, porém, o trecho mais acidentado e interessante, isto é, aquele alocado entre a Usina e a Cachoeira propriamente dito. Aproveitando então as condições favoráveis de estiagem deste inverno, marquei meu retorno ao Arthur Thomas e lá fui eu matar de vez essa desfeita.
Saí de casa na hora do almoço e tomei condução que me deixou no Terminal Acapulco, no sul da cidade. Dali bastou seguir a pé pela Avenida Dez de Dezembro até interceptar a bem arborizada Rua da Natureza, onde está situado o parque, num trajeto que não me tomou sequer pouco mais de meia hora. Uma placa escancarando “travessia de animais” precede a entrada da unidade de conservação, já antevendo a imersão natureba que seria feita nas próximas horas.
Após o portal de entrada bastou descer em direção á lagoa, ignorando a trilha do Tatu e tangenciando a base administrativa do Sema. Antes, porém, aproveitei pra subir na bela torre de observação que serve de mirante, que estava interditada na minha última visita. Revitalizada, subi os degraus metálicos que logo me deixaram no último patamar, de onde se tem uma bela panorâmica do parque.
Uma vez as margens do enorme espelho d’água, onde o Ribeirão Cambezinho é represado e reflete o céu límpido daquele início de tarde. Ignoro a Trilha da Capivara e acompanho seu curso pela baixada, passando pela ruidosa Barragem onde o rio já começa a se estreitar vale abaixo. Um pontilhão de concreto repleto de emendas permite não só me avanço parque adentro como me larga na entrada das trilhas do setor leste, agora peneirando no frescor exuberante da floresta.
Tomo então uma ampla via calçada que serve de espinha dorsal vale adentro, a Trilha da Cuíca, que acompanha por 850 metros o suave declive do curso do rio, enquanto o rugido de uma grande queda d’água aumenta conforme avanço. Num piscar de olhos passo pela entrada da trilha do Beija Flor – que leva ao mirante do alto da cachoeira – que ignoro solenemente, me mantendo sempre pelo caminho principal.
E assim prossigo sempre em frente, descendo de forma imperceptível o vale tendo o rio ao meu lado, á distancia, seguindo seu sinuoso curso encravado 25m lá embaixo. Recordo que aqui havia uma faixa interditando o caminho palmilhado, uma vez que quase sempre as fortes chuvas de verão provocam cheias, deslizamentos e o assoreamento das margens do rio, além da queda de árvores nos caminhos do parque. Felizmente a Trilha da Cuíca está liberada (ainda!), e é possível ver nitidamente onde foram feitos os remendos e consertos á margem do caminho. Parabéns á administração do parque!
Mais adiante surge a ramificação pra Trilha da Cotia – que percorre a encosta do vale em nível, sem perda de altitude – que igualmente ignoro, me mantendo na via principal. À direita surge outra entrada, desta vez a da Trilha do Lagarto, por sinal bloqueada por arames e fitas isolantes. Uma placa reforça isto com os dizeres “Trilha interditada”. Esta picada descia fortemente a encosta do vale e levava a um lindo mirante concretado com vista frontal do salto, mas foi totalmente arrancado pela força das chuvas. Em tempo, este será minha rota de fuga do interior do vale, após minha breve chinelada.
Depois um tempo nesse compasso surge o que parece ser o fim da linha, uma cerca proibindo a continuidade, mas um estreito vão da mesma com a encosta possibilita seguir em frente. Aqui também há outra picada fechada á direita, tanto como por arames como pelo mato, a Trilha do Quati, que é outro caminho esquecido que desce rente o rio. Uma vez do outro lado da cerca prossigo minha descida vale abaixo, agora com o caminho bem menos conservado que o trecho anterior. Capim crescendo na via, trechos detonados por deslizamentos, galhos tombados e placas vandalizadas sinalizam o descaso para com este trecho da Trilha da Cuíca.
Após cruzar um decrépito pontilhão de madeira sobre o Córrego Pica-Pau, o caminho finalmente estabiliza e chega enfim ás margens erodidas do Rio Cambezinho. Ali também está o que sobrou da antiga Usina Cambé, a primeira hidrelétrica da cidade que se valia da força do rio pra gerar energia aos londrinenses. Ali, a antiga casa de máquinas (pichada e depredada) se esforça em manter de pé, firmada por uma única viga na base que a qualquer hora pode tombar. É realmente triste ver a falta de memória que se tem com a primeira usina do município.
Aliás, aqui vale um breve adendo histórico que remete ao fundador da cidade e que por sinal também empresta seu nome ao parque. Arthur Hugh Miller Thomas foi o escocês pioneiro no desbravamento da região de Londrina. Natural de Edimburgo, foi convidado pra chefiar no Brasil a empresa “Brasil Plantations Syndicate”, mas não tardou pra também gerenciar a Cia Terras Norte do Paraná, responsável pelo abastecimento de energia elétrica da cidade, que construiu a usina na qual estava naquele momento.
Pois bem, daqui tive que desescalaminhar cautelosamente a margem erodida do rio pra, enfim, pisar em seu leito pedregoso. Pronto, chapinhei na água até dar na outra margem, onde comecei minha chinelada rio acima neste primeiro trecho relativamente seco. Aqui o curso d’água cava um pequeno cânion e uma das margens se eleva consideravelmente em relação á outra. A caminhada é tranquila, bastando seguir pelas pedras e ir desviando de poços e piscinas no caminho, sempre pela esquerda.
Mas não demora pra chegar num trecho mais aprumado e estreito do vale, onde preciso molhar as canelas e me segurar nos muros de basalto á margem pra seguir em frente. E escalaminhando facilmente uma sequências de lajotas inclinadas chego no alto duma bela cascata de mais de 2m de altura, onde as águas do Cambezinho despencam em dois belos poços quase que seguidamente. Pausa pra recuperar fôlego e fotos, claro!
A seguir o caminho nivela e segue tortuoso pelo leito pedregoso até interceptar a ruidosa foz do Ribeirão Pica-Pau, que junta suas águas ao Cambezinho. Sim, é aquele córrego cujo pontilhão foi cruzado anteriormente. Aqui surge um enorme piscinão barrando minha passagem, me obrigando a cruzar cautelosamente á outra margem afim de seguirem meio ao leito seco e algum mato. Perto do mato, porém, sanguessugas alados fazem a festa com a presença de sangue fresco na área!
Mas logo adiante surge um novo poço que me obriga a seguir pela margem direita, me agarrando á mata da encosta e com água até a altura da coxa. Uma vez em terreno seco a chinelada se mantém mais compassada pelo leito seco de pedras, alternando margens com relativa facilidade. Ao mesmo tempo reparo as encostas cada vez mai levadas, com vale se estreitando cada vez mais. Sim, pelas características o vale do Cambezinho é geograficamente encaixado, em forma de “V” e gradiente elevado, justificando o grande poder erosivo de suas águas na época de chuvas. Ao mesmo tempo, reparo não apenas o sinal de vida silvestre sob a forma de pegadas na areia, como um quati maroto que me observa á distância, na outra margem.
Logo adiante cruzo a foz do Córrego-do-Bem-te-vi, que despenca borbulhante pela íngreme encosta á minha esquerda e a chinelada aparenta se manter estável e nivelada pela direita, através de enormes lajedos secos e planos por um bom tempo. Mas um novo piscinão logo a frente me obriga a cruzar á margem esquerda, onde o caminhar ganha mais agilidade. Macacos-Prego fazem a festa no arvoredo, saltando aqui e acolá, fazendo daquele aprumado vale um refúgio de muita, mas muita vida.
Foi aí que, numa curva acentuada do rio onde as águas do Córrego Monjolo se agregam ás do Cambezinho pela esquerda, que o rugido do salto principal aumentando aos meus ouvidos, sinalizando que minha pernada pelo vale estava nos finalmentes. A partir daqui o vale não só passou a me emparedar mais como o entulho de deslizamentos – terra, árvores, pedras e o concreto do antigo mirante destruído – tomou conta de boa parte do trajeto. Daqui já era possível também avistar o salto propriamente dito, despencando majestosamente logo a minha frente, cerca de 50m adiante. Pausa pra fotos, muitas!
Bem, aqui eu tinha que buscar uma saída do rio e esse local foi encontrada xeretando bem a encosta, onde pude avistar um vão onde era possível acessar o mato. Ali também encontrei vestígios da outrora Trilha do Lagarto (aquela interditada, lembra?) parcialmente tomada de mato, porém reconhecível. Bastou então acompanhá-la sem problemas, ganhando suavemente a encosta na diagonal. Num piscar de olhos cheguei num lugar que outrora foi o antigo mirante, uma vez que o chão concretado da trilha subitamente terminava numa piramba vertical onde era possível avistar o estrago feito pelo deslizamento de metade da encosta. Ali também tinha uma maravilhosa vista da queda, bem á minha frente, despencando por uma enorme muralha afunilada de basalto com todo seu esplendor! Sim, o lugar justificava a posição privilegiada do antigo mirante e é mesmo uma pena que ele não tenha sido revitalizado. Pausa pra mais fotos, muitas!
Pra sair dali tive que me segurar na mureta que servia de antigo corrimão, me equilibrar na beirada da encosta e saltar na continuidade da trilha. Dali em diante o caminho ganha a íngreme encosta em curtos ziguezagues através duma antiga escadaria, repleta de cipós, bromélias e mato espinhento caído, mas de fácil transposição. E assim, após pouco mais de uma hora chapinhando pelo rio, abandono o dito cujo pelo caminho interditado pisando novamente em terreno seco e seguro da Trilha da Cuíca.
Dali em diante e com algum tempo de sobra, ainda dei uma rápida passada nos quase 700 metros da Trilha da Cotia e, antes de partir, no mirante liberado do alto da queda, na breve Trilha do Beija-Flor. Lá do alto dos mais de 20 metros da imponente queda pude reconhecer perfeitamente o local onde deixara o rio, hora atrás. E não apenas isso, uma vez que sempre que piso nesse mirante me maravilho com aquele belo salto que é sem dúvida o maior atrativo do parque. Uma beleza natural sem igual e tão esquecido pela administração pública londrinense.
Deixei o parque extremamente satisfeito pela sensação de dever cumprido, mas ainda assim com aquele gostinho amargo pela atual situação que o lugar se encontra. Inaugurado há 32 anos e figurando em 2015 como o 3º atrativo natural mais visitado do sul do país (perdendo apenas pros parques de Foz do Iguaçu e Vila Velha), o Parque Arthur Thomas é um importante local de lazer e contemplação, mas a falta de manutenção, as invasões e estragos causados por tempestades contribuíram para o atual declínio de visitantes. Com um enorme potencial de atrativos que não se limitam á cachoeira, o parque ainda tem muitas trilhas interditadas, um lago assoreado onde antes circulavam pedalinhos e um patrimônio histórico (a usina) largado ás moscas, esperando de vez pra ser varrido pelas águas. Uma grande pena. Mas se a natureza do lugar ainda resiste, eu ainda torço pra que esta fantástica floresta urbana ganhe algum dia a verdadeira atenção que merece e consiga se reerguer de forma plena e íntegra. Só mesmo assim pra assim continuar fazendo jus ao corajoso aventureiro escocês que lhe empresta o nome.